EMBARGOS CULTURAIS

O general em seu labirinto, de Gabriel García Márquez

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12 de janeiro de 2025, 8h03

O bom romance histórico tem que ter romance e tem que ter história. Uma história bem fundamentada e documentada, a ponto de iludir o leitor, que julga ler um texto didático, pode resolver a fragilidade do romance. Ainda que muitos enredos e vidas sejam verdadeiros romances, a exemplo da singular história de Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar Ponte y Palacios Blanco. Refiro-me a Simón Bolívar, o Libertador das Américas, o herói criollo que sonhou o panamericanismo.

O general em seu labirinto, de Gabriel García Márquez (Gabo), trata dos últimos dias da vida de Bolívar. É certamente o romance histórico mais meticuloso que li. Assim como o Novo Testamento narra, na essência, os últimos dias da vida do Salvador, o escritor colombiano num texto enxuto, sublime e esmiuçador narra o fim da vida de Bolívar. Um triste fim, como triste também foi o fim de Gabo.

O autor estudou Direito e Ciência Política em Bogotá. Não concluiu os cursos. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura de ficção. Memorialista também, aproximou passado e presente, mediando o encanto de uma prosa simples e ao mesmo tempo hermética, com raízes e lembranças que se perdem e que remontam à Guerra dos 1.000 Dias, travada intestinamente na Colômbia entre 1899 e 1902.

García Márquez remete-nos, assim, aos tempos de Rafael Nuñez, Miguel Antonio Caro, Manuel Antonio Sanclemente, José Manuel Marroquin e outros personagens da República Granadina. Liberais e conservadores reproduziram na Colômbia a saga dos “tories” e ‘whigs”, porque os há em todos os lugares, inclusive no Brasil dos saquaremas e luzias.

Os conservadores colombianos assimilaram as ideias do tradicionalismo europeu. Juan Donoso Cortés e José de Maistre foram os heróis intelectuais dos publicistas colombianos que se reuniam em torno do jornal La Civilización. Contra eles, os liberais, que compunham a trupe do jornal El Aviso, ideário que circundou em torno de nomes como Ezequiel Rojas e Vicente Azuero.

É nesse mundo que viveu o avô de García Márquez, o coronel Nicolás, que lutou ao lado do caudilho Uribe. O avô é alguma inspiração a José Arcadio Buendía, fundador de estirpe de personagens, que confunde o leitor menos atencioso, ao lado da não menos real e ao mesmo tempo imaginária Úrsula Iguarán. Não por acaso a avô de Gabriel chamava-se Tranquilina Iguarán.

Literatura e realidade, reminiscências e referências, ideias e fatos, são instâncias que se confundem e que se apartam nas páginas de literatura de primeiríssima qualidade que nos legou García Márquez. Ativista político, amigo de Fidel Castro, de Jorge Amado, elogiado por Bill Clinton (que o comparou a William Faulkner), Gabriel García Márquez é o intelectual latino-americano que transcendeu o trauma do europeu colonizador, a quem se culpou pela espada, pela cruz e pela fome, que dizimaram as famílias selvagens.

Essa obsessão com temas latino-americanos é o eixo condutor do argumento de O general em seu labirinto. A exemplo dos Evangelhos, que suscitam referências a toda a vida do Mestre, O general em seu labirinto é uma permanente alusão a vários momentos da trajetória do Libertador.

O narrador onisciente parece ser a voz de Bolívar, e aí há uma certa dose (altíssima) de realismo fantástico. Por exemplo, ainda que tratando do fim da vida de Bolívar, García Márquez refere-se até a infância do general. Perceba-se o rigor de pormenores: “O doente [Bolívar] piorou ainda mais no fim de semana, por causa de um copo de leite de jumenta que tomou por sua conta e risco, escondido dos médicos. Sua mãe o tomava morno, com mel de abelhas, e assim lhe dava quando muito criança, para aplacar a tosse”.

O general em seu labirinto é um roteiro de ambições, traições, emboscadas. O fim de Bolívar é um fim de ressentimentos. O herói está em constante movimento, parece que nem dorme, ou que dorme pouco, ou que é um sonâmbulo. É um desassossego perpétuo. Bolívar, como descrito por Gabo, é uma figura lírica, que chama as lágrimas quando se faz referência à orfandade e a viuvez. Ficou órfão ainda menino. E ficou viúvo aos 20 anos.

A exatidão (ou pretensa exatidão) da narrativa é impressionante. O autor refere-se a uma conversa entre Bolívar e um Bispo, que teria ocorrida exatamente em 14 minutos. Há referências a visitas de Garibaldi (que andou pelo Brasil e pela Argentina), que morreu festejado como o “herói dos dois mundos” e de Herman Melville, o autor de Moby Dick, que morreu esquecido na mais completa obscuridade. É singular uma comparação subliminar entre o fim desses três personagens, o que sugere uma previsão intuitiva do fim de García Márquez, já sem memória, como descreve seu filho Rodrigo em Gabo & Mercedes.

O escritor aproveita para acertar contas com várias figuras históricas, a exemplo de Benjamin Constant, que Gabo chama de “vira-casaca”, na suposta voz de Bolívar. Benjamin Constant serviu e criticou a todos os regimes. Sua relação com Napoleão é um exemplo de amor e ódio na política. O título do livro, não se preocupe leitor, é explicado praticamente na última página.

A sessão de agradecimentos, ao fim do livro, é um roteiro de crítica genética, isto é, aquela crítica literária que se ocupa em saber os caminhos que o autor trilhou para construir seu livro. A leitura dessa sessão final sugere que O general em seu labirinto pode ser muito mais um livro de história do que um romance.

E se o realismo fantástico fantasia a realidade com absoluto senso de realidade, o romance histórico dessa vertente literária realiza a fantasia com absoluto senso de historicidade. Bolívar, na criação de García Márquez é exemplo de uma “infinita capacidade de esperança”.

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