Opinião

Súmula 676 do STJ e o diagnóstico judicial

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  • é pós-doutorando pela Unisinos e pela UC-PT doutor e mestre em Direito mestre em Filosofia membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) magistrado aposentado professor Universitário e advogado.

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14 de janeiro de 2025, 17h14

As Súmulas foram originariamente criadas pelo ministro Victor Nunes Leal do Supremo Tribunal Federal ao final de 1963 para entrarem em vigor em 1964, tendo como objetivo organizar a metodologia de trabalho do próprio Supremo [1], sendo que Lenio Streck assinala com acerto que foram “previstas pela primeira vez em lei no Direito brasileiro em 1973, no citado artigo 479 do Estatuto Adjetivo Civil” [2].

Com o tempo, embora sempre tenha havido certa resistência judicial à sua adoção, especialmente dos magistrados mais novos, houve grande difusão e aderência pelos órgãos judiciais superiores a essa prática. Cristalizaram-se e passaram a ser as denominadas simples ou persuasivas, sendo que, para autorizada doutrina, houve evolução [3], com a EC 45, de 2004, na qual surgiram as Súmulas Vinculantes do Supremo Tribunal Federal, mas esse tema será objeto de ensaio oportuno.

As súmulas vêm se expandindo ao longo do tempo por todos os tribunais, criando verdadeiras codificações [4]. E, ao contrário das vinculantes, as denominadas persuasivas expressam a uniformização da jurisprudência do tribunal com o fim de orientar os demais órgãos judiciais para que as decisões judiciais tenham coerência e integridade, nos termos do artigo 926 do CPC.

Há um expansionismo sumular que tende a acorrentar e hierarquizar funcionalmente o sistema judicial, maculando a prerrogativa da independência funcional. Visa possibilitar a redução de demandas judiciais que assolam o Poder Judiciário de forma inumana após Constituição da República de 1988.

O diagnóstico judicial de uma realidade

O Judiciário não conseguiu acompanhar a crescente e assustadora demanda judicial por falta de estrutura material e humana, seja por falta de orçamento condizente para a devida ampliação e/ou, quem sabe, também pela baixa relação entre vagas ofertadas e candidatos aprovados. Aqui, talvez, pela crise do ensino jurídico [5], assim como pela possível e atual baixa atratividade para a carreira. Há de se registrar o crescente desestímulo para a permanência na carreira que a grande sobrecarga de trabalho e cobranças regulares de produção ocasionam, fazendo com que muitos deixem a carreira ou adoeçam, neste caso, adoecendo o próprio Judiciário que passa a prestar uma jurisdição doentia (ineficiente) na medida em que o órgão judicial não se encontra em condições saudáveis de decidir demandas.

Com isso, assoberbados de trabalho e cobrança social, os tribunais superiores encurralados com a crescente e inumana demanda, bem como a diária cobrança jurídica e social de resultado, buscam mecanismos que ajudem a minimizar esse problema interna corporis a certo custo que somos forçados a questionar que justiça temos e queremos.

Spacca

A robotização judicial é uma realidade presente e crescente, seja hoje por meio de súmulas vinculantes que inadmitem serem contrariadas e ser objeto de controle de constitucionalidade concreto, seja amanhã pelas ferramentas de inteligência artificial que o uso vai modificar o papel dos juízes, como defendido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça [6], ou até mesmo, como acima citado, pela cobrança constante de alcançar metas estabelecidas pelo CNJ que robotiza a produção priorizando a quantidade em detrimento da qualidade das decisões judiciais o que, paradoxalmente, aumenta as demandas recursais.

A IA está batendo à porta e sendo recebida com alegria pelos menos avisados do destino robotizado da IN. Embora esse processo seja inevitável, temos que ter cautela no seu uso para que a essência da IN não seja superada. Aquela (IA), se não usada como ferramenta de auxílio, mas como de decisão judicial, poderá efetivamente causar grandes injustiças sociais. O bom senso é uma característica da IN. A IA não possui consciência, coisa que os fisicalistas, em regra, acreditam que ainda terá em detrimento dos idealistas que não creem nessa possibilidade.

Com isso, a massificação de decisões judiciais é uma realidade presente cobrada por metas do CNJ, das corregedorias de Justiça e a sociedade como um todo, a um custo muito alto que não deveria passar despercebido socialmente.

Junto à massificação de decisões cobra-se, corretamente, segurança jurídica que é a pedra de toque do Poder Judiciário perante o sistema econômico, político e social, mas a que custo? Como conciliar a segurança jurídica com a massificação de decisões judiciais? Que justiça estaremos entregando com esse sistema capitalista de produção?

A operosidade judicial, se positiva, é importante na medida que permite decisões céleres e eficientes, mas não é isso que, em regra, empiricamente ocorre, o que é profundamente lamentável. A celeridade está presente na massificação de decisões judiciais, mas não a eficiência em igual ou maior proporção.

Não há como se entregar uma justiça célere e eficiente nesse universo de massificação, pois a velocidade empregada à massa não permite que seja eficiente no âmbito qualitativo, afinal é “óbvio que tão elevado número de decisões compromete inevitavelmente a qualidade, esmero e coerência dos pronunciamentos e, em última análise, a própria autoridade da jurisprudência” [7]. Esse é o “X” da questão.

Soluções ou complicações?

Como compatibilizar a quantidade com a qualidade das decisões? Não há uma fórmula mágica e nem soluções a curto prazo que prestigiem o respeito a direitos fundamentais, dentre os quais, o direito-garantia do acesso à Justiça, mas de qualquer forma na busca de soluções não se pode afastar os fins que justificaram a razão de existir da função judiciária que se transformou com Montesquieu em Poder Judiciário [8].

Na medida em que há o pensamento e a vontade de desafogar o Judiciário da crescente demanda, há de se tomar cuidado com as medidas impostas ou a serem impostas por viabilizar que, com o problema endógeno causado pelo exógeno, efetivamente não se permita estar concretamente se fazendo justiça ou mesmo permitindo o acesso à justiça.

Aos olhos do senso comum, simbolicamente, o julgamento anual de milhares de processos dá uma sensação de que que o Judiciário está fazendo o dever de casa, mas a que custo? São julgamentos por atacado?

O Judiciário necessita prestar contas à sociedade? Democraticamente sim, notadamente, aqueles em que sua composição é feita por indicações políticas, daí a razão de anualmente serem anunciados pelo Supremo Tribunal Federal quantos processos são julgados.

Com isso, quer queiramos ou não, temos as súmulas persuasivas ou vinculantes como subterfúgios. Algumas são produzidas ao contrário da razão de suas existências para enunciar algo contrário ao texto constitucional (Súmula Vinculante nº 5) ou o óbvio ululante (Súmula nº 676 do STJ), ou seja, o que já está previsto expressamente em lei e deveria ser de observância obrigatória pelos magistrados, afinal se espera que conheçam o Direito.

Em face dessa massificação de decisões e do estado doentio de coisas em que se encontra o Judiciário em virtude da grande sobrecarga de processos que o assola, não há tempo ou interesse de atualização jurídica por muitos magistrados, salvo se for conditio sine qua non para promoção por merecimento. Há resistência, apesar de posição favorável do CNJ, de muitos tribunais em conceder autorização para cursar mestrado e/ou doutorado por falta de magistrados, estes que, outrora, quando rompiam com esse sistema para participarem desses cursos, eram tidos pelos seus pares como turistas.

Com isso, por exemplo, trata-se o Direito Penal e Processual Penal, que diz respeito à liberdade, como algo simples de se lidar democraticamente, que não reclama estudos atualizados, ou mesmo que não há tempo ou interesse para conferir atualizações legislativas em face da necessidade de atingir metas impostas.

Perpetuam-se situações não mais permitidas legalmente, como, no caso, a decretação de prisão preventiva de ofício pelo magistrado. O remédio é sumular a jurisprudência de que não é mais permitido desde 2019 na tentativa de frear os recursos que chegam aos tribunais ou mesmo assegurar direitos e garantias fundamentais desrespeitadas. Definitivamente, a robotização judicial está em curso e adoecendo o Poder Judiciário.

Vou me limitar a linkar dois exemplos:

O da Súmula Vinculante 5 (“A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”).

Com efeito, a Constituição da República de 1988, no caso, em seu artigo 5º, inciso LV, é clara ao dispor que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Ora, é sabido que quem figura em processo administrativo é acusado de algo que reclama a presença de um Advogado, indispensável à administração da justiça (CF; artigo 133), sendo ou devendo ser o maior garantidor do respeito aos direitos e garantias fundamentais.

O advogado está presente, por imposição constitucional, no CNMP (CF; artigo 130-A, V); para assistir o preso em flagrante (CF; artigo 5º, LXIII); em banca de concurso público de provas e títulos para ingresso na magistratura (CF; artigo 93, I); em 1/5 dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal (CF; artigo 94); na proposição de ação direta de inconstitucionalidade e ação direta de constitucionalidade, desde que integre Conselho Federal da OAB (CF; artigo 103, VII); na composição do CNJ (CF; artigo 103-B, XII); no 1/3 dos membros do Superior Tribunal de Justiça (CF; artigo 104, II); no 1/5 dos membros do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais do Trabalho (CF; artigo 111-A, I c/c artigo 115, I); no Tribunal Superior Eleitoral e nos Tribunais Regionais Eleitorais (CF; artigo 119, II c/c artigo 120. III); no Superior Tribunal Militar (CF; artigo 123, I); na banca de concurso público de provas e títulos para ingresso no Ministério Público (CF; artigo 129, §3º); na banca de concurso público de provas e títulos para ingresso como procurador dos estados e do DF (CF; artigo 132).

Em sendo assim, quem além do advogado poderá assegurar observância no processo administrativo da garantia do contraditório e da ampla defesa?

Súmula notoriamente contra legem, ou melhor, inconstitucional se considerarmos que as súmulas vinculantes tem efeito erga omnes alcançando os órgãos doJudiciário, a administração pública e por via oblíqua o jurisdicionado que eventualmente fica impedido de recorrer de uma decisão judicial, ou mesmo o cidadão que deseje ter acesso à justiça. Este, como aquele, tem direito a conquistar direitos, ficando impedido por um sumulado posto para o futuro como regra geral e abstrata, não viabilizando se discutir no presente direito pressuposto, como se todo caso de fato fosse igual. Em qualquer das hipóteses, o direito-garantia do acesso à justiça está efetivamente obstaculizado.

Prisão preventiva contra legem

Mas o nosso principal foco neste escrito é a última Súmula 676, aprovada em dezembro de 2024 pela 3ª Seção do STJ (“Em razão da Lei 13.964/2019, não é mais possível ao juiz, de ofício, decretar ou converter prisão em flagrante em prisão preventiva”).

É preocupante, por não ser crível, que um tribunal superior necessite alertar magistrados de que devem observar a lei ao proferir suas decisões no nosso sistema do civil law. Isso sinaliza um estado de alerta de que direitos e garantias fundamentais não estão sendo respeitadas há anos, bem como que há juízes, aqueles a quem cabe primariamente cumprir e aplicar a lei, desrespeitando o texto legal para decidir com criacionismo conforme sua consciência. Tal agir é contrário ao nosso sistema e inaceitável democraticamente por não respeitar os princípios da legalidade, da igualdade, da liberdade, da cidadania, do devido processo legal e do estado de inocência. Se há necessidade de sumular previsão legal, é porque há muitos magistrados decidindo contrariamente ao texto legal.

Além dessas decisões judiciais que, de ofício, decretam a prisão preventiva contra legem, há que de constatar que por macular princípios constitucionais são flagrantemente inconstitucionais, já que não há relativização de práticas que infrinjam direitos e garantias fundamentais.

A prisão preventiva é, dentre outras, uma medida cautelar que só pode ser decretada à requerimento das partes, ou quando da investigação criminal por meio de representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público (CPP; artigo 282, §2, na nova redação dada pela Lei nº 13.964/2019), sendo certo que por prevalecer a liberdade em detrimento da prisão em face do princípio constitucional da não-culpabilidade (CF; artigo 5º, LVII), a contrario sensu, pode, de ofício, o magistrado revogar ou substituir a medida cautelar para conceder a liberdade provisória, nas hipóteses legais (CPP; artigo 282, §5º, na nova redação dada pela Lei nº 13.964/2019), afinal a prisão  preventiva só será decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (CPP; artigo 282, §6º, na nova redação dada pela Lei nº 13.964/2019).

O que isso tudo demonstra é que o fantasma do princípio da culpabilidade, desaparecido com a Constituição da República vigente (05/10/1988), ainda nos assombra eventualmente em face da cultura punitivista que nos assola ao longo do tempo e, pelo visto, ainda hoje nos impõe a sua presença, contudo, não resiste a um senso jurídico crítico mais apurado.

 


[1] LEAL, Victor Nunes. Passado e Futuro da Súmula do STF. In: R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 145: 1-20, jul./set, 1981, p. 1.

[2] Súmulas no Direito Brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 109.

[3] TOMELIN, Georghio. O Estado Jurislador. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 140.

[4] O STF atualmente conta com 61 Súmulas Vinculantes. Confira: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=26. Acesso em 07 jan 2025. O próprio STF tem em seu acervo 736 Súmulas Simples ou Persuasivas (Disponível: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=3345y. Acesso em 07 jan 2025) e o STJ conta com 676 Súmulas (Disponível: https://scon.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/tematica/download/SU/Verbetes/VerbetesSTJ.pdf. Acesso em 07 jan 2025).

[5] Com profundidade, confira: STRECK, Lenio Luiz. Ensino Jurídico E (M) Crise: Ensaio contra a simplificação do Direito. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024.

[6] Disponível: https://www.cnj.jus.br/ministro-barroso-fala-sobre-inovacoes-e-desafios-da-inteligencia-artificial-no-judiciario/#:~:text=%E2%80%9CQuem%20n%C3%A3o%20utilizar%20a%20intelig%C3%AAncia,da%C3%AD%20a%20necessidade%20de%20regula%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 07 jan 2025.

[7] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 119.

[8] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do Espírito das Leis. Tradução Edson Bini. Bauru/SP: EDIPRO, Série Clássicos, 2004, pp. 189-197.

Autores

  • é pós-doutorando pela Unisinos e pela UC-PT, doutor e mestre em Direito, mestre em Filosofia, membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), magistrado aposentado, professor Universitário e advogado.

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