A cultura do hipercontrole e seus efeitos danosos sobre a independência do Ministério Público
15 de janeiro de 2025, 19h16
Os membros do Ministério Público são continuamente monitorados, controlados, vigiados, policiados e fiscalizados. Há controle para todo gosto: disciplinar interno (Corregedorias locais), controle disciplinar externo (Corregedoria Nacional do CNMP), controle administrativo interno (Procuradorias-Gerais, Ouvidorias e órgãos colegiados superiores), controle administrativo externo (Conselho Nacional do Ministério Público), controle interinstitucional (outros órgãos públicos como: Judiciário, Tribunais de Contas, Poderes Executivo e Legislativo), controle social (cidadania, movimentos sociais politicamente organizados, ONGs), controle midiático (imprensa convencional escrita e falada, blogs, redes sociais) etc. São, visivelmente, e sem maiores reflexões, sobrecarregados por um excesso de restrições procedimentais, jurídicas, sociais, políticas e morais. Quando se trata dessa instituição, é fácil responder à indagação milenar de viés platônico: quis custodiet ipsos custodes? — quem guardará os guardiões? Há um novo paradigma no ar e uma multiplicidade desses guardiões: os controladores do controlador.
Vive-se um momento histórico e político em que se desconfia do exercício do poder, independente de sua forma de expressão — seja política, econômica, social ou qualquer outra. Predomina a cultura do hipercontrole, em que os diversos mecanismos de controle assumem um protagonismo, muitas vezes indevido. Atualmente, o poder para se cercar de autoridade precisa de uma justificação axiológica situada além da norma jurídica. Isso reflete uma transição em que o poder não é aceito apenas pela autoridade formalmente imposta, mas pela sua capacidade de justificar-se em relação a normas que vão além da legislação formal, buscando integrar dimensões mais subjetivas e filosóficas na sua aceitação.
Os controladores do controlador
O Ministério Público é, em sua atuação funcional, essencialmente uma instituição meritocrática de controle, de fiscalização e de responsabilização. Mas a sobrecarga de controles estabelecidos sobre ela obriga seus membros a estarem mais alertas com a forma dos procedimentos que utilizam para lograr controlar e fiscalizar, do que propriamente com a substância dos controles que lhe compete. De “instituição de controle” passou a “instituição hipercontrolada”, sujeita a uma vigilância e controle totais, sob um amplo contexto de justificação funcional.
Vive-se num mundo social que preza o domínio e o controle (Sandel, 2021, p. 98), em que, segundo Han (2024, p. 70-71), “a sociedade do controle segue a lógica da eficiência da sociedade do desempenho”. Há uma retroalimentação entre os dois pólos: quanto mais performance, mais controle; e quanto mais controle/fiscalização, mais desempenho. Mas há, como sugerido na introdução desse estudo, outros ingredientes importantes na compreensão do problema (Flinders/Wood, 2013): o ceticismo dos cidadãos sobre as instituições democráticas e desilusão quanto à capacidade da política democrática de resolver questões sociais urgentes.
A ideia de controle ou poder é central para a noção de democracia, já que o ideal é dar kratos ao demos (Pettit, 2008, p. 46): proporcionar controle máximo ou pelo menos significativo sobre o governo ao povo. No entanto, verifica-se que a noção de kratos ou controle pode ser definida de várias maneiras e que, à medida que essa noção é entendida de forma diferente, o ideal de democracia também é interpretado de maneira distinta, ou seja, subindo o nível (ou os níveis) de controle, afeta-se a qualidade da democracia. Nem sempre “mais democracia” representa “melhor democracia” ou “mais controle” não simboliza “melhor controle”. A “forma diferente” ou excessiva de exercer controle pode não ser adequada ao ideal democrático, assumindo tons hiperdemocráticos.
Com um sistema de hipercontrole sobreposto e asfixiante, o membro ministerial, embora possa ser mais responsivo a demandas futuras, pode optar por rota mais segura, convertendo-se em mero cumpridor de ordens, burocratizando-se ao invés de protagonizar, com relativa liberdade, atividades construtivas de resultados. Afinal, como ensina Dahl (2012, p. 87), “um grande grau de autonomia e arbítrio produz, comprovadamente, melhores resultados do que uma supervisão rígida e supercentralizada”. O sistema, assim projetado, estimula a proliferação de membros mais empenhados em observar prazos, seguir formas protocolares de atuação, do que buscar a substância viva dos interesses que compete à instituição zelar. É uma equação bastante conhecida e trivializada (que, no fundo, representa um trade off entre resolutividade e cautela funcional): adesão aos procedimentos rigorosos (e seguros) e evitação das soluções inovadoras (carregadas de riscos à carreira por abrir margens ao hipercontrole), numa espécie de evasão ao crescimento.
O hipercontrole sequer desenvolve-se em níveis. Pode ser cumulativo e sobrepor um controle ao outro. Com a multiplicidade de controles justapostos, o membro está sempre na iminência de se deparar com algum obstáculo, interrompendo a atividade normal para ocupar-se com sua própria defesa. E como diz Han (2018, p. 10), quando o controle interno é superado surge a pressão externa hipertrofiada; é um sistema tão complicado que traz em si o risco de ceder ao próprio peso.
Efeitos negativos
É da natureza das mudanças políticas irem dos excessos num sentido para iguais excessos em sentido contrário (Lipson, 1967, p. 291). A falta de controle ou sua ineficiência, segue-se um modelo que, crescentemente, peca pelo excesso de mecanismos fiscalizatórios sobre a atividade ministerial. O Ministério Público não enfrenta apenas o poder público constituído (tal como previsto no artigo 129, II, da Constituição) e o poderes sociais, mas toda uma instância cascateante de controles e fiscalizações. Tal instância múltipla, formalmente tem o propósito de garantir a atuação regular e legal dos membros da instituição, mas na prática e substancialmente, dado o gigantismo, é usada como reserva de poder político para coibir e neutralizar ações inovadoras e independentes, exercendo, em alguma medida, uma “influência causal” sobre o comportamento funcional futuro do membro.
O excesso de controles pode por em funcionamento métodos de servilismo dos agentes controlados, reduzindo-os a meros instrumentos ou correias de transmissão, comprometendo a maior das garantias institucionais: a independência. Como diz Han (2018, p. 140), “a obediência servil transforma minha vontade em sua vontade”. Podem se tornar tímidos e receosos na atuação funcional, devido aos riscos de punição ou represália por parte dos detentores do ubíquo poder controlador.
Sobre o Ministério Público, nas atuais circunstâncias de um exercício superlativo do controle sobre essa instituição, tem inteira incidência o “direito administrativo do medo”, em que o membro, em sua atuação funcional, conduz-se com o propósito de evitar erros e a possível responsabilização pelos órgãos de controle (a partir de uma interpretação própria do que é certo ou errado, do ponto de vista comportamental). A busca por resultados sociais úteis e relevantes, conquista recente da instituição, é transferida para um plano secundário, quando a prioridade passa a ser evitar sanções.
Um controle democrático muito rigoroso pode espremer o empreendedorismo dos membros e transformar os órgãos de execução em unidades burocráticas presas, primariamente, a regras e fórmulas. A possibilidade de ação disponível, face ao hipercontrole, reduz-se à mera conservação das atribuições ordinárias e burocráticas. A disfunção do excessivo controle funcional pode induzir a uma opção por procedimentos e prazos, em detrimento de resultados substanciais.
Todo o arsenal de hipercontrole (interno e externo, concreto e difuso) ergue em cada membro ministerial uma ditadura interna, um regime de controle interno (Han, 2021, p. 112), que revela em toda a sua potência, a opressão, a penosidade do exercício profissional. Não é incomum o chamado pensamento antecipatório negativo, em que o membro permanece na angústia de caminhar por sobre emboscadas e armadilhas. É a impotência de um profissional sujeito a se acomodar à engrenagem técnica que é destrutiva e gera ansiedades.
O hipercontrole ministerial impõe um alto nível de estresse ocupacional no exercício funcional das múltiplas atividades atribuídas aos membros da instituição. Implica um consumo constante de energia psicológica na realização de todos os atos afetos à àrea de atuação do membro ministerial. É difícil para um profissional cônscio de seus deveres enfrentar esse estado de coisas proporcionado pelo controle superlativo sem angústia.
Como superar a disfuncionalidade do hipercontrole: relevância das sanções premiais
O dinheiro só entra na arena motivacional quando o agente se sente mal remunerado por seus esforços no cumprimento do dever funcional. Fora isso, excluída a insatisfação pela referida injustiça, para a maioria das pessoas mais dinheiro não está no alto da lista de motivações (Waterman Jr., 1995, p. 93). Um fator muito mais importante é o reconhecimento.
A formação, salvaguarda e promoção do homem — em todos os seus espectros (cidadão, pai, empregado, servidor público etc.) — são reflexos menos de proibições e de punições, que de recompensas e sanções premiais. A pura punição não ensina o comportamento correto ou desejado; quando muito, faz com que o corrigido aprenda a evitar punições futuras. Se, por exemplo, um membro for punido por não tratar com urbanidade um cidadão no exercício da função e receber uma reprimenda oficial por tal conduta, ele não aprenderá, só por isso, a forma de tratamento adequada, mas “aprenderá” a desviar-se de novas punições, evitando, por exemplo, todo contato com os cidadãos em geral.
Esse raciocínio se insere numa perspectiva maior: o indivíduo castigado não está, por isto, menos disposto a comportar-se de uma forma dada; quando muito, aprende a evitar a punição. Em troca, se o órgão controlador reconhece e elogia boas práticas, provavelmente estimulará outros membros a segui-las ou desenvolvê-las (Rodrigues, 2020, p. 167-168). Dissemina-se o aprendizado de que um comportamento específico (positivo) leva a recompensas e, ao mesmo tempo, satisfaz a insaciável necessidade humana de atribuir-se um valor próprio.
A sensação de ser importante, de integrar uma comunidade profissional empática, não só alimenta o amor-próprio, como impulsiona uma atividade produtiva e resolutiva dentro da sociedade consumidora dos serviços ministeriais. Mas para que isso aconteça, como assinala Han (2024, p. 82), depende-se da “instância da gratificação pelo outro que me ama, elogia, reconhece e estima. O isolamento narcísico do ser humano, a instrumentalização do outro e a competição total de todos contra todos destroem o clima de gratificação”.
O membro ministerial cumpridor dos seus deveres parece não existir para a instituição. Empenhado nas amplas frentes de atividade, no eterno trabalho de Sísifo de “baixar fila” e realizar audiências, o próprio membro não se reconhece a si mesmo. Ele só percebe que integra uma engrenagem institucional e é por esta reconhecido, quando obrigado a defender-se dos tentáculos do hipercontrole.
Conclusão
A perspectiva democrático-republicana forjou, constitucionalmente, um Ministério Público robusto e pujante para fazer frente aos poderes públicos e sociais, cumprindo propósitos constitucionais da mais elevada importância. E para auxiliar a instituição a manter o foco nos propósitos constitucionais, nos limites da lei e nos interesses legítimos da sociedade, são projetados mecanismos de controle interno e externo. Executados com razoabilidade e na convicção do seu papel instrumental, esses mecanismos de controle são funcionais, mas rompidos esses limites, e atuando com exagero, excesso, abuso e como “um fim em si mesmo” — quintessenciando o hipercontrole — sobrevém a disfuncionalidade administrativa, cujos efeitos em relação ao Ministério Público foram descritos, sumariamente, ao longo dessa análise.
O Ministério Público e todos os seus membros estão entregues a processos quase automáticos de uma pluralidade de níveis de controle e de fiscalização, como nunca se viu antes no ordenamento jurídico. O custo derivado para a própria teoria democrática é transformar uma instituição controladora (“guardiã das promessas constitucionais” e “defensora da democracia”) num “departamento hipercontrolado”, inibido por níveis sobrepostos de fiscalização. O desafio de um fenômeno radicalmente novo pede também um novo paradigma de compreensão, em que o aleatório e o injurídico sejam eliminados.
Referências
DAHL, Robert Alan. Poliarquia. Participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornick. 1a. ed., 2a. reimp. São Paulo:Editora Universidade de São Paulo, 2012.
FLINDERS, Matthew.; WOOD, Matthew. When politics fails: hyper-democracy and hyper-depoliticization. Written for the Policy & Politics conference ‘Transforming Policy and Politics: The Future of the State’, Bristol 17/18 September 2013. Disponível em: https://www.bristol.ac.uk/media-library/sites/sps/migrated/documents/matthewwood.pdf. Acesso em: 02 jan. 2025.
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petropólis, RJ:Vozes, 2018.
HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa. A dor hoje. Tradução de Lucas Machado. 1a. edição. Petrópolis/RJ:Vozes, 2021.
HAN, Byung-Chul. Capitalismo e impulso de morte. Ensaios e entrevistas. Tradução de Gabriel Salvi Philipson. 3a. reimp. Petrópolis/RJ:Vozes, 2024.
LIPSON, Leslie. Os grandes problemas da ciência política. Tradução de Thomaz Newlands Neto. Rio de Janeiro:Zahar, 1967.
PETTIT, Philip. Three Conceptions of Democratic Control. Constellations Volume 15, n. 1, 2008, p. 46-55. Disponível em: https://www.princeton.edu/~ppettit/papers/2008/Three%20Conceptions%20of%20Democratic%20Control.pdf. Acesso em: 02 jan. 2025.
RODRIGUES, João Gaspar. Perfil moderno de atuação das Corregedorias-Gerais do Ministério Público. De Jure: Revista Jurídica / Ministério Público do Estado de Minas Gerais, v. 19, n. 35, jul./dez. 2020, p. 161-191.
SANDEL, Michael J. Contra a perfeição. Ética na era da engenharia genética. Tradução de Ana Carolina Mesquita. 4a ed. Rio de Janeiro:Civilização brasileira, 2021.
WATERMAN JR., Robert H. O que a América faz certo. Tradução de Nivaldo Montgelli Jr. São Paulo:Pioneira, 1995.
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