Opinião

Serviços hospitalares e a Lei Federal nº 9.429/95: uma virada na jurisprudência

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  • é advogado sócio do escritório Preve Masiero e Da Veiga Advogados Associados. graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e pós-graduando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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14 de janeiro de 2025, 6h02

O presente artigo pretende apresentar ao leitor uma relevante guinada jurisprudencial em uma das principais teses tributárias utilizadas no setor da saúde: a interpretação expansiva da expressão “serviços hospitalares”, prevista no artigo 15, § 1º, inciso III, alínea ‘a’ da Lei Federal nº 9.249/1995, de modo a não só abranger os hospitais per si, mas também todas aquelas atividades de saúde a ele vinculados.

Tal tese permitiu que diversas entidades do setor da saúde pudessem utilizar de uma redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL anteriormente reservada apenas aos hospitais. Dentre os beneficiados, destacam-se sociedades especializadas em anestesiologia, cirurgia plástica, cirurgia buco-maxilo facial, dentre outras especialidades voltadas à promoção da saúde.

Essa interpretação sempre encontrou forte guarida nos tribunais, sendo inclusive objeto de tese do Superior Tribunal de Justiça, firmada sobre a sistemática dos recursos repetitivos. Trata-se do tema repetitivo nº 217, que firmou a seguinte tese:

“Para fins do pagamento dos tributos com as alíquotas reduzidas, a expressão ‘serviços hospitalares’, constante do artigo 15, § 1º, inciso III, da Lei 9.249/95, deve ser interpretada de forma objetiva (ou seja, sob a perspectiva da atividade realizada pelo contribuinte), devendo ser considerados serviços hospitalares ‘aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde’, de sorte que, ’em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos'”[1]

Destaca-se que a Lei Federal nº 9.249/95, objeto do Tema Repetitivo nº 217, delimitou alguns requisitos para a fruição do benefício fiscal, além da prestação dos “serviços hospitalares”.

Dentre eles, e de especial relevância para o presente artigo, é a necessária organização da prestadora de serviços na forma de sociedade empresária.

Spacca

É justamente neste ponto que reside a virada jurisprudencial observada nos tribunais pátrios, que tem potencial para limitar severamente o número de sociedades que podem usufruir do benefício fiscal.

Sociedades que prestam serviços hospitalares devem ser empresárias

Após a publicação do Tema Repetitivo nº 217, muitas sociedades médicas, organizadas sob a forma de sociedade empresária, passaram a pleitear o benefício fiscal judicialmente, com amplo sucesso em suas teses.

Os tribunais, contudo, quase que por reação ao comportamento dos entes privados, passaram a mudar o foco. Não mais os julgados estão se debruçando sobre o encaixe dos serviços prestados na expressão “serviços hospitalares”. Afinal, tal questão já foi pacificada pelo STJ.

O foco agora reside em averiguar se as sociedades de saúde são materialmente sociedades empresárias, como exige a legislação. Isto é, se não são apenas sociedades simples constituídas formalmente como empresárias para atender ao requisito previsto na Lei Federal nº 9.249/95, o que, na opinião da jurisprudência, caracteriza planejamento tributário abusivo.

Cita-se, para ilustrar o ponto, recentíssimos precedentes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, vanguardista na mudança jurisprudencial aqui relatada:

IMPOSTO DE RENDA PESSOA JURÍDICA (IRPJ). CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LIQUIDO (CSLL).  ALÍQUOTAS DIFERENCIADAS DE 8% E 12%.  SOCIEDADE EMPRESÁRIA DA ÁREA MÉDICA. SERVIÇOS HOSPITALARES. PREPONDERÂNCIA  DO EXERCÍCIO PESSOAL DA PROFISSÃO SOBRE A ATIVIDADE GERAL DA PESSOA JURÍDICA. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO.[2]

TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO. IRPJ. CSLL. BASE DE CÁLCULO. REDUÇÃO. ALÍQUOTAS. SERVIÇOS HOSPITALARES. SOCIEDADE EMPRESÁRIA. NÃO ENQUADRAMENTO. 1. As empresas que prestam serviços hospitalares têm direito a recolher o Imposto de Renda Pessoa Jurídica – IRPJ no percentual de 8% e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL no percentual de 12% sobre a renda auferida na atividade específica de prestação de serviços de tratamento, excluídas as consultas médicas, nos termos do artigo 15, § 1º, III, alínea ‘a’, da Lei nº 9.249/1995, inclusive com a alteração introduzida pela Lei nº 11.727/2008. 2. Entende-se por serviços hospitalares aqueles que estão relacionados às atividades ligados diretamente à promoção da saúde, essencial à população, nos termos do art. 6º da Constituição Federal, podendo ser prestados no interior do estabelecimento hospitalar, mas sem esta obrigatoriedade. 3. O registro da pessoa jurídica na Junta Comercial não é suficiente para, por si só, caracterizá-la como sociedade empresária para fins de obtenção do benefício fiscal previsto no artigo 15, § 1º, III, alínea ‘a’, e 20 da Lei nº 9.249/1995, devendo ser evidenciado, no caso concreto, que a organização dos fatores de produção se sobressai ao desempenho da profissão intelectual pelos seus sócios.[3]

IMPOSTO DE RENDA PESSOA JURÍDICA (IRPJ). CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LIQUIDO (CSLL).  ALÍQUOTAS DIFERENCIADAS DE 8% E 12%.  SOCIEDADE EMPRESÁRIA DA ÁREA MÉDICA. SERVIÇOS HOSPITALARES. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO.[4]

Percebe-se, aí, uma tendência dos tribunais em analisar materialmente se determinada sociedade é ou não é empresária, deixando de lado a simples análise formal do registro na Junta Comercial.

Tal propensão, apesar de nascer de uma certa inclinação fazendária, é adequada do ponto de vista do direito privado. Afinal, o Código Civil brasileiro é cristalino ao distinguir as sociedades empresárias das sociedades simples:

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

O ponto fulcral estabelecido pela legislação é o objeto social. Para que uma sociedade seja considerada empresária, seu objeto deve ser o exercício de atividade própria de empresário, conceito também estabelecido no Código Civil:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Para que seja uma sociedade empresária, portanto, a sociedade de saúde deve demonstrar que realmente, no mundo dos fatos, exerce sua atividade econômica por meio da alocação dos fatores de produção, não por meio do trabalho autônomo dos sócios, típico das sociedades simples.

É justamente essa a lição do Professor Gladston Mamede, ao distinguir as sociedades simples das sociedades empresárias:

(…) Já nas sociedades simples não se verifica tal organização de bens materiais e imateriais, de procedimentos, como meio para a produção ordenada de riqueza; pelo contrário, há trabalho não organizado, quase autônomo, sendo desempenhado por cada um dos sócios sem conexão maior com a atuação dos demais. É o que se teria, por exemplo, numa sociedade entre três dentistas, cada qual com sua clientela própria; não há uma empresa.[5]

Conclusão

Fica demonstrada, assim, a nova tendência do Poder Judiciário, capitaneado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em analisar detidamente os aspectos materiais que caracterizam se uma sociedade é empresária ou não, para fins de concessão.

Tendência essa que tem suas raízes não no direito tributário, mas no direito civil e na teoria da empresa.

Toda essa problemática, por sua relevância econômica e jurídica, certamente será objeto de análise e pacificação pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse ínterim, cumpre ao operador do direito, atento à virada jurisprudencial, tomar especial cuidado em demonstrar, por meio de prova documental, que a sociedade médica por ele representada exerce atividade empresária, não sendo mais suficiente a simples juntada de contrato registrado na Junta Comercial.

Referências bibliográficas

REsp n. 1.116.399/BA, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 28/10/2009, DJe de 24/2/2010;

TRF4, AC 5003788-44.2022.4.04.7007, 2ª Turma, Relator para Acórdão RÔMULO PIZZOLATTI, julgado em 17/12/2024;

TRF4, AC 5014116-74.2024.4.04.7100, 2ª Turma, Relatora para Acórdão MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, julgado em 17/12/2024;

TRF4, AC 5018797-46.2022.4.04.7201, 2ª Turma, Relator ROBERTO FERNANDES JÚNIOR, julgado em 19/11/2024;

MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial – 18ª Edição 2024. 18. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book. p.40. ISBN 9786559776115. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559776115/. Acesso em: 06 jan. 2025.

 


[1] REsp n. 1.116.399/BA, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 28/10/2009, DJe de 24/2/2010.

[2] TRF4, AC 5003788-44.2022.4.04.7007, 2ª Turma, Relator para Acórdão RÔMULO PIZZOLATTI, julgado em 17/12/2024.

[3] TRF4, AC 5014116-74.2024.4.04.7100, 2ª Turma, Relatora para Acórdão MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, julgado em 17/12/2024.

[4] TRF4, AC 5018797-46.2022.4.04.7201, 2ª Turma, Relator ROBERTO FERNANDES JÚNIOR, julgado em 19/11/2024.

[5] MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial – 18ª Edição 2024. 18. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book. p.40. ISBN 9786559776115. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559776115/. Acesso em: 06 jan. 2025.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Preve, Masiero e Da Veiga Advogados Associados., graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e pós-graduando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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