Opinião

A atuação da advocacia legislativa para além dos mitos

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15 de janeiro de 2025, 17h16

Em artigo [1] publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, em 27 de dezembro de 2024, o procurador municipal Celso Bruno Tormena teceu considerações sobre a atuação dos procuradores legislativos, questionando a constitucionalidade da dispensa de controle de jornada desses profissionais. Segundo o articulista, a prerrogativa de não se submeter ao controle de ponto seria exclusiva dos procuradores do Poder Executivo, em razão da necessidade de cumprirem prazos processuais e participarem de audiências.

Ou seja, embora a incompatibilidade do controle da jornada de trabalho dos advogados públicos já esteja devidamente consolidada, principalmente após o julgamento do RE 1.400.161/SC e com a aprovação do enunciado 9 da súmula do Conselho Federal da OAB [2], o autor do texto tenta construir a tese de que os procuradores legislativos não fazem jus a tal prerrogativa inerente à advocacia pública.

Tal posicionamento revela um desconhecimento total tanto das nuances jurídicas que fundamentam a incompatibilidade do controle de jornada da advocacia pública (ponto I) quanto das complexas atribuições intrínsecas às procuradorias legislativas (ponto II). E embora a questão do controle de jornada não figure entre as principais preocupações da advocacia do Legislativo, é imperativo responder a esse tipo de posicionamento, para evitar ataques segregativos a outras carreiras – uma espécie de autofagia do serviço público.

Em primeiro lugar (ponto I), o ministro Fachin, ao proferir a decisão no RE 1.400.161/SC, em momento algum restringiu o usufruto da prerrogativa por parte da advocacia pública apenas à necessidade de atendimento aos prazos processuais. Estabeleceu, sim, que o controle de jornada é incompatível com a advocacia pública “ante a natureza de trabalho que compõe a profissão pela liberdade de atuação e flexibilidade de horários, inerentes à profissão”. O voto acompanha a linha disciplinada no artigo 7, inciso I do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil:

“Art. 7º São direitos do advogado:

I – exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;”

Diferentemente, portanto, do que sugere o articulista, o ministro Fachin não restringiu a prerrogativa à necessidade de cumprimento de prazos. A decisão é clara ao afirmar que a incompatibilidade decorre da “natureza do trabalho que compõe a profissão, pela liberdade de atuação e flexibilidade de horários, inerentes à profissão”.

Spacca

O exercício livre da advocacia pública vai além da possibilidade de manifestação autônoma, mesmo quando tal posicionamento técnico divergir da vontade do gestor. Abrange, também, a independência e a flexibilidade na atuação funcional, transcendendo os limites físicos do local de trabalho (RE 1.400.161/SC). É relevante mencionar que o advogado público, seja no Executivo ou no Legislativo, além de assessorar e defender o ente ao qual está vinculado, tem o dever indeclinável de zelar pelo interesse público primário, logo, a liberdade, em seus múltiplos aspectos, é fundamental para o correto exercício da profissão.

A visão simplista de vincular a prerrogativa da advocacia pública ao atendimento de prazos processuais e comparecimento a fóruns diminui a importância da carreira como um todo. A advocacia pública vai muito além do contencioso judicial. Está no assessoramento jurídico o fator determinante que possibilita, com a prevalência da legalidade, a materialização de políticas públicas escolhidas pelo gestor de modo a promover as diretrizes constitucionais que visam contemplar os interesses e bem-estar da população. Sem falar que o advogado público protagoniza e propicia o novo paradigma consensualista do direito administrativo.

Em segundo lugar (ponto II), é igualmente equivocada a afirmação de que a advocacia do Legislativo não lida com prazos processuais ou compromissos públicos além da jornada regular. Tal assertiva demonstra um profundo desconhecimento de como funciona o Parlamento, e de como funciona sua advocacia.

À advocacia do Poder Legislativo compete uma gama complexa de atribuições, essenciais para o funcionamento harmônico do Estado Democrático de Direito. Sua atuação abrange tanto as atividades de consultoria e assessoramento jurídico, sejam elas relacionadas às atividades-fim, como a elaboração de pareceres sobre a constitucionalidade de projetos de lei, ou às atividades-meio, como a gestão administrativa interna, quanto a representação judicial e extrajudicial do Parlamento e de seus membros, quando em defesa das prerrogativas e competências institucionais (ADI 2.820).

O cotidiano do advogado legislativo é marcado pelo dinamismo e pela amplitude de suas responsabilidades. O acompanhamento e assessoramento semanal das sessões plenárias, das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), das Comissões Permanentes, das Frentes e Grupos Parlamentares, bem como das audiências públicas e dos membros em seus diversos compromissos institucionais, exigem disponibilidade integral, que frequentemente extrapola a jornada regular de trabalho e as dependências físicas das Casas Legislativas. Essa intensa agenda, contudo, não exime o advogado do Parlamento do cumprimento de suas demais obrigações funcionais, como a elaboração de pareceres, a análise de contratos e a representação judicial.

Já no âmbito judicial, a advocacia legislativa transcende a nobre defesa de atos normativos em controle concentrado de constitucionalidade. Sua missão precípua, em consonância com o princípio da separação dos Poderes, é zelar pela autonomia, independência, competências e prerrogativas do Legislativo e de seus membros. A participação ativa das Advocacias da Câmara dos Deputados e do Senado na ADPF 854, que versa sobre a constitucionalidade das emendas parlamentares ao orçamento, é um exemplo emblemático dessa atuação, onde a defesa da autonomia do Parlamento na gestão dos recursos públicos foi crucial.

A advocacia das Casas de Leis realiza, ainda, a defesa das prerrogativas parlamentares “não só em relação aos Poderes Executivo e Judiciário, mas também frente a órgãos de envergadura constitucional e dotados de independência, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Tribunal de Contas”, ponto este que também impõe o cumprimento de prazos processuais e a realização de compromissos públicos externos (RE 1.400.161/SC).

Além disso, a advocacia do Legislativo também desempenha papel na análise de constitucionalidade de proposições legislativas, na elaboração de estudos jurídicos e na defesa do Parlamento em demandas judiciais que envolvam suas competências e prerrogativas, conforme previsão constitucional. Ademais, vale ressaltar, a título de exemplo, que o STJ já reconheceu a legitimidade ativa ad causam das Comissões das Assembleias Legislativas para propor ação civil pública (REsp 1.098.804-RJ, rel. min. Nancy Andrighi, Informativo nº 458).

E não se trata de função nova, inventada recentemente. A gênese da representação judicial do Poder Legislativo e dos órgãos autônomos remonta à década de 1940, com a discussão sobre a personalidade judiciária das Câmaras Municipais, como bem apontado pelo ministro Victor Nunes Leal em seu artigo de 1949 [3]. A necessidade de uma advocacia especializada para os assuntos do Legislativo decorre da complexidade dos conflitos federativos e disputas interpoderes em sede judicial [4]. Essa percepção, aliás, não se restringe ao Brasil, mas encontra modelos similares em países como Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha e Áustria [5].

Convite à reflexão

Em suma, a advocacia do Poder Legislativo é pilar fundamental para a manutenção da harmonia entre os Poderes e para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Sua atuação, que vai desde o assessoramento jurídico interno até a defesa judicial do Parlamento, garante a independência e o regular funcionamento da instituição, contribuindo para a construção de um sistema jurídico sólido e para a efetivação dos princípios democráticos.

Certamente os colegas advogados públicos do Poder Legislativo, ao realizarem essa leitura, poderão indicar inúmeras outras atribuições e deveres que permeiam a complexa e dinâmica realidade do exercício da advocacia das Casas Legislativas, seja no âmbito federal, estadual, distrital e municipal.

Assim, antes de se tentar diminuir a relevância da advocacia do Poder Legislativo na ânsia de retirar direitos, convidamos a todos, aproveitando essa reflexão e esclarecimento, para um olhar mais aprofundado sobre a realidade do exercício desta competência indispensável ao funcionamento dos Parlamentos e, consequentemente, da democracia brasileira.

 


[1] TORMENA, Celso Bruno. Procuradores legislativos: dispensa de cartão ponto. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-27/procuradores-legislativos-dispensa-de-cartao-ponto/

[2] CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Súmula 9: O controle de ponto é incompatível com as atividades do Advogado Público, cuja atividade intelectual exige flexibilidade de horário.

[3] LEAL, Victor Nunes. Personalidade judiciária das Câmaras Municipais – Comentário de Victor Nunes Leal. Revista de direito administrativo, v. 15, p. 53-54, 1949.

[4] Para mais: FERNANDES, Edvaldo. A institucionalização da advocacia do Senado Federal com salvaguarda das competências constitucionais do Congresso Nacional. Centro de estudos da Consultoria do Senado, Textos para discussão, ago. 2010.

[5] Reino Unido (Office of Speaker’s Counsel – Gabinete de Consultoria do Orador); Estados Unidos (Office of Senate Legal Counsel – Gabinete de Consultoria Jurídica do Senado; Office of General Counsel of the U.S. House of Representatives – Gabinete de Consultoria geral da Câmara dos Representantes); Alemanha (‘Directorate ZR’ do Bundestag – Diretório ZR da câmara baixa); e Áustria (Rechts-, Legislativ- & Wissenschaftlicher Dienst – Serviço Jurídico, Legislativo e de Pesquisa).

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