A arte de evidenciar questões jurídicas: uma nova perspectiva sobre a prática processual
13 de janeiro de 2025, 13h18
Chega a ser uma arte evidenciar questões jurídicas nas peças processuais e na prática forense. O sistema judicial brasileiro move-se fundamentalmente pela forma como estas questões são apresentadas, discutidas e julgadas, revelando uma verdade nem sempre explícita: a decisão judicial e a petição são, essencialmente, lados opostos da mesma moeda.
Esta arte manifesta-se de maneira particularmente clara quando analisamos os grandes casos que moldaram a jurisprudência brasileira. Por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão da união homoafetiva, a discussão transcendeu aspectos meramente formais para atingir o núcleo da controvérsia: a própria interpretação constitucional do conceito de família. A questão jurídica central emergia clara: a possibilidade de extensão do regime jurídico da união estável às uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Neste contexto, emerge uma perspectiva inovadora que aproxima dois elementos aparentemente distintos, mas umbilicalmente conectados: as decisões judiciais e as petições dos advogados. Esta conexão revela a Teoria do Paradigma Reverso das Petições Processuais na compreensão e operacionalização do Direito, em que as questões jurídicas centrais assumem protagonismo absoluto nas peças processuais, mesmo que uma parte dos operadores não tenha consciência disso.
O tema das questões jurídicas, embora não seja corriqueiro no debate acadêmico, permeia, mesmo que silenciosamente, todo o discurso jurídico. Conscientemente ou não, os operadores do direito as manejam cotidianamente em suas petições, às vezes, sem perceber que é justamente a questão jurídica que define o resultado da demanda.
A questão jurídica nada mais é que a controvérsia dependente de julgamento, e a questão jurídica central é a controvérsia nuclear e fundamental que será objeto de julgamento, solução, procedência ou improcedência.
Na prática, a identificação da questão jurídica central exige do operador do Direito um exercício de depuração. Tome-se como exemplo uma ação de responsabilidade civil por erro médico: embora os fatos possam ser complexos e as provas abundantes, a questão jurídica central pode residir na caracterização ou não do nexo causal entre a conduta médica e o dano alegado. Esta capacidade de síntese e foco é o que distingue uma petição realmente eficaz.
O grande desafio reside no fato de que a prática jurídica tradicional frequentemente se perde em narrativas extensas e citações doutrinárias que, embora eruditas, podem obscurecer o verdadeiro cerne da controvérsia. O paradigma reverso propõe inverter essa lógica, colocando as questões jurídicas centrais no ápice das discussões, o que otimiza a prestação jurisdicional, ao mesmo tempo em que transforma a própria essência do trabalho dos operadores do Direito.
Para identificar a questão jurídica central em um caso concreto, o advogado pode seguir um roteiro metodológico preciso: primeiro, detectar os pontos de divergência; segundo: formular a questão central que demanda resposta judicial, ou seja, a indagação que define o julgamento; terceiro: isolar os fatos e fundamentos juridicamente relevantes, as normas potencialmente aplicáveis, ambos umbilicalmente conectados com a controvérsia central.
Este processo de destilação é fundamental para a construção de uma tese jurídica sólida, uma narrativa concisa, objetiva e direta ao ponto. É notável como este tema permanece oculto e inexplorado no cotidiano forense. Apesar de sua importância central para a prática jurídica, a identificação e o manejo das questões jurídicas nucleares raramente são discutidos de forma explícita ou sistemática. Este silêncio acadêmico e doutrinário contrasta fortemente com a relevância do tema, que opera discretamente nos bastidores de toda atuação jurídica eficaz.
Sob o mesmo ponto de vista, quando um tribunal publica uma súmula, realiza exatamente este exercício de identificação da questão jurídica central, ainda que este processo metodológico não seja expressamente anunciado, ou seja, implicitamente.
Este ato transcende a mera compilação de decisões reiteradas — representa a cristalização de um entendimento que visa pacificar determinada controvérsia dependente de julgamento (questão jurídica central).
A súmula emerge como instrumento de estabilização do sistema, conferindo previsibilidade e segurança jurídica aos jurisdicionados. É a expressão máxima da resolução de processos reiterados. De forma análoga, a função do advogado é discorrer evidenciando a questão jurídica central, apresentando-a de maneira clara e objetiva. A finalidade é lançar luz ao que define o julgamento, sob a perspectiva de uma solução a uma indagação, pois o raciocínio subjacente ao ato de decidir é eminentemente questionador.
A relação entre questões jurídicas e precedentes judiciais merece especial atenção. Os precedentes não são meras decisões isoladas, mas respostas qualificadas a questões jurídicas específicas. Dominar esta dinâmica é essencial para uma advocacia moderna e eficaz.
Esta simetria entre decisão judicial/súmulas e petições revela que são faces opostas da mesma moeda. Ambas compartilham o objetivo fundamental da resolutividade: a súmula o faz estabelecendo um entendimento uniforme; a petição, destacando a controvérsia central e apontando o caminho para sua solução.
O verdadeiro diferencial do advogado não está na extensão de suas peças ou no volume de citações, mas em sua capacidade de identificar com precisão a questão jurídica central, apresentá-la de forma clara e objetiva, e fundamentar seus argumentos em torno desta questão nuclear.
Este trabalho exige uma compreensão profunda não apenas do direito material, mas também da dinâmica processual e da função resolutiva do sistema jurídico. Nós, operadores do Direito, somos solucionadores de questões jurídicas. E ponto!
Na elaboração de recursos, por exemplo, a identificação precisa da questão jurídica assume importância ainda maior. Vejamos: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia” (Súmula 284 do STF).
As questões jurídicas, além de serem o coração pulsante da relação jurídico-processual, constituem a verdadeira matéria-prima do trabalho tanto dos tribunais quanto dos advogados. Este elemento nuclear transcende a mera aplicação mecânica de normas, configurando-se como o verdadeiro motor do desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário.
Enaltecer a questão jurídica central não é apenas uma técnica processual — é uma metodologia que transforma a própria prática jurídica. Esta técnica otimiza a prestação jurisdicional, facilita a compreensão da controvérsia, acelera a resolução do conflito e contribui para a evolução do sistema jurídico.
O advogado que domina esta arte produz petições mais efetivas, desenvolve uma argumentação mais precisa e pode alcançar maior índice de sucesso em suas demandas. A prolixidade comumente encontrada nas petições gera aversão ao leitor – o magistrado – que julgará o seu caso.
A técnica de evidenciação da questão jurídica central pode ser aprimorada através de algumas estratégias específicas: a utilização de tópicos destacados no início da peça, sintetizando a questão central; o desenvolvimento de uma linha argumentativa que orbite o ponto nuclear; a utilização de precedentes que efetivamente enfrentaram a mesma questão jurídica individualizada; e a construção de um pedido que reflita diretamente a solução para a questão apresentada.
Efeito gravitacional
A adoção deste paradigma produz reflexos diretos na qualidade da prestação jurisdicional. Para o Judiciário, representa melhor compreensão das demandas, decisões mais focadas e maior celeridade processual. Para os advogados, significa o desenvolvimento de uma advocacia mais estratégica e efetiva, capaz de influenciar positivamente o desenvolvimento do direito.
O impacto desta metodologia na formação da jurisprudência é significativo. Quando os advogados conseguem identificar e apresentar com clareza as questões jurídicas centrais, contribuem para a formação de precedentes mais sólidos e úteis. A jurisprudência deixa de ser um amontoado de decisões para se tornar um verdadeiro sistema de resolução de questões jurídicas, oferecendo respostas claras para problemas específicos. É transformar o sistema numa fonte de pronto atendimento.
O futuro da prática jurídica passa necessariamente por esta compreensão. Em um cenário de crescente complexidade e volume de demandas, a capacidade de identificar e apresentar com clareza as controvérsias dependentes de julgamento torna-se cada vez mais valiosa. Este é o caminho para um sistema jurídico mais célere, eficaz e verdadeiramente focado na resolução dos conflitos que lhe são apresentados.
Este novo paradigma exige uma mudança na própria formação jurídica. As faculdades de direito precisam desenvolver em seus alunos não apenas o conhecimento do ordenamento jurídico, mas principalmente a capacidade de identificar e traduzir os conflitos em questões jurídicas centrais. Esta habilidade, mais do que qualquer conhecimento específico, é o que definirá o sucesso do profissional do direito no futuro.
No entanto, essa mudança somente será possível se o estudante incorporar o desenvolvimento e habilidade de elaboração de sentenças, pois é ali que o raciocínio jurídico voltado à resolução de conflitos expõe a lógica do sistema processual.
É condição para a elaboração de peças processuais que se aprenda a elaborar sentenças, pois o raciocínio decisório é a chave para entender todo o sistema processual e adquirir um padrão de petição resolutiva.
É como se houvesse um “efeito gravitacional” — quanto mais bem estruturada e focada na questão central for a petição, mais a decisão tenderá a convergir para aquele ponto específico.
O advogado eficaz deve dominar não apenas o direito material, mas também a linguagem técnica e o raciocínio próprios da atividade decisória. Isso significa incorporar em suas peças conceitos fundamentais do pensamento judicial: a identificação precisa das questões controvertidas e incontroversas, a compreensão da dinâmica do ônus probatório e sua desincumbência, sempre organizando estes elementos em torno da questão jurídica central.
Esta apropriação da linguagem e do método decisório não é mera formalidade – é uma ferramenta essencial que permite ao advogado estruturar suas petições de forma mais alinhada com o raciocínio que o magistrado utilizará ao decidir.
A compreensão e aplicação desta metodologia representa um salto qualitativo na prática jurídica, transformando não apenas a forma de peticionar, mas a própria maneira de pensar o direito processual.
O futuro da advocacia passa necessariamente por esta revolução silenciosa na forma de identificar, apresentar e resolver questões jurídicas nas petições processuais.
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