Opinião

O pilar 2 da OCDE e os desafios à sua compatibilidade com o Direito brasileiro

Autores

  • é advogado no Rio de Janeiro mestre em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP. Sócio do Maneira Advogados.

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  • é doutor em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) master of laws (LL.M.) em Direito Tributário Internacional (International Tax Law) pela Wirtschaftsuniversität Wien (WU) e sócio da área tributária do Maneira Advogados.

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13 de janeiro de 2025, 15h17

No dia 30 de dezembro de 2024 foi publicada a Lei nº 15.079/24 que instituiu o “adicional da CSLL”, consistente no Qualified Domestic Minimum Top Up Tax (QDMTT) que compõe o conjunto de regras GloBE (Global Anti-Base Erosion Rules), parte integrante do Pilar 2 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A sua finalidade é assegurar que os lucros de grandes grupos multinacionais apurados no Brasil sejam tributados a uma alíquota efetiva mínima de 15%, seguindo-se a ideia de criação de um “imposto mínimo global” para frear a competição fiscal internacional dos países para a atração de investimentos.

A adoção do Pilar 2 no Brasil foi justificada pelo governo federal como medida necessária para evitar que os lucros das multinacionais brasileiras viessem a ser tributados por outros países caso a alíquota efetiva brasileira de tributação sobre a renda corporativa ficasse abaixo de 15% [1]. Vale dizer que o Brasil é também membro do “inclusive framework”, ou seja, grupo dos países que se comprometeram politicamente com a adoção das regras GloBE.

Neste artigo, procuramos fazer uma breve reflexão, sem pretensão de exaustividade, sobre três potenciais incompatibilidades entre a Lei nº 15.079/24 e o ordenamento jurídico brasileiro: afronta ao princípio da anterioridade, limites ao poder regulamentar da Receita Federal e inconformidade com o conceito constitucional de renda.

Anterioridade

A Constituição prevê, no seu artigo 195, §6º, que as contribuições sociais — dentre as quais, a CSLL e o seu adicional do Pilar 2 — somente poderão ser exigidas “após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado”.

No caso do adicional da CSLL, a sua instituição foi originalmente prevista pela Medida Provisória nº 1.262/2024, publicada em 03/10/2024, com quase 90 dias de antecedência em relação ao início do ano de 2025. Vale dizer que o período de apuração do Adicional da CSLL é anual (ano-calendário), diversamente do lucro real que pode ser trimestral ou anual (com estimativas mensais).

No entanto, a Lei nº 15.079/24, que instituiu o adicional da CSLL no Brasil, não foi o fruto da conversão da MP nº 1.262/24, mas da aprovação do Projeto de Lei nº 3.817/24. A consequência disso é que, diversamente do que teria ocorrido na hipótese de conversão de MP (que possui força de lei desde a publicação), a aprovação do PL ocorre apenas com a publicação da Lei nº 15.079, em 30/12/2024, devendo ser contada a noventena a partir deste marco temporal, com o início da sua vigência em abril de 2025.

Ocorre que, a despeito disso, o inciso II do artigo 42 da lei prevê que a produção de efeitos da lei — no que importa para a instituição do adicional da CSLL — ocorrerá já em 1º de janeiro de 2025, o que nos parece contrariar a regra da anterioridade.

Diante da previsão de início de vigência já em 1º de janeiro de 2025, esta é uma questão que precisará ser judicializada.

 Não há como antecipar como os tribunais se posicionarão sobre o tema. No entanto, em precedentes recentes, o STF adotou postura flexível no tocante à regra da anterioridade, como ocorreu na ADC nº 84 [2], em que a restrição temporal foi afastada em situação na qual o Decreto nº 11.374, publicado em 01/01/2023, repristinou o Decreto nº 8.426/2015 e revogou o Decreto nº 11.322, publicado em 30 de dezembro de 2022, que reduziu as alíquotas. Na ocasião, o plenário entendeu que, diante da ausência da produção de efeitos da redução de alíquota das contribuições sociais, não teria havido majoração de tributo, restando preservados os princípios da segurança jurídica e da não surpresa.

A prevalecer o mesmo entendimento, a Fazenda Nacional poderá alegar que a publicação da MP com o mesmo conteúdo normativo do PL já teria “alertado” os contribuintes quanto ao Adicional da CSLL, afastando a necessidade de observância do princípio da anterioridade.

O equívoco deste raciocínio, no entanto, está em ignorar que medidas provisórias e projetos de lei são figuras distintas, sujeitando-se a regramentos próprios e ritos específicos de aprovação, não se podendo misturar ambos para “driblar” a aplicação do princípio da anterioridade.

Lei vs. IN (limites à legalidade tributária)

No Brasil, são frequentes os casos em que a administração tributária, a pretexto de regulamentar a matéria, extravasa o seu âmbito regulamentar introduzindo critérios que majoram o tributo devido ou impõem novas obrigações tributárias.

Um exemplo emblemático está na discussão sobre a legalidade da IN SRF nº 243/2002 que, sob o pretexto de regulamentar a aplicação do método PRL 60 de preços de transferência, previu fórmula de cálculo não amparada pela Lei nº 9.430/96. O tema foi amplamente discutido no Carf e no Poder Judiciário, tendo o STJ se manifestado em dois precedentes recentes sobre o tema de maneira diametralmente oposta: no primeiro caso, no sentido de reconhecer a ilegalidade da instrução normativa (1ª Turma) [3] e, no segundo, para reconhecer a sua legalidade [4] (2ª Turma).

Casos como este indicam que o mesmo tipo de discussão deverá se repetir em relação ao adicional da CSLL, especialmente em vista da elevada complexidade envolvida e do necessário alinhamento das regras brasileiras ao modelo da OCDE.

Assim, a introdução de novos conceitos jurídicos, de novos ajustes e de alterações na metodologia de cálculo buscando o seu aperfeiçoamento exige tempo de maturação, inclusive para a correta compreensão da linguagem adotada pela 15.079/24, repleta de cláusulas abertas.

A técnica legislativa adotada gera tensão com o princípio da legalidade, que busca conferir proteção ao contribuinte, certeza, confiabilidade, previsibilidade e calculabilidade em relação às normas que regulam a apuração dos tributos.

Curiosamente, a própria Lei nº 15.079/24 já anteviu este tensionamento ao prever no seu artigo 3º, §5º, que “qualquer atualização ou alteração dos conceitos (…) que resultar em aumento de carga tributária” deverá observar a anterioridade anual e nonagesimal.

É questionável a possiblidade de delegação ampla de poderes pelo legislador para a administração tributária federal, inclusive para a alteração de conceitos que impliquem majoração do Adicional da CSLL, justamente por afrontar o princípio da legalidade.

Em precedentes recentes, o Poder Judiciário tem se inclinado por uma posição menos formalista. No julgamento da constitucionalidade da Lei 10.666/2003, que criou o FAP prevendo uma ampla delegação ao Poder Executivo, prevaleceu o voto do ministro Luiz Fux que afirmou que, “embora o legislador deva efetuar uma regulação mínima dessas matérias, nem por isso está obrigado a regular rígida e pormenorizadamente todos e cada um dos elementos reservados à Lei” (tema nº 554/RG) [5].

O tema certamente voltará a ser desafiado pelos contribuintes no âmbito do Poder Judiciário.

Adicional da CSLL e Conceito Constitucional de Renda

Por fim, um terceiro tema que merece destaque é o potencial conflito entre as regras que definem a base de cálculo do adicional da CSLL com o conceito constitucional de renda, previsto no artigo 153, inc. III da Constituição.

Nos termos da Lei nº 15.079/24 e da IN RFB nº 2.228/24, a base de cálculo do adicional da CSLL deve ser apurada partindo-se do resultado contábil apurado segundo as IFRS — ou mediante uma regra contábil autorizada (no caso, a Brazilian GAAP é uma regra autorizada) — que deverá ser ajustado nos termos do Anexo I da lei.

Assim, deve ser apurado um “terceiro lucro” (Lucro ou Prejuízo Líquido GloBE) que será a base de cálculo do adicional da CSLL, ao lado do lucro contábil (para fins societários) e do Lucro Real (para fins tributários) hoje existentes. Evidentemente, esta terceira apuração traz custos e desafios para todas as empresas que passarão a lidar com um universo de regras e ajustes próprio ao adicional da CSLL.

A questão, no entanto, está em saber se as regras GloBE, ao determinar a apuração desse “terceiro lucro”, devem ser ater ao conceito constitucional de renda previsto no artigo 153, inciso III da Constituição. Vale dizer que, ao instituir o adicional da CSLL, a União está respaldada na regra de competência prevista no artigo 195, inc. I, alínea c da Constituição que permite a instituição da contribuição social sobre o lucro orientado pelos mesmos critérios aplicáveis à renda, dentre os quais a necessária apuração de um acréscimo patrimonial disponível (cf. artigo 43 do CTN).

 E, como se sabe, o conceito constitucional de renda impõe diversos ajustes ao lucro líquido para evitar a incidência sobre parcelas que não denotam acréscimo patrimonial, como é o caso das indenizações, os quais necessariamente devem ser refletidos na apuração do novel adicional da CSLL.

Este é o caso, por exemplo, da exclusão dos juros calculados à taxa Selic de indébitos tributários na apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL e da exclusão dos valores recebidos a título de indenização, conforme decidido pelo STF no tema nº 962/RG. Nesses casos, até o presente momento, não há regras específicas que excluam os referidos valores da base de cálculo do adicional da CSLL.

Os exemplos citados acima podem ser somados a diversos outros que evidenciam a incompatibilidade entre a base de cálculo adicional da CSLL e as normas e precedentes que progressivamente foram consolidando o conceito constitucional de renda no direito brasileiro.

Há, portanto, um potencial conflito entre as regras que orientam a apuração da base de cálculo do adicional da CSLL e os critérios orientadores do conceito constitucional de renda.

Notas finais

Como visto, após a aprovação da legislação que instituiu e já regulamentou o adicional da CSLL, há diversos questionamentos que devem ser enfrentados relativamente à sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, consideradas as suas particularidades. 

Essas e outras questões deverão ganhar ainda maior complexidade à medida em que as demais medidas que compõem as regras GloBE sejam implementadas no Direito Brasileiro.

 


 [1] Conforme a exposição de motivos da MP nº 1.262/24.

[2] STF, Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 84/DF, Rel. Min. Cristiano Zanin, 14.10.2024.

[3] STJ, Agravo em Recurso Especial nº 511.736/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgamento em 04.10.2022, DJe 27.10.2022.

[4] STJ, Recurso Especial nº 1.787.614/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, 2ª Turma, julgamento em 02.10.2023, DJe 15.04.2024.

[5] STF, Recurso Extraordinário nº 677.725/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 11.11.2021, DJe 16.12.2021

Autores

  • é advogado, sócio da área tributária do Maneira Advogados, doutor e mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da USP.

  • é professor do Mestrado Profissional em Direito Tributário Internacional e Comparado do IBDT; doutor em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP e sócio do escritório Maneira Advogados.

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