Glosas na Lei do Bem e os riscos do estrangulamento de uma boa política de inovação tecnológica
14 de janeiro de 2025, 7h13
A Lei do Bem (Lei nº 11.196/2005), instituída, entre outros, com o objetivo de fomentar a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação tecnológica (PD&I) para concepção de produtos e processos novos ou substancialmente aprimorados no Brasil, vem se consolidando como uma das principais ferramentas de incentivo fiscal no país.
Passível de uso apenas por empresas que optam pelo regime tributário de lucro real e auferem lucro fiscal tributável no ano calendário de utilização do benefício, baseia-se na extrafiscalidade, no contexto do qual a tributação (e sua mitigação) é utilizada como importante instrumento para promoção de políticas públicas. O modelo vem se destacando como importante instrumento de fomento de inovação tecnológica, de que tanto necessitamos.
Dados gerais de impacto da Lei do Bem, que está prestes a completar 20 anos, mostram um retorno significativo (R$ 4,6 investidos pelas empresas em inovação para cada R$ 1 de renúncia fiscal), o que permite a sustentação dos investimentos das empresas em inovação tecnológica, benéficos para o país, mesmo quando se trata de inovações incrementais.
Ao que consta, mais de R$ 170 bilhões foram destinados a projetos de inovação. O benefício transcende o interessado direto (empresa) e alcança projeto nacional de crescimento via inovação tecnológica. No entanto, e essa é a preocupação que justifica o presente artigo, há presentemente seríssimas preocupações a respeito da velocidade e da transparência em relação ao método das análises realizadas pela burocracia responsável pela condução do modelo, especialmente em relação às glosas aplicadas aos projetos submetidos. A preocupação que aqui se externa é construtiva, e tem por objetivo chamar a atenção para possíveis gargalos burocráticos, que a todos pode, em princípio, prejudicar.
Dados recentes colhidos no contexto de atuação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) podem ilustrar a magnitude do problema. Em uma única etapa de análise, envolvendo 2.836 projetos, quase metade dos projetos foi rejeitada. Justificou-se (genericamente) que os projetos carecem de comprovação de inovação tecnológica ou que não haveria uma nítida e precisa adequação das propostas à pesquisa e ao desenvolvimento.
Também ao que consta, o relatório de avaliação indicaria que 1.273 projetos foram considerados “não recomendados”, enquanto 1.563 foram aprovados. As justificativas mais recorrentes para as glosas incluem alegações de que os projetos não apresentaram barreiras técnicas a serem superadas ou que as atividades realizadas seriam de engenharia, ao invés de pesquisa, desenvolvimento e inovação.
O impacto dessas decisões não se limita às empresas diretamente afetadas. As glosas, se de fato fixadas em tempo recorde, podem fulminar o objetivo primordial da Lei do Bem: estimular o avanço tecnológico e a competitividade no mercado brasileiro. Uma possível e carregada subjetividade nas análises, frequentemente baseada em justificativas em princípio padronizadas, pode gerar insegurança jurídica e comprometer a confiança no programa. Pode-se conjecturar que consultores técnicos designados para avaliar os projetos analisaram, em média, 142 projetos por semana, o que poderia, em tese, levantar inquietação sobre a profundidade e o rigor dessas análises. Nem sempre mais é mais. E nem sempre o que se faz com rapidez tem mais qualidade.
Além disso, os números sugerem que o volume de projetos avaliados cresceu exponencialmente nos últimos anos. Entre maio de 2022 e maio de 2023, foram analisados 28.237 projetos, abrangendo os anos-base de 2018 (100% concluído), 2019 (98%) e 2020 (46%). Embora esse esforço demonstre a tentativa de otimizar o processo de análise, a velocidade com que os projetos foram examinados pode, em princípio, e em tese, comprometer a qualidade das decisões e a individualização das análises, mediante decisões genéricas e, algumas vezes, talvez claudicantes de fundamentação específica.
Do ponto de vista jurídico, essas glosas podem suscitar debates sobre o necessário respeito ao devido processo legal substantivo e aos princípios da ampla defesa e do contraditório. A administração pública tem o dever de fundamentar de forma nítida e objetiva suas decisões, especialmente quando o conteúdo decisório acarrete impactos econômicos significativos para interessados.
Teme-se que as justificativas possam relativizar análises mais profundas, com base em indicação de inexistência de “elementos tecnologicamente novos” ou do uso inadequado do termo “inovação” desprovida de benchmarking ou de comprovação técnica.
Cuidado com os excessos
Deve-se focar também na necessidade de maior alinhamento entre as exigências administrativas e a realidade prática e efetiva das empresas interessadas. A inovação, por natureza, é conceito dinâmico, que varia de acordo com o contexto em que é aplicada. Ignorar os desafios técnicos enfrentados pelas empresas interessadas, sem a necessária individualização, restringindo a definição de PD&I a parâmetros excessivamente rígidos e sem transparência pode excluir projetos legítimos e, consequentemente, enfraquecer o impacto positivo da Lei do Bem no fomento à inovação. O problema é gravíssimo.
Nesse cenário, é imperativo que se tenha uma atuação articulada para correção de eventuais excessos, tanto da burocracia de controle e transparência do método de análise, quanto dos projetos encaminhados. Deve-se assegurar que os incentivos fiscais sejam aplicados de forma justa e transparente, sob parâmetros tecnicamente irrepreensíveis.
A análise dos projetos deve ser criteriosa, mas também equilibrada, valorizando os esforços das empresas que investem em inovação e contribuindo para o desenvolvimento econômico e tecnológico do país. Não se trata de mais um regime de mera extração fiscal. E os projetos, por outro lado, devem ser autoexplicativos, bem fundamentados, justificados, bem instruídos (com base na legislação vigente e referenciais da OCDE, como o Manual de Frascati).
A Lei do Bem, enquanto política pública, é oportunidade imperdível para alavancar a competitividade empresarial e a inovação no Brasil. No entanto, sua efetividade depende de análises técnicas fundamentadas, respeitando-se os princípios de direito público aplicáveis. Não se pode escudar a avaliação de uma política com o mantra do “mérito administrativo”, que é a ponta de lança que o Judiciário geralmente utiliza em relação a esse tipo de assunto. Apenas assim será possível garantir que a Lei do Bem continue a cumprir seu papel estratégico no desenvolvimento nacional.
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