Branqueamento do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC)
13 de janeiro de 2025, 7h14
Imagine que João, um candidato a prefeito que se autodeclara negro, receba R$ 50 mil do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Este fundo público foi criado justamente para fortalecer a participação política de grupos historicamente sub-representados. No entanto, logo após receber os recursos, João começa a fazer “doações” suspeitas: R$ 10 mil para José Neto (candidato autodeclarado branco), R$ 15 mil para Pedro Oliveira (também autodeclarado branco) e mais R$ 12 mil para Joaquim da Silva (igualmente autodeclarado branco) — tudo isso sob a frágil justificativa de custear “despesas compartilhadas” de serviços advocatícios que, na realidade, foram prestados por profissionais distintos, mediante contratos individualizados e objetos específicos, evidenciando a inexistência de qualquer compartilhamento real de despesas.
Ao final, dos R$ 50 mil recebidos para impulsionar sua candidatura, apenas R$ 13 mil foram efetivamente utilizados em sua campanha. Este é um exemplo clássico do que podemos chamar de “branqueamento do FEFC”.
O branqueamento do FEFC configura-se como uma prática fraudulenta sofisticada que subverte a destinação legal dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Através de um intrincado sistema de transferências diretas, rateios desproporcionais de supostas despesas compartilhadas e outros mecanismos contábeis complexos, recursos originalmente vinculados a candidaturas negras ou pardas são sistematicamente desviados para beneficiar candidaturas de pessoas autodeclaradas brancas, esvaziando financeiramente as campanhas que deveriam ser priorizadas e perpetuando as disparidades de representatividade no cenário político.
O FEFC e seu papel na democracia racial
O FEFC representa um marco na busca por uma democracia mais inclusiva e representativa no Brasil. Para entender seu papel transformador na promoção da igualdade racial, precisamos compreender tanto sua estrutura legal quanto seu propósito social.
Imagine que você está observando o plenário de uma Câmara Municipal típica brasileira. O que você vê? Provavelmente uma predominância significativa de homens brancos, um cenário que não reflete a diversidade da nossa população. O FEFC surge justamente como uma ferramenta para ajudar a corrigir esse desequilíbrio histórico.
Como funciona? A legislação eleitoral, especialmente através do artigo 17, §6º da Resolução TSE nº 23.607/2019, estabelece uma regra clara: “A verba do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) destinada ao custeio das campanhas femininas e de pessoas negras deve ser aplicada exclusivamente nestas campanhas, sendo ilícito o seu emprego no financiamento de outras campanhas não contempladas nas cotas a que se destinam.”
Para isso, os partidos são obrigados a criar contas bancárias específicas para gerenciar esses recursos. Por exemplo, quando um partido recebe recursos do FEFC, ele precisa segregar em contas distintas os valores destinados às candidaturas negras e pardas.
O propósito é inequívoco: garantir que o dinheiro público seja efetivamente usado para promover maior diversidade na política. Não se trata apenas de distribuir recursos, mas de criar condições reais para que candidatos negros e pardos possam competir em condições mais equitativas.
A importância dessa destinação específica é tão grande que o artigo 11 da Resolução TSE nº 23.735 de 2024 estabelece uma proteção adicional: mesmo que o valor desviado seja pequeno, o desvio de finalidade desses recursos é considerado uma violação grave. Em outras palavras, não importa se foram desviados R$ 1.000 ou R$ 100 mil. O sistema jurídico entende que qualquer desvio compromete o objetivo de promover maior representatividade racial na política.
Quando funciona corretamente, o FEFC pode ser um poderoso instrumento de transformação social, permitindo que candidatos negros e pardos tenham recursos para realizar campanhas mais efetivas, alcançar maior visibilidade, competir em condições mais igualitárias e construir bases eleitorais sólidas.
No entanto, como veremos, este sistema encontra-se sob grave ameaça diante de práticas que burlam seu propósito original.
Mecanismos do branqueamento: das práticas simples às sofisticadas
O branqueamento do FEFC ocorre através de diferentes mecanismos, que vão desde esquemas simples até arranjos sofisticados. Vamos explorar essas práticas começando com as mais diretas até as mais complexas.
Imagine uma escada do branqueamento, onde cada degrau representa um nível maior de sofisticação na tentativa de burlar o sistema. Vamos subir essa escada:
1º degrau – transferência direta: a forma mais simples e direta de branqueamento ocorre quando um candidato negro ou pardo que recebeu recursos do FEFC simplesmente transfere parte desses recursos para candidatos brancos. Por exemplo, um candidato negro recebe R$ 50 mil do FEFC e faz uma transferência direta de R$ 20 mil para um candidato branco. Esta prática é flagrantemente ilegal e facilmente detectável nas prestações de contas.
2º degrau – despesas compartilhadas desproporcionais: este é um mecanismo mais sofisticado. Funciona assim: um grupo de candidatos (brancos e negros) contrata serviços compartilhados (advocacia, contabilidade, marketing). O pagamento, que deveria ser dividido proporcionalmente, acaba sendo custeado majoritariamente pelos candidatos que receberam recursos do FEFC. O benefício real dos serviços favorece desproporcionalmente os candidatos brancos.
3º degrau – triangulação sofisticada: o esquema mais complexo envolve uma série de operações aparentemente legais. Candidatos autodeclarados negros ou pardos, após receberem recursos do FEFC, realizam transferências para as estruturas partidárias, que subsequentemente promovem eventos ou contratam serviços supostamente “coletivos”. Por meio dessa engenharia financeira, embora as despesas sejam custeadas primordialmente com recursos do FEFC originalmente destinados a candidaturas negras, o proveito econômico é direcionado predominantemente a candidatos autodeclarados brancos, esvaziando a política afirmativa de seu propósito legal.
Para ilustrar a gravidade, vejamos um exemplo real (com nomes fictícios): O candidato Paulo (autodeclarado pardo) recebeu recursos do FEFC e transferiu R$ 8.580 para Roberto (autodeclarado branco). Este valor representou 92,53% de todos os recursos da campanha de Roberto. Em outras palavras, a campanha de um candidato branco foi quase integralmente financiada com recursos destinados a promover candidaturas negras.
Outro exemplo envolve despesas compartilhadas. Em princípio, não há vedação legal a esse tipo de arranjo — e a própria jurisprudência do TSE reconhece sua legitimidade quando há benefício real e efetivo para a candidatura que recebeu os recursos do FEFC (como estabelecido no RO-EL 0602902-30/SC). O problema surge quando o compartilhamento é meramente formal e desproporcional: um candidato negro contrata serviços de marketing no valor de R$ 30 mil com recursos do FEFC, supostamente para beneficiar um grupo de cinco candidatos, mas além do material produzido destacar predominantemente os candidatos brancos do grupo, com menções apenas superficiais ao candidato negro, a despesa é integralmente ou majoritariamente custeada pela candidatura negra, sem qualquer contrapartida financeira relevante dos demais beneficiados. Neste caso, embora formalmente se trate de uma despesa compartilhada, na prática configura-se o branqueamento do FEFC tanto pelo desvio de sua finalidade legal quanto pela ausência de real compartilhamento dos custos.
O que torna esses mecanismos particularmente insidiosos é sua capacidade de se camuflar como práticas regulares de campanha. Uma transferência pode ser justificada como “apoio entre candidatos do mesmo partido”. Uma despesa compartilhada desproporcional pode ser apresentada como “otimização de recursos”. São argumentos que parecem razoáveis à primeira vista, mas que, sob análise mais detida, revelam-se como sofisticados instrumentos de desvio de finalidade que, a um só tempo, frustram o objetivo de maior representatividade racial na política, perpetuam desigualdades históricas e minam a efetividade das ações afirmativas, comprometendo a integridade do processo eleitoral.
O impacto do branqueamento na representatividade política
Imagine uma corrida onde alguns atletas já partem da metade do percurso. Agora pense que eles ainda conseguem convencer os corredores que largaram lá atrás a lhes emprestar seus tênis de corrida. É assim que o branqueamento do FEFC funciona.
O dano é multiplicador. Primeiro, temos o impacto direto nas campanhas que deveriam ser beneficiadas. Candidatos negros e pardos, que já enfrentam barreiras históricas para participação política, veem seus recursos sendo drenados através de esquemas sofisticados de branqueamento.
O impacto na estrutura democrática é igualmente profundo. Quando descobertos, estes esquemas de branqueamento não só mancham reputações individuais. Eles corroem a própria credibilidade do sistema de financiamento público de campanhas. Cada caso revelado alimenta o ceticismo sobre a efetividade das ações afirmativas no campo político. É como se cada escândalo de branqueamento fornecesse munição para aqueles que sempre se opuseram às políticas de inclusão racial.
O efeito desencorajador é particularmente nocivo. Potenciais candidatos negros e pardos, ao perceberem como os recursos que deveriam fortalecer suas candidaturas são sistematicamente desviados, podem desistir antes mesmo de tentar.
Quando um candidato negro recebe R$ 50 mil do FEFC e transfere R$ 37 mil para candidatos brancos, não estamos diante de uma simples irregularidade contábil. Estamos testemunhando a subversão ativa de uma política pública criada para democratizar nossos espaços de poder. É a transformação de um instrumento de inclusão em mais uma ferramenta de exclusão, num processo que não apenas mantém, mas ativamente reforça as desigualdades que o FEFC deveria ajudar a combater.
Conclusão
O branqueamento do FEFC representa uma das mais sofisticadas formas de minar políticas afirmativas no sistema eleitoral brasileiro. Começamos nossa análise entendendo como o Fundo Especial de Financiamento de Campanha foi concebido para promover maior diversidade na política, oferecendo recursos específicos para candidaturas negras e pardas. É uma ferramenta poderosa que poderia transformar o perfil da nossa representação política.
No entanto, como vimos, práticas de branqueamento têm sistematicamente enfraquecido esse potencial transformador. Dos métodos mais simples, como transferências diretas, até esquemas complexos envolvendo despesas compartilhadas, o branqueamento drena recursos que deveriam fortalecer candidaturas negras e pardas. O resultado é a perpetuação de desigualdades históricas sob uma aparência de legalidade.
O impacto dessa prática vai muito além dos números nas prestações de contas. Quando recursos destinados a promover diversidade são desviados, comprometemos, além de campanhas individuais, o próprio projeto de uma democracia mais representativa. É um ciclo perverso que mantém as estruturas tradicionais de poder enquanto frustra tentativas legítimas de mudança.
As consequências jurídicas e contábeis do branqueamento são severas, incluindo cassação de mandatos, nos termos do artigo 30-A da Lei nº 9.504/1997, e a devolução de recursos ao erário. Não importa se o valor desviado foi pequeno ou grande — a Resolução TSE nº 23.735/2024, em seu artigo 11, determina, de maneira explícita, que a gravidade da conduta está no desvio de finalidade, e não no valor em si. No campo contábil, as contas de campanha devem ser rejeitadas, o que por si só já é um problema sério. E aqui há um detalhe importante: mesmo que as contas tenham sido inicialmente aprovadas, isso não impede uma investigação posterior.
Mas talvez a consequência mais grave seja menos tangível: a erosão da confiança nas políticas afirmativas. Cada caso de branqueamento descoberto alimenta o ceticismo sobre a efetividade dessas políticas.
No fim, o branqueamento do FEFC nos coloca diante de um espelho que reflete muito além das irregularidades eleitorais. Ele expõe as resistências profundas à mudança em nossa sociedade e nos força a questionar: se desviar dinheiro público é crime grave, o que dizer de desviar recursos especificamente destinados a corrigir desigualdades históricas? Não seria este um crime ainda mais perverso contra nossa democracia?
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