Opinião

Pequeno guia do litigante de má-fé

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14 de janeiro de 2025, 15h15

A litigância de má-fé é um “esporte” praticado com constância nos tribunais (judiciais, arbitrais e administrativos) Brasil afora. Ao longo do tempo, tal forma de estabelecer conflitos tem atraído adeptos, até mesmo pela leniência com a qual eventual sanção (a) ao abuso [1] do direito de petição (artigos 79-81 do CPC) – lides individuais; ou (b) pelo desvio de finalidade macro do acesso ao poderes públicos (artigo 5º, XXXV, a, da CRFB e artigo 36, parágrafo 3º, XIV e XIX da Lei 12.529/2011) por direitos de propriedade intelectual – sham litigation; é aplicada pela autoridade competente.

Se fosse possível sintetizar um decálogo de tal tradição, algumas estratégias poderiam ser corriqueiramente constatadas. São elas:

(1) Fórum shopping: busque um juízo desespecializado [2], sem qualquer vínculo territorial com a sede do réu ou a execução da obrigação (de preferência ignore-se o disposto no artigo 63, parágrafos 1º e 5º do CPC). A fuga pelo juízo natural pode gerar “dividendos” como a maior extensão da demanda ou a tecnicidade da decisão.

(2) Segredo de justiça: o Princípio Republicano é supervalorizado, assim como o é o princípio da publicidade inscrito no artigo 93, IX da CFRB. Finja-se que a doutrina de Geraldo Ataliba [3] em prol da transparência jamais existiu. Nada melhor do que esconder um debate de interesse público do escrutínio da luz do Sol. Se houver razão para publicidade, aproveite o ensejo e acuse alguém de violação de dever funcional de sigilo (artigo 325 do CP). Tal estratagema tem ainda a vantagem de evitar intervenções de terceiros, já que será impossível adivinhar o contexto litigioso. Com isso, evita-se o incômodo debate público, pilar da modernidade política, e a desnecessária ampliação cognitiva dos litígios; afinal, o autor sabe que trouxe ao juízo todo o necessário.

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(3) Valor da causa: como a empreitada é aventureira, brinque com o valor mais baixo que a alçada comportar. Assim, eventual sucumbência minimizará os ônus processuais e honorários advocatícios ao vitorioso.

(4) Pareceres jurídicos e técnicos: contrate profissionais que não entendam do assunto específico, mas que contam com excelente reputação em área diversa da litigada. Por vezes, o empréstimo reputacional – e a abrangência das redes da casta que conta com um “timbre de impacto” – será mais relevante do que o domínio temático. Prevalece o argumento da autoridade à autoridade do argumento. Sempre há quem queira fazer operações plásticas-estéticas com açougueiros e mentorias com gurus.

(5) Entulhos documentais: anexe a maior quantidade de “papéis” possível. Esconda, no meio das milhares de páginas, um ou outro documento pertinente, de modo que o ex adverso perca horas analisando material inútil. Isso ajuda a encarecer a demanda, a tornar o trâmite processual mais lento, conferir ao litígio uma aparência de verossimilhança e, por fim, a encarecer os honorários de eventual perito. Os estadunidenses chamam tal tática de trial by avalanche: uma avalanche de inutilidades para atravancar o feito. Dito de outra forma, se não tiver razão, ao menos dê uma boa canseira ao seu adversário.

(6) Ataques pessoais aos representantes e aos órgãos imparciais: muito além das imputações que partes fazem umas às outras, há quem destile suas acusações para os advogados, magistrados, peritos e árbitros. Se a derrota parecer iminente, majore a falta de urbanidade a adoção de argumentos ad hominem. Técnicas intimidatórias de toda sorte são objeto de aplicação, em especial envolvendo a grande imprensa [4].

(7) Linguagem agressiva: se a dialética processual for respeitosa, é mais difícil que o adversário emule a mesma estratégia que o postulante. De outro lado, com a invecção se tornando ofensa, é provável que o nível discursivo descambe para uma falsa luta sem regras e de estética duvidosa: espécie de vale tudo ensaiado. A raiva linguística contaminará a todos e a raiva tem péssima dicção. Há outra agressividade que é, na mesma medida que violenta, brega. Trata-se da tentativa de advogados contemporâneos insistirem em tentar emular ironia de advogados consagrados do passado, acreditando-se dignos da ironia machadiana ou do sarcasmo de Nelson Rodrigues. Daqueles advogados e destes escritores, nada fica além de um pastiche digno de pena.

(8) O interesse de agir é algo frívolo: trate a noção de ameaça ao direito como regra e faça uso da ação judicial preventiva para obstar a continuidade de qualquer processo administrativo que possa prejudicar seu cliente. Combine pedidos declaratórios preventivos com o “primeiro mandamento” do litigante de má-fé (fórum shopping) e evite o juízo natural além de uma solução desfavorável. Outrossim, invente condutas típicas: tente requerer abertura de inquéritos ou iniciar ações penais – dessas que até o estudante do segundo semestre já sabe que não darão em nada. No máximo, renderão notas na imprensa de qualidade duvidosa. Lembremos: as estratégias de nosso decálogo não são mutuamente excludentes; ao contrário, the more the merrier!

(9) Procrastine: na hipótese de a solução meritória não aparentar promissora, retarde o andamento do feito com todas as técnicas que o desvio de função do sistema processual lhe permita. Embargos de declaração infundados, recursos sucessivos que apenas repetem as mesmas fundamentações, enfim, tudo o que possa colocar o próprio sistema processual brasileiro em descrédito.

(10) Tutelas de urgência: mire nas tutelas não exaurientes contra o concorrente, em particular antes do trio actum personarum estar formado, valendo-se do segredo de justiça (“mandamento segundo”) para que o demandado só conheça a causa quando já houver uma tutela a seu desfavor. Se a tutela mal concedida durar suficiente tempo, é bem possível que o concorrente vá à bancarrota antes do final do processo. Concentra-se o mercado com o esteio em ilegítima decisão de abstinência/inibitória.

O decálogo aqui ventilado é meramente ilustrativo. A criatividade humana sempre aglutina algum estratagema combinatório inovador. Quando quem tem o poder decisório age com caridade ou piedade [5] para com o protagonista da malversação do direito processual, maiores são as chances de tais desvios se tornarem comuns. Segue à risca o preceito evangélico: “Peçam, e lhes será dado. Procurem, e encontrarão. Batam, e lhes será aberto. Pois todo aquele que pede, recebe, quem procura encontra, e a quem bate se abrirá” (Mt 7, 7-8).

 


[1] “A doutrina é, pois, uma verdadeira repulsa á chicana” AMERICANO, Jorge. Do Abuso do Direito no Exercicio da Demanda. 2ª Edição, São Paulo: Saraiva, 1932, p. 41.

[2] “Quando os juízes tentam tomar a decisão que produzirá os “melhores resultados”; mas não dispõem de nenhum conjunto organizado de conhecimentos ao qual possam recorrer, são obrigados a confiar em suas intuições” POSNER, Richard Allen. A problemática da Teoria Moral e Jurídica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012, p. 405.

[3] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2º edição, 3º triagem, São Paulo: Malheiros Editora, 2001, p. 29.

[4] “Todas as gazetas juntas compõem a história do mundo, e seus leitores, que não sabem as coisas com detalhe (e eles são a maioria), acreditam, para estarem informados de tudo, em tudo o que elas reportam. Os personagens ali descritos tornam-se seus heróis, e constroem uma péssima Impressão dos que são representados como injustos fraudulentos como carecem de notícias que as contradigam, essas ideias que eles tomam como verdadeiras ficam esculpidas em suas memórias” CASANOVA, Giacomo. O Duelo. Traduzido por Dênnys Vinícius Menezes. São Paulo: Grua Livros, 2019, p. 78.

[5] “O julgamento será o mesmo, em se tratando de amigos ou de inimigos, de poderosos ou de miseráveis, de ricos ou de pobres. Todos aqueles aos quais se aplica a mesma regra devem ser tratados da mesma forma, sejam quais forem as conseqüências. A máquina não tem paixões; não se pode nem intimidá-la, nem corrompê-la, nem, aliás, despertar-lhe a piedade. Dura lex, sed lex. A regra é a igualdade, ou seja, a permutabilidade dos indivíduos sujeitos à justiça; suas particularidades não serão levadas em consideração senão na medida em que a lei as torna uma condição de sua aplicação” PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 69.

Autores

  • é sócio de Denis Borges Barbosa Advogados e professor do Departamento de Direito da PUC-Rio.

  • é livre-docente, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito Processual Civil da PUC-SP e do programa de mestrado e doutorado em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino (IDP-DF), advogado, coordenador técnico do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos do conjur da Fiesp.

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