Contas à Vista

O federalismo e o mito do barco de Teseu após a reforma tributária

Autor

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

    Ver todos os posts

14 de janeiro de 2025, 8h00

Um dos temas mais candentes acerca da Reforma Tributária do Consumo aprovada pela Emenda Constitucional 132/23 diz respeito ao federalismo.

A autonomia federativa no âmbito arrecadatório foi modificada, pois o que cada ente federado tinha competência para cobrar isoladamente, passou a ser compartilhado federativamente, isto é, antes, nos termos de leis complementares, cada estado poderia cobrar o ICMS, e cada município cobrar o ISS. Após a EC 132/23, foi estabelecido que tais entes federados arrecadarão de forma compartilhada o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por meio do Comitê Gestor, cuja lei complementar está em trâmite no Congresso.

Há quem entenda que tal procedimento fere a cláusula pétrea do federalismo (artigo 60, §4º, I, CF), sendo inconstitucional; outros discordam, entendendo que a modificação não foi tão relevante assim; e há quem louve tal alteração, afirmando que essa nova dinâmica melhorará a federação.

Dentre os que louvam está Tercio Sampaio Ferraz Jr, emérito professor de filosofia do direito da USP, que afirmou em texto veiculado no jornal Valor Econômico intitulado Reforma tributária: reinvenção do Brasil:

“ao exigir-se deliberação conjunta no Comitê Gestor, mantêm-se o princípio da diferença e o dever de unidade que informa a federação solidária. Não se trata de decisão unitária e superior, apenas de deliberação conjunta. O que, afinal, sustenta a autonomia dos entes estaduais e municipais em face da União. Ao invés de um princípio geral (organizacional) que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal com a predominância de interesses (geral, regional e local), caminha-se para a realocação de competências tributárias em sede de uma lei complementar uniforme para os entes federados, enquanto partes cooperativas”.

Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, diriam os antigos

A alteração efetuada não tem o condão de violar a clausula pétrea federativa, conforme já firmei, embasado no fato de que o federalismo não diz respeito apenas à arrecadação, mas também à dívida e ao gasto. O federalismo brasileiro foi fortemente abalado, mas não extinto. Todavia, entendo não haver motivo para louvação, pois não me parece ter havido o surgimento de “partes cooperativas” com a modificação realizada pela EC 132. O que vejo ter ocorrido foi uma forte redução da autonomia dos entes federados, que antes tinham limites em sua autonomia na forma de leis complementares, e agora perderam completamente a autonomia arrecadatória sobre a maior fonte tributária que dispunham. Estados e municípios foram garroteados, e a federação se tornou ainda mais centralizada.

Spacca

Esse debate lembra um antigo mito grego sobre o barco de Teseu, relatado por Plutarco. Em tempos históricos, cerca de 1.200 a.C., Atenas estava subjugada a Creta, e era obrigada a enviar parte de suas riquezas e de seus jovens ao dominador, visando manter a relação de subordinação. Depois de algum tempo nessa situação, o ateniense Teseu foi a Creta, matou o lendário Minotauro, destruiu a máquina de dominação e libertou seu povo daquele jugo. Em júbilo, a população preservou o barco de Teseu como um símbolo daquele feito heroico. Ao longo dos séculos partes do barco se deterioraram e ele foi sendo restaurado. As madeiras que haviam sido substituídas eram despejadas em um armazém.

Certo dia, um forasteiro, entusiasmado com a história de Teseu, pediu para ver seu barco e os atenienses lhe mostraram o restaurado, o que o decepcionou. Pediu então para ver o original, tendo-lhe sido apresentado os destroços acumulados no armazém. Partiu decepcionado, pois o original era apenas um amontoado de tábuas velhas, e o que então se apresentava não era aquele do herói ateniense, mas uma réplica.

Muitos filósofos discutem esse mito, que se tornou conhecido como o paradoxo do barco de Teseu ou o paradoxo da substituição, o que aponta para a complexidade do assunto, que pode ser assim descrito: até que ponto a substituição de partes de um todo, mantém o todo original?

Parece-me que o federalismo brasileiro é como o barco de Teseu. Modificam-se as partes, sob a mesma denominação, até um ponto que não se sabe qual formato corresponde mais de perto ao original – sabe-se que representam um barco, embora não seja exatamente o de Teseu.

Após o advento a EC 132/23, e a instituição das receitas compartilhadas entre estados e municípios por meio do IBS, não se sabe ao certo se o federalismo brasileiro atual corresponde ao original, tantas foram as peças modificadas. Todavia, afirmar que a réplica, mesmo que parcial, é melhor que o original, é um passo que não ouso dar.

Respeito as posições contrárias, mas vejo ter havido uma “reinvenção do Brasil”, não no sentido positivo, como afirmado, e não creio que haverá efetiva cooperação daí decorrente. Do agrilhoamento não surge cooperação, mas redução de autonomia. Essa solução pretende que haja maior segurança jurídica, pois reduziu os polos de produção normativa autônoma, mas não estou seguro de que venha a haver maior justiça fiscal a partir dela. Trata-se do velho embate entre a segurança e a justiça.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!