Reflexões processuais sobre a cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários
13 de janeiro de 2025, 21h17
A Lei Complementar nº 208, de 2 de julho de 2024, ao modificar a Lei Federal nº 4.320/1964 [1], dispôs, a rigor, que a União, o estado, o Distrito Federal ou o município poderá ceder onerosamente, direitos originados de créditos tributários e não tributários, inclusive quando inscritos em dívida ativa, a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Consoante a legislação citada, a cessão dos direitos creditórios preserva a natureza do crédito de que se tenha originado o direito cedido, mantendo as garantias e os privilégios do referido crédito; mantém inalterados os critérios de atualização ou correção de valores e os montantes representados pelo principal, os juros e as multas, assim como as condições de pagamento e as datas de vencimento, os prazos e os demais termos avençados originalmente; assegura à Fazenda Pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos; e, mediante operação definitiva, isenta o cedente de responsabilidade, compromisso ou dívida de que decorra obrigação de pagamento perante o cessionário [2].
De logo, deve-se registrar que não se trata de texto propriamente inovador no cenário jurídico brasileiro, haja vista, por exemplo, no estado de São Paulo, da Lei nº 13.723, de 29 de setembro de 2009, alterada pela Lei nº 17.293, de 15 de outubro de 2020 [3]; e no estado de Minas Gerais, da Lei nº 22.914, de 12 de janeiro de 2018, alterada pela Lei nº 23.090, de 21 de agosto de 2018 [4].
A questão que se submete imediatamente à reflexão é a seguinte: a cessão dos direitos creditórios é definitiva, independentemente de eventual desconstituição judicial pelo devedor ou contribuinte, ou seja, os negócios celebrados entre os entes da federação e as pessoas jurídicas de direito privado e/ou os fundos de investimento são considerados operações de venda definitiva de patrimônio público [5]. Todavia, eis, de fato, o ponto sob apreço, assegura-se à Fazenda Pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos [6].
Execução judicial compete à Fazenda Pública
Observa-se, como já esclarecido, que a cessão é operacionalizada em caráter definitivo, mas a execução judicial ou extrajudicial competiria à Fazenda Pública. Indaga-se: o cessionário, adquirente de parcela do patrimônio público, na forma da lei, não titularizaria direito de ação, pois dependeria dos agentes estatais para obter em juízo a conversão do crédito em pecúnia, ao final, quando fosse o caso? Diferentemente do que possibilitado pelo CPC, não seria o cessionário parte legítima para promover execução [7]?
Imaginem-se alguns simples exemplos: o devedor de crédito cedido onerosamente falece ou a pessoa jurídica devedora incorre em falência. Os agentes estatais deverão promover as medidas cabíveis, processualmente? E o cessionário, aguardar?
Nessa precisa observação, diferentemente, a legislação mineira, “assegura ao cessionário a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos” [8]. Certo que o tema é de direito processual, que compete à União legislar, privativamente [9]. Entretanto, essa matéria tem fundamento constitucional, artigo 5º, XXXV, da Constituição, e regida, inclusive, pelo CPC, que possibilita a atuação do titular do direito, no caso, o cessionário, para defender direito próprio [10].
Enfim, apresentado o problema, propõe-se interpretação sistemática, no que concerne à prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos à Fazenda Pública, de maneira que:
- essa prerrogativa limita-se à relação jurídica base, da qual deriva o direito autônomo ao recebimento do crédito [11];
- essa prerrogativa, ainda que se entenda ultrapassar a relação jurídica base, não afasta a atuação judicial ou extrajudicial, antecedente ou concomitantemente, do titular do crédito cedido, ou seja, do cessionário [12];
- essa prerrogativa pode ser modulada em negócio processual entre cedente e cessionário [13].
[1] Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
[2] Art. 39-A, § 1º e seus incisos da Lei nº 4.320/1964.
[3] https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/lei13723.aspx – acesso em 06/01/2025.
[4] https://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/leis/2018/l23090_2018.html -acesso em 06/01/2025.
[5] Art 39-A, § 4º, da Lei nº 4.320/1964.
[6] Art 39-A, § 1º, III, da Lei nº 4.320/1964.
[7] Art. 778, § 1º, III, do CPC.
[8] Art. 1º, § 1º, III, da Lei nº 23.090/2018.
[9] Art. 22, I, da Constituição Federal.
[10] Arts. 3º, 17, 18, do CPC.
[11] O direito autônomo ao recebimento do crédito não se confunde com a relação jurídica anterior entre cedente e devedor ou contribuinte.
[12] Essa atuação decorre do direito fundamental de ação do titular do direito adquirido, ou seja, do cessionário.
[13] Art. 190 e seu parágrafo único do CPC; art. 26, § 1º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (LINDB)
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