Opinião

Hipóteses de incidência de improbidade administrativa por ofensa ao patrimônio público digital

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  • é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

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13 de janeiro de 2025, 9h15

A entrada em vigor da Lei 14.129/2021 — Lei do Governo Digital (LGD) — amplia o conceito de “bem público” e “bens fundamentais”. Mencionada legislação tem por escopo o estabelecimento de princípios, regras e instrumentos para aumento da eficiência da administração pública, por meio da desburocratização, inovação, transformação digital e participação da cidadania. Consoante o conteúdo normativo disposto, pode-se antecipar três indicações de bens públicos digitais claras: a infraestrutura tecnológica do governo digital; o laboratório de inovação; e as plataformas do governo digital.

Igualmente do mesmo estatuto se observam princípios para a necessária orientação valorativa e funcionalidade, com destaque: simplificação das relações entre o poder público e a sociedade, mediante dispositivos móveis; criação de plataformas única para concentrar informações e acesso aos serviços públicos; transparência na execução dos serviços públicos e monitoramento da qualidade de referidos serviços; controle e fiscalização da administração pública; dever de prestação de contas pelo gestor público; facilitação no uso da linguagem; otimização do trabalho da administração pública.

Enfim, mencionada legislação tem impacto direto na forma como os órgãos públicos lidam com o patrimônio público digital, exigindo a adoção de boas práticas e governança para prevenir a improbidade administrativa.

Não se perde de vista que, na era digital, a administração pública brasileira tem se adaptado às novas tecnologias, resultando, via de consequência, a criação de acervo significativo de bens e patrimônios digitais. Esses ativos são fundamentais para a transparência, eficiência, modernização dos serviços públicos e expansão do conhecimento, o que transcende a mera informação [1].

Os dados públicos caracterizam-se como relevante ativo da administração pública. Informações sobre despesas, receitas, contratos e servidores públicos todas coletadas e armazenadas em bancos de dados. São referências de exposição material essenciais para a transparência, controle público e participação cidadã, permitindo que a população tenha acesso a contextos relevantes sobre a gestão pública, transformando a informação em conhecimento. E evidentemente que, além de ativos, também refletem custos, especialmente de qualidade, segurança e tecnologia.

Plataformas digitais para acesso a serviços públicos

Ademais, a administração pública utiliza determinadas plataformas digitais para facilitar o acesso aos serviços. Vale citar os “sistemas informáticos” para gerenciamento de dados, contratos e processos administrativos, como o Sistema Eletrônico de Informações (SEI) e o Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (Sisp), bem como os “portais eletrônicos”, como a interface “gov.br” que centralizam o acesso a serviços públicos diversos, promovendo a desburocratização e eficiência. No âmbito da justiça, as plataformas PJe ou MPe também são ampla demonstração deste “patrimônio público digital”. Nas universidades, as bibliotecas virtuais e os bancos de teses.

Spacca

Os documentos digitais gerados pela administração pública, como atos normativos, contratos e relatórios, são parte do patrimônio público digital. A preservação e a gestão adequada desses documentos são estruturais para garantir transparência, memória, controle e, via de consequência, responsabilidade no âmbito das gestões públicas.

De outro lado, a identidade digital dos cidadãos e dos servidores públicos, gerida por meio de sistemas virtuais públicos de autenticação e certificação, constituem “bens digitais vitais” (com estreita relação entre “uso pessoal” e “controle público”). Esse patrimônio garante a segurança da sociedade e do Estado e exige, em contrapartida, limites nas interações entre o cidadão e os Poderes Públicos, especialmente no âmbito da privacidade e autodeterminação informativa.

A administração pública digital apresenta características como agilidade, eficiência, transparência e acesso à informação. No entanto, também traz desafios inerentes, como a segurança cibernética, proteção dos ‘sujeitos virtuais’, capacitação de servidores, interoperabilidade de sistemas, entre outros. A implementação da governança digital deve buscar equilibrar essas características e enfrentar esses desafios, garantindo a integridade e a legalidade no uso dos recursos públicos digitais.

Feitas estas breves considerações, é possível verificar a formação do patrimônio público digital, mediante as seguintes espécies:

  • bens de informação digital, que incluem bases de dados públicas, documentos, publicações oficiais, bibliotecas e acervos digitais oferecendo conteúdo de acesso público;
  • bens de infraestrutura digital, compreendendo redes de comunicação e conectividade, ‘data centers’ e plataformas e sistemas de governo eletrônico para inclusão [2];
  • bens culturais e educacionais digitais, aqueles que englobam arquivos históricos, museus virtuais, obras de arte e recursos culturais digitais e, ainda, as plataformas de educação à distância e para auxílio nas instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão; e
  • bens de segurança e defesa digital, como sistemas de segurança cibernética, redes e sistemas de defesa nacional, além de informações e inteligência estratégica que são fundamentais para a proteção do patrimônio público digital.

Inclusão e acesso à informação

O patrimônio público digital desempenha função social na promoção da inclusão e acesso à informação, cultura e serviços públicos. Ampliando a participação cidadã, possibilita a transparência governamental, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social. Além disso, representa a identidade e memória da sociedade, sendo fundamental para a preservação e difusão do conhecimento.

Portanto, a essencialidade e relevância dos bens públicos digitais são inegáveis, influenciando de maneira significativa a vida das pessoas e o funcionamento do Estado, correspondendo em muitas hipóteses à noção de “bens fundamentais” [3], porque pertencente a todos, afetados para atendimento dos direitos fundamentais sociais e políticas públicas, especialmente aos vulneráveis. Não podendo ter suas finalidades afetadas desviadas.

Certos exemplos merecem atenção.

O acervo de jurisprudência dos tribunais brasileiros é um deles. A jurisprudência (law in action) é nata e pura consequência do exercício da função da judicatura para solução dos infinitos conflitos sociais. A produção jurisprudencial exige recursos públicos, esforços intelectuais, infraestrutura física e virtual, logo ela é um ativo (hoje especialmente digital) do patrimônio público. Entretanto, as chamadas “legaltechs” [4] colhem o manancial publicado, publicando-o em suas plataformas destinada ao mercado jurídico, em alguns casos, de forma “remunerada” conjuntamente a outros serviços agregados aos clientes. Com efeito, tratando-se de patrimônio público com acessibilidade a todos, passa a ser questionável a utilização para fins lucrativos pela empresa privada, fazendo-se da “praça pública o jardim”.

Também as pesquisas científicas e o acervo acadêmico das universidades públicas devem ser acessíveis a todos e assim preservadas, posto que bem fundamental. Contudo, a utilização privada desse material com finalidade lucrativa deve guardar a necessária contrapartida, sob pena de utilização indevida do patrimônio público.

Lei de Acesso à Informação

Pode-se dizer que ao lado da Lei 14.129/21 (lei do governo digital), o patrimônio público digital (e especialmente os bens públicos digitais) tem como marco regulatório a Lei nº 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação, que estabelece as normas, procedimentos e prazos para a divulgação de informações públicas. Outra importante legislação é a Lei nº 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece regras sobre a coleta, armazenamento, tratamento e compartilhamento de dados pessoais, impactando diretamente a gestão dos bens públicos digitais.

O controle e tutela do patrimônio público é realizado por conjunto importante de estatutos normativos.[5] Além das convenções internacionais de enfretamento à corrupção e outras formas de aniquilamento da coisa pública, com destaque à Convenção das Nações Unidas de Combate à Corrupção internalizada no Brasil [6], a Constituição, assim como a Lei de Ação Civil Pública, a Lei de Ação Popular, as leis eleitorais e, sobretudo, a Lei de Improbidade Administrativa constituem adequados modelos de preservação, defesa e proteção da coisa pública, inclusive digital.

É verdade que nenhum desses estatutos prevê diretamente o “meio digital” como patrimônio público de forma expressa. Com razão, porquanto a maioria deles passou a viger antes do advento da Internet, todavia isso não impede a utilização e aplicação das respectivas disposições, porquanto o conceito de patrimônio público digital é apenas funcional e distintivo das demais modalidades nomeadamente indicadas (propriedade pública, erário, direitos e haveres, na forma do parágrafo único do artigo 70 da Constituição), as disposições existentes, por sua vez, mais cuidam da proteção genérica, do que das espécies per se.

Esse mesmo ‘tratamento genérico’ do patrimônio público foi mantido pela Lei 14.230/21, que alterando abissalmente a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), optou exatamente no artigo 1º (parte geral e metodológica das modificações) [7] pela tutela mais ampla e adequada a todos os elementos materiais e econômicos que se inserem na universalidade pública.

Ruptura de regras

Por essa legislação modificadora, a improbidade, que tem assento constitucional, se ateve mais à ruptura de ‘regras’ (condutas reconhecidas e proibidas) do que descumprimento de princípios (orientações prima facie e abstratas), trazendo à lume a notória preocupação com a segurança jurídica necessária na tensão entre gestores-controladores-julgadores. Ou seja, a violação de princípios depende de violação de regras, o que difere totalmente da concepção original da Lei 8.429/92.

A nova legislação exige elementos exaustivos para reconhecimento da improbidade administrativa: em primeiro, a violação de deveres de honestidade, imparcialidade e legalidade (‘conduta’ qualificadamente proibida); em segundo, que essa violação seja concretizada no âmbito da organização do Estado (‘ambiente’ jurídico exigível); em terceiro, que a violação considere o exercício de função estatal (‘execução’ ou ‘inexecução’ de atos administrativos, instauração e desenvolvimento de processos administrativos e tomada de decisão jurídica); e, em quarto, lesividade ao patrimônio público (aspecto ‘econômico’), que em algumas hipóteses pode ser descartada.

Pois bem. As hipóteses de incidência da improbidade administrativa lesivas ao patrimônio público digital incluem atos como corrupção em processos licitatórios digitais mediante supressão indevida de recursos tecnológicos de controle; violação de normas de proteção de dados sob o controle e tratamento da administração pública para atendimento de solicitações de particulares, especialmente instituições financeiras e de crédito; a utilização de informações digitais privilegiadas pelo agente público, entre outros.

Essas condutas lesam os princípios e deveres de honestidade e legalidade, impactando diretamente o patrimônio público digital. Em muitas situações, a relação coordenada entre a Lei de Governança Digital, CDC, LGPD, LAI, Marco Civil da Internet e LIA será fundamental para garantir a conformidade com as normas de proteção de dados e a integridade na gestão dos recursos digitais.

Aplicação da LGPD

Mesmo que a Lei de Improbidade Administrativa estabeleça, mediante regras fechadas, as diversas possibilidades de reprimenda e repressão a condutas vedadas, isso não afasta a necessidade de conhecimento sistêmico do aparato normativo, especialmente para alguns casos a aplicação da LGPD que, como na hipótese do artigo 38, dispõe aos controladores responsáveis pela proteção de dados a elaboração de relatórios independentes de impacto à proteção de dados pessoais, inclusive de dados sensíveis.

Por isso, eventual lesão ao patrimônio público digital, inclusive compartilhamento ilícito de dados armazenados, especialmente aqueles com sigilo ou caracterizados pela segurança e inteligência estratégica, pode configurar clara hipótese de improbidade administrativa.

Nos termos da ‘nova’ LIA, o artigo 10, tem duas hipóteses possíveis de tipificação: inc. I (facilitar ou concorrer, por qualquer forma, para a indevida incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, de rendas, de verbas ou de valores integrantes do acervo patrimonial das entidades referidas no art. 1º desta Lei); e inciso II (permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie).

Da mesma forma o artigo 11, inciso III (revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado) e o inciso VI (deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades), afora outras também que dependerão do caso concreto.

Por fim, tratando-se de improbidade, não há dúvidas que o elemento do injusto (dolo) deverá estar comprovado, o que pela condição digital da situação pode não ser tarefa de difícil concreção, ainda mais quando o agente público utiliza os respectivos canais privados (e-mail, aplicativos de comunicação etc.) para noticiar, às escondidas, as atividades de interesse público às quais deveria dar tratamento legal.

 


[1] Pierre Levy. O que é o virtual? Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2023.

[2] Nicholas Gruen. Building the Public Goods of the Twenty-First Century. In https://www.onlineopinion.com.au/view.asp?article=18964

[3] Luigi Ferrajoli. Por uma carta de bens fundamentais. Revista Sequência. V. 60. Periódicos UFSC. Julho 2010, p. 29-73

[4] Ver FERREIRA, Keila Pacheco; TEIXEIRA, Túlio Rezende. Lawtechs e demandas consumeristas. In: MARQUES, Cláudia Lima [et. al.]. Direito do Consumidor Aplicado. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2023, p. 479.

[5] Fernando Rodrigues Martins. Controle do patrimônio público: improbidade – integridade – boas práticas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

[6] Aprovada pelo Decreto Legislativo 348, de 18.05.2005, e promulgada pelo Decreto Presidencial 5.687, de 31.01.2006

[7] Marçal Justen Filho. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

Autores

  • é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

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