Fábrica de Leis

A força expansiva do processo estrutural e o direito de livre associação

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14 de janeiro de 2025, 8h00

Esta coluna tem registrado o esforço do Congresso Nacional para dotar o país de um anteprojeto de lei do processo estrutural [1]. A iniciativa mais recente foi a comissão de juristas instituída pelo presidente do Senado, formada por 22 especialistas, presidida pelo subprocurador-geral da República Augusto Aras e secretariada pelo desembargador federal Edilson Vitorelli. Instalada em junho de 2024, a comissão concluiu os seus trabalhos em 31 de outubro, com a apresentação de um anteprojeto de lei do processo estrutural brasileiro, que passará a tramitar como projeto de lei a partir do Senado.

O termo “processo estrutural” refere-se a situações de conflito social envolvendo políticas públicas (tidas por insuficientes para assegurar os direitos individuais e sociais a que se prestam), complexidade e pluralidade de atores, públicos e privados. São conflitos insolúveis pelas técnicas tradicionais da jurisdição, aquelas nas quais o juiz é um mero centro emissor de éditos de diagnóstico e prescrição. Quando a insuficiência de políticas públicas, sua inefetividade, é submetida ao arbitramento jurisdicional, o que se quer no processo estrutural é que o juiz lance mão de técnicas de cooperação e negociação que resultem numa uma solução efetiva e duradoura para o problema.

Este novo juiz, articulador de consensos, precisará estar dotado de um ferramental específico para presidir a bom termo processos estruturais. Será monitorado – o anteprojeto de lei prevê que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instaure mecanismos de avaliação da atividade dos juízes em processos estruturais –, mas também apoiado – se a causa for muito complexa, o juiz poderá ser liberado de suas outras funções para dedicar-se exclusivamente a um processo estrutural. Mutatis mutandis, isso valerá também para o Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia Pública.

Uma nova cultura da jurisdição e os movimentos sociais

Para além destes mecanismos de controle e apoiamento interno dos agentes estatais, o anteprojeto de lei prevê que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) criem uma base de dados sobre acordos e processos estruturais, encerrados e em andamento, com disponibilização ao público das principais peças processuais e de sumários em linguagem compreensível pelo leigo.

 

É de se esperar que a referida base de dados passe aos poucos a ser objeto de amplo conhecimento público, de estudos acadêmicos, de reportagens, de referências cruzadas em processos estruturais, ao ponto de chegar a constituir uma massa crítica, uma nova cultura da atuação judicial na composição de conflitos sociais complexos envolvendo pluralidade de atores com reflexos duradouros em políticas públicas voltadas à realização de direitos individuais e sociais.

A emergência dessa nova cultura da jurisdição – que demanda um novo juiz e um novo Ministério Público – tende a se espraiar pelo sistema jurídico para alcançar o que chamamos aqui em outro momento de “processos estruturais implícitos”:

“Mas, a rigor, não é necessário que um órgão julgador explicite que um litígio sob sua jurisdição é nominalmente um processo estrutural para que a estrutura conceitual e procedimental do processo estrutural se faça presente no impulso oficial que faz o processo avançar até a decisão. Dito de outra forma, sempre que o iter processual do processo estrutural seja condição para uma solução justa, o juiz deve desvestir-se dos instrumentos tradicionais de formação solitária (ou solipsista) do livre convencimento para fazer a persuasão racional fincar sua legitimidade na lógica decisional do processo estrutural.”

É previsível que tal natureza implícita do processo estrutural revele-se com força impositiva quando processos individuais – aparentemente não complexos – exigirem para o seu deslinde uma compreensão pelo julgador até mesmo da dinâmica interna dos movimentos sociais.

Spacca

Ao consagrar status constitucional ao direito de livre associação (artigo 5º, XVII) para a realização do programa constitucional da igualdade, o Constituinte reconheceu aos movimentos sociais poder de auto-organização nos limites do direito estatal.

A repartição funcional das competências do Estado reserva ao Judiciário a jurisdição (dizer o Direito). No exercício da liberdade de associação e auto-organização, os movimentos sociais produzem direito, o direito necessário à consecução dos fins sociais que lhe conferem valor social e legitimidade constitucional. Para ser fiel ao programa civilizatório da Constituição de 1988, o Judiciário, ao dizer o Direito, deve ter em conta a produção normativa dos movimentos sociais. Não como condição para a aplicação soberana do direito estatal, que não há de ser afastado nem restringido, mas para que se tenha a auto-organização dos movimentos sociais como fonte legítima de interpretação e aplicação da lei.

A produção do Direito é, não raro, conflitiva. Como na sociedade geral, nos movimentos sociais as maiorias se consolidam sob a forma jurídica. O que na sociedade são as fontes de produção do Direito estatal – o Parlamento, por excelência –, nos movimentos sociais são os colegiados formais e informais produtores das normas de natureza ético-comportamental e procedimental teleologicamente orientadas aos fins legítimos do movimento.

Assim como na sociedade, também nos movimentos sociais a legitimidade normativa interna resultante da prevalência das maiorias sobre as minorias há de ser interpretada pelo Judiciário em chave axiológica e teleológica: é justo e instrumentaliza o fim legítimo de assegurar direitos individuais e sociais por meio de políticas públicas a serem protegidas e aprimoradas pelo processo estrutural?

O tema, na aparência mera e vã indagação filosófica, revela-se fundamental para a produção de decisões judiciais justas, como revela a experiência recente. Voltaremos a ele oportunamente, mesmo porque ele é de ser considerado pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados no projeto de lei do processo estrutural brasileiro, cuja tramitação está em vias de iniciar.

Alea jacta est. 

 


 

[1] O processo estrutural contra a judicialização da política https://www.conjur.com.br/2024-abr-23/o-processo-estrutural-contra-a-judicializacao-da-politica/

Reconstrução do RS: New Deal e lei do processo estrutural brasileiro https://www.conjur.com.br/2024-mai-21/reconstrucao-do-rs-new-deal-e-lei-do-processo-estrutural-brasileiro/

STF e a constitucionalidade dalei do marco temporal: back lash e processo estrutural https://www.conjur.com.br/2024-jul-16/stf-e-a-constitucionalidade-da-lei-do-marco-temporal-backlash-e-processo-estrutural/

Desafios do processo estrutural: o estado da arte no Congresso e no STF https://www.conjur.com.br/2024-ago-20/desafios-do-processo-estrutural-o-estado-da-arte-no-congresso-e-no-stf/

A força expansiva da ideia de processo estrutural: limites e possibilidades https://www.conjur.com.br/2024-nov-02/a-forca-expansiva-da-ideia-de-processo-estrutural-limites-e-possibilidades/

A força expansiva do processo estrutural e os processos estruturais implícitos https://www.conjur.com.br/2024-dez-24/a-forca-expansiva-do-processo-estrutural-e-os-processos-estruturais-implicitos/

 

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