Critérios de similaridade para ex-tarifários na Resolução nº 512/2023
14 de janeiro de 2025, 8h00
Em artigo publicado na coluna Contencioso Aduaneiro (link) [1], no site do IPDA, discutiu-se a constitucionalidade da exigência de projeto de investimento para o pleito do ex-tarifário introduzida pela Resolução Gecex nº 512/2023. De fato, embora a intenção de alinhar o rebaixamento da barreira tarifária à política de desenvolvimento nacional seja amplamente legítimo, há espaço para se discutir a constitucionalidade da exigência imposta aos importadores. Aproveita-se o debate levantado pelo autor para se trazer à discussão da comunidade aduaneira outra ordem de restrição, relativa aos critérios para o reconhecimento da dissimilaridade dos produtos a serem nacionalizados com relação àqueles produzidos em território nacional.
Enquanto a antiga Resolução Gecex n° 309/2019, ora revogada, previa expressamente a utilização, entre outros, do “preço” e o “prazo de entrega” do produto como critérios de discrímen aptos a fundamentar a dissimilaridade para fins de concessão de reduções tarifárias, para fins de excepcionar a Tarifa Externa Comum (TEC), a Resolução Gecex n° 512/2023 foi omissa quanto aos critérios de apuração de existência de similaridade com produtos nacionais, o que dá ensejo ao risco de uma indevida discricionariedade na realização da análise por parte da Administração.
Tais critérios não podem ser desconsiderados mesmo diante do silencia da nova regra administrativa, pois estão textualmente definidos pelo artigo 4º, §2º, da Lei n° 3.244/1957, sendo possível, ainda, a menção ao artigo 18, inciso I do Decreto-Lei n° 37/1966 e ao artigo 190 do Decreto n° 6.759/2009, em prestígio à unicidade do Direito – e aqui se reporta a um subsistema em particular, o aduaneiro. Para estes diplomas, o “preço” e o “prazo de entrega” da mercadoria são elemento obrigatórios, vinculantes e explícitos da análise técnica.
Logo, a decisão sobre um pleito formulado por um importador pode ser positiva ou negativa, mas não pode ignorar os critérios definidos em lei, uma vez que os limites da discricionaridade do agente público quanto ao proxy da norma estão definidos em material legislativo, devendo a decisão ser constrangida pela legalidade.
Se os ex tarifários são uma medida voltada a reduzir a barreira tarifária sobre determinados bens que não possuam produção equivalente no Brasil, adota-se internacionalmente o critério da similaridade: não havendo produção doméstica de bem similar, inexiste motivo para se manter a proteção comercial caracterizada pela cobrança do imposto de importação.
No entanto, é necessário que a similaridade contemple aspectos relacionados não apenas às qualidades e especificações dos produtos, como também a outros critérios como o preço, as condições de venda, os prazos de entrega.
Aventa-se a incomparabilidade de dois produtos que, apesar de apresentarem o mesmo nome e qualificação, sejam vendidos por valores completamente diferentes: por exemplo, uma caneta de uso cotidiano está profundamente distante no elo concorrencial de uma caneta de luxo. Da mesma forma, uma disponibilidade imediata para envio do produto não se assemelha, do ponto de vista comercial, a uma mercadoria que apenas poderá ser enviada dentro de três meses.
Assim, o exame de similaridade visa estabelecer a natureza e extensão da relação competitiva entre produtos, devendo ser feita caso a caso, motivo pelo qual, de maneira exemplificativa, o Regulamento Aduaneiro brasileiro de 2009 dedica a sua Seção VII ao exame de similaridade, de modo a considerar similar aquele produto que detém as condições para substituir o importado.
E não poderia ser diferente, pois tanto o Acordo de Valoração Aduaneira como a legislação brasileira determinam que o preço deve ser necessariamente considerado na avaliação de similaridade.
Tal exigência, incorporada pela legislação brasileira e proveniente de compromissos assumidos pelo Brasil na comunidade do comércio internacional, ocorre por uma questão mais econômica e lógica do que jurídica: um bem com preço muito superior não compete e nem deve ser considerado apto a substituir outro, pois será um fator determinante levado em consideração na tomada de decisão por parte do adquirente. Para manter o exemplo acima, não se vislumbra qualquer concorrência ou sobreposição de mercados entre as bolsas vendidas no mercado de luxo com aquelas de uso quotidiano comercializadas em lojas de departamento.
Para aprofundar o exemplo normativo, a interpretação harmônica do artigo 190 do Decreto nº 6.759/2009 com o Gatt revela aquilo que o caput do artigo chama de “regras básicas” a serem observadas: (1) qualidade equivalente e especificações adequadas à finalidade a que se destina; (2) preço não superior ao custo de importação; e (3) prazo de entrega “normal ou corrente” para o mesmo tipo de mercadoria.
Tais regras possibilitam se aferir uma similaridade em grau mínimo de suficiência: poderá a Camex complementar, caso queira, o percurso hermenêutico-argumentativo por meio de outros dados, critérios e ferramentais metodológicos, desde que não conflitantes com as demais regras mínimas de aplicação (entre as quais se encontra aquela que determina, como critério obrigatório de aferição, o preço).
Comparação
Por todos estes motivos, a Resolução Gecex n° 309/2019, em sintonia com os critérios legais, ao dispor a respeito das regras procedimentais de análise dos pleitos de redução temporária do imposto de importação na condição de ex-tarifário, determinava os critérios de comparação entre os produtos nacionais e importados em seu artigo 13, entre os quais se encontrava o preço e o prazo de entrega.
Tais elementos de comparação deixaram de constar expressamente na norma de 2023, ainda que continuem sendo um critério vinculante determinado pela legislação aduaneira em vigor:
Resolução Gecex n° 309/2019 | Resolução Gecex n° 512/2023 |
Art. 13. Para fins de apuração e análise comparativa de existência de produção nacional equivalente, somente se considerará que há produção nacional equivalente à do bem importado considerado quando o bem nacional apresentar: | Art. 13. A apuração da existência de produção nacional equivalente será feita por meio de Consulta Pública na página eletrônica do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços na internet, nos termos das Seções III e IV, do Capítulo II, desta Resolução, sem prejuízo de outros meios comprobatórios, tais como: |
I – Desempenho ou produtividade igual ou superior ao do bem importado, desde que o parâmetro conste da sugestão de descrição de que trata o inciso II do artigo 3º;
II – Prazo de entrega igual ou inferior ao do mesmo tipo de bem importado;
III – Fornecimentos anteriores efetuados nos últimos cinco anos pelo fabricante; e
IV – Preço do bem nacional, calculado na fábrica EXW (Ex Works), sem a incidência de tributos, não superior ao do bem importado, calculado em moeda nacional, com base no preço CIF (Cost, Insurance and Freight). |
I – Atestado ou declaração emitido por entidade de classe de atuação nacional, que represente os fabricantes brasileiros do bem que se pleiteia importar;
II – Consulta direta aos fabricantes nacionais ou às suas entidades representativas;
III – Cadastro próprio da Secretaria de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio, Serviços de bens com produção nacional;
IV – Banco de dados de empresas e produtos habilitados pela Lei de Informática, organizado pela Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações; ou
V – Quaisquer outros bancos de dados públicos, quando necessário. |
Como se percebe, resolução revogada dispunha de um rol exemplificativo para fins de apreciação da similaridade entre o produto nacional e o importado, valendo-se de indeterminações (reporte-se às expressões “outros meios comprobatórios” e “outros bancos de dados públicos”). A norma revogadora, por outro lado, além de deixar de fazer referência à abertura do texto anterior, passou a omitir critérios determinados pela legislação como obrigatórios, tais como o preço do produto e o prazo de entrega.
É importante se salientar que a indicação quanto à existência ou não de similaridade fica a critério das declarações a serem prestadas por entidades de classes ou empresas nacionais, ou seja, das partes economicamente interessadas em ver reconhecida tal similaridade.
Verifica-se, ainda, que, na norma anterior, de 2019, os critérios eram fixos, balizando-se nas disposições legais do artigo 190 do Decreto n° 6.759/2009 (“Regulamento Aduaneiro”) e ao artigo 18 do Decreto-Lei n° 37/1966. Tais disposições legais consideram o preço como critério inarredável para avaliação da similaridade entre os produtos nos termos do artigo 4º, §2º, da Lei n° 3.244/1957, segundo o qual a concessão de redução do imposto para importação “será de caráter geral em relação a cada espécie de produto, garantida a aquisição integral de produção nacional, observada, quanto ao preço, a definição do Art.3º, do Decreto-Lei nº 37/1966”. E o propósito disso é muito claro: evitar discricionariedades, fixando um critério objetivo para a constatação quanto à existência ou não de similaridade dos produtos em comparação.
Como se percebe, o artigo 192 do Regulamento Aduaneiro prevê a competência da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) para estabelecer, por meio de normas complementares, critérios gerais ou específicos para a apuração da similaridade, de acordo com: (1) condições de oferta do produto nacional; (2) política econômica geral do governo; e (3) a orientação dos órgãos governamentais incumbidos da política relativa a produtos ou a setores de produção. Tal dispositivo se encontra em relação de complementariedade e harmonia com o artigo 190, que o precede para apontar que será “similar ao estrangeiro o produto nacional em condições de substituir o importado” que atender a determinadas “normas básicas” (entre as quais o preço).
Um conceito utilizado na legislação não pode ser ignorado ou sequer distorcido por ato infralegal, sob pena de extrapolação de seu caráter regulamentar: da mesma forma que um decreto não pode contrariar a legislação, não se admite que uma mera Resolução, como espécie de ato administrativo, venha a excluir um comando legal, pois se trata de mera norma complementar, nos termos dos artigos 99 e 100 do Código Tributário Nacional.
Ainda que esteja dentro da esfera de competências do MDIC e mais especificamente da Gecex “estabelecer as alíquotas do imposto de importação, observados as condições e os limites estabelecidos em lei” e “formular orientações e editar regras para a política tarifária na importação e na exportação” (artigo 6º, incisos II e IV do Decreto nº 11.428/2023), não há base para criar uma restrição fora do escopo da norma de desoneração que ela utiliza.
A discussão não é nova, já tendo sido analisada pela jurisprudência em casos de tentativa de se restringir o escopo de normas legais mediante a edição de atos “interpretativos” e “normativos”.
A Resolução Gecex nº 512/2023 trouxe, portanto, importantes alterações ao regime dos ex-tarifários, mas, ao omitir critérios objetivos, como preço e prazo de entrega, abriu espaço para interpretações discricionárias e insegurança jurídica aos pleiteantes e, logo, a todos os administrados. Esses critérios, previstos em normas legais e regulamentares, não podem ser ignorados, sob pena de contrariar os princípios da legalidade e da isonomia, havendo a necessidade do prestígio e respeito à coerência com o ordenamento jurídico e à lógica do comércio exterior, garantindo-se, desta forma, que a política tarifária continue a cumprir sua função de estímulo ao desenvolvimento econômico com previsibilidade e equidade.
[1] PINHEIRO, Rafael Corrêa. “Desconforto no ex-tarifário: projeto de investimento e a vedação ao arbítrio”, In: Coluna Contencioso Aduaneiro, Revista IPDA, São Paulo: IPDA, publicado em 13/01/2025, disponível neste link.
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