A imperiosa volta à normalidade constitucional e democrática
14 de janeiro de 2025, 13h16
A última década da vida brasileira foi, sem dúvida, marcada por problemas graves. Houve uma pandemia, houve ameaças às instituições democráticas. Hoje, porém, não mais existe a pandemia nem ameaças às instituições democráticas.
Prova disto foi dada em 8 de janeiro, quando se comemorou a vitória da democracia. Cumpre agora concluí-la com a volta ao pleno império das instituições democráticas e observância da Constituição. Não fazê-lo é renegar a democracia comemorada.
Entretanto, atualmente o risco às instituições democráticas vem dos que alegam defendê-la. E não têm eles a legitimidade democrática.
Isso decorre do artigo 1º, parágrafo único da Constituição Brasileira:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”
O texto é claro e não dá lugar a sofismas. Só os eleitos pelo povo têm legitimidade para governar o povo brasileiro.
Ora, eleitos pelo povo são apenas o presidente da República e os membros do Congresso. Outros, por mais alta que seja a sua posição, não têm legitimidade nem autoridade para fazê-lo. Se usurpam decisões políticas, estão indo além da Constituição e da democracia. Se for o caso do Judiciário, estabelecem em lugar da democracia uma juristocracia.
Ademais, não se vive no passado, mas no presente. Assim, é preciso reviver na normalidade da Constituição e da democracia, o que implica o Estado de Direito. E em nome de serviços prestados nenhuma autoridade pode atuar fora da Constituição e sem obedecer ao Estado de Direito.
Mesmo porque, como enuncia o artigo 5º da nossa Constituição ao dispor sobre os direitos fundamentais, no seu inciso II:
“Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
A observância da Constituição – insista-se – é um elemento imprescindível para a democracia moderna, porque ela é condição de uma governança em que realmente o povo seja a origem do Poder – “todo poder emana do povo”, mas de um Poder limitado pela Constituição, para que não abuse de sua força em detrimento da liberdade e da igualdade e atue a fim de propiciar o bem comum.
Assim sendo, a Constituição – reitere-se – é elemento básico da democracia moderna. Com a implicação jurídica de que ela é a lei suprema, pauta de toda a ação governamental, concretizada por meio de leis iguais para todos. E com a implicação política de que as normas da Constituição devem ter origem num poder constituinte que pertence exclusivamente ao povo. E, seja para alterá-la, seja para complementá-la, o povo a reserva a eleitos por um procedimento especial e extraordinário. Ninguém possui poder constituinte permanente, exceto o povo.
Donde decorre obviamente que os Poderes constituídos devem atuar de acordo com os procedimentos que ela prevê e – sublinhe-se – dentro dos limites que ela traça.
Nada de novo está no que se expôs.
Admitir o contrário importa, por exemplo, em aceitar o absurdo de que qualquer dos Poderes constituídos possa alterar a Constituição, substituindo-se ao poder constituinte de revisão que ela prevê e regula. Na verdade, isso tem sido desobedecido, invocando-se, com franqueza rude, o referido poder constituinte permanente e por quem apenas deveria aplicar a Constituição, supostamente ainda vigente. Ou a pretexto de civilizar o país, explorando sua versão de princípios vagos e em contradição a regras precisas e definidas. Nisto, um Poder não político impõe sua política, contrariando o que o povo quer, expresso pelos verdadeiros representantes do povo no Legislativo.
Retorno à normalidade constitucional é imperativo
O império da Constituição é condição sine qua non da democracia. Por isso ela prevê até um “guardião da Constituição” que mantenha todos os três Poderes nos limites que traça. E se um deles o ousa está, na linguagem popular, dando um “golpe”.
Ora, pretendidamente para alguns a defesa da democracia pode esquecer da Constituição, se faz não raro à revelia da Constituição.
Por isso, torna-se necessária a volta à normalidade, ou seja, ao império da Constituição. Do contrário, a porta ficará aberta para o arbítrio e a democracia perecerá em face de uma autocracia, ainda que seja esta movida por boas intenções, como o aponta a sabedoria popular.
Com efeito, o uso de meios antidemocráticos, se aparentemente servem para a defesa da democracia, na verdade contribuem para desmoralizá-la e destruí-la. Não se justificam por um estado de necessidade, nem com a invocação de uma democracia militante à moda de Loewenstein. Em ambos os casos, tornam-se o caldo de cultura que favorece as autocracias.
A volta à normalidade constitucional, ou seja, a volta à observância das competências e limites que a Lei Magna estabelece é imperativo evidente. Numa época de normalidade, não há desculpa para manter atos e processos extraordinários que a Constituição não prevê. Os que ela prevê são suficientes para defender a ordem constitucional democrática, complementados que são pela lei penal e processual vigentes, punindo os que a violem, ou violaram, para a defesa do Estado democrático de Direito, sem o contradizerem.
Tal volta é bem simples. Observe-se a separação dos Poderes. Basta, portanto, que o Executivo administre, o Legislativo legisle e o Judiciário se limite ao controle da compatibilidade dos atos com a Constituição e não vá além. Esta é fórmula traçada por Montesquieu para fazê-lo, pois como ele observou que “todo homem que tem poder é levado a dele abusar; vai até onde achar limites” (Espírito das Leis, Livro XI, capítulo4º).
E observa como moralista: “Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites”.
Siga-se, por exemplo, o disposto no artigo 97 desta: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais, declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
Texto que claramente exclui liminares monocráticas inconstitucionais perenes, ou quase, porque constituem a violação da Constituição, da democracia, do Estado de Direito, dos direitos fundamentais. Assim como não edite “leis” jurisprudenciais como lhe proíbe o artigo 103, § 2º da Constituição.
Uma exigência desta normalização é a revogação de atos como o Inquérito nº 4.781, de 14 de março de 2019, assinado pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, que visava a defesa da reputação de ministros dessa corte, com a designação, sem sorteio, do ministro relator. Portanto, já nascido com esse vício e certamente com excesso de poder, ultrapassando as normas do próprio Regimento do STF.
Bem faria o atual presidente da corte se, corajosamente, revogasse tal inquérito. Sem dúvida, tal medida “civilizaria” a governança brasileira. Ademais, poria fim a uma situação constrangedora para o país, que se assemelha por tudo isso a uma democracia “iliberal”, se iliberal pode ser uma democracia.
Tal inquérito pariu muitos “filhotes” cada vez mais autoritários, que ensejaram a proliferação de outros a pretexto de defender a democracia. Estes instauraram e instauram, ainda cinco anos depois, o arbítrio, a censura da liberdade de pensamento – o que é mais de uma vez proibido pela Carta Magna (v. artigo 5º, IX, e também artigo 220, § 2º).
Transformam ademais o garante da Constituição num tribunal de exceção – juízo que é expressamente vedado pelo artigo 5º, XXXVII – com procedimentos sigilosos. E julgam acusados sem prerrogativa de foro e em desrespeito aos direitos dos defensores de acusados – o que viola o devido processo legal – artigo 5º, LIII, LIV e LV. Não faltam exemplos dessas ocorrências. Todos os que se informam sabem bem deles.
Não se argumente com situações anômalas. Siga-se o exemplo romano. Terminada a situação que justificava a ditadura – sim, este era o nome que se dava à atuação de um cidadão em defesa das instituições –, terminavam os poderes extraordinários que ele havia recebido. E narra a história que, num caso bem conhecido, Cincinato, ditador romano, deixou o poder absoluto e voltou ao trabalho na charrua. Recorte-se ademais que, séculos mais tarde, a ditadura perpétua concedida a Júlio Cesar acarretou o fim da República em Roma.
Não há mais pandemia nem ameaças à democracia. Relembre-se a comemoração solene de 8 de janeiro passado.
Houve a posse do presidente eleito, livremente funciona o Congresso, nada obstrui o Judiciário, atua sem freio o Supremo Tribunal Federal.
Já tarda a volta à normalidade constitucional, que é a normalidade da democracia e a da Constituição-cidadã. Volte cada um a seu lugar e à sua tarefa.
Esse regresso que, na verdade, é um progresso servirá, inclusive, para apagar o radicalismo que tomou conta do país, servindo para eliminar suspeitas e partidarismos. E, ridiculamente, evitando-se que atos de pessoas atingidas pela perturbação mental sejam ameaça à democracia. Se isso fosse verdade, os Estados Unidos ou a Alemanha, que têm sofrido ações com dezenas de mortos, seriam democracias em risco, o que ninguém de bom senso admitiria.
Remoer o passado, mantê-lo em tela, não enseja o progresso, nem serve ao interesse econômico e social do povo brasileiro. Nem permite que se olhe para o futuro e se aprimorem as instituições, o que somente ocorre pelo consenso.
Assim, a demora em voltar à ordem constitucional desserve à própria democracia, pois impede que a vida do país se desenrole democraticamente.
Urge consequentemente pôr termo a condutas anticonstitucionais a pretexto de defender a democracia.
E já é tarde que isso se faça.
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