Opinião

Reurb em área de preservação permanente e a Lei Federal 14.285/2021

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  • é especialista em Direito Ambiental e Urbanístico (PUC-MG) especialista em Direito da Mineração (Cedin) especialista em Direito Imobiliário (Damásio) especialista em Direito Registral e Notarial (Faculdade Baiana de Direito) pós- graduanda em Direito do Agronegócio (Ebradi) e consultora jurídica ambiental e urbanística para o setor público.

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11 de janeiro de 2025, 15h17

O texto constitucional atribui aos municípios a competência para a ordenação do solo urbano brasileiro (artigo 182, caput, da Constituição). Isso quer dizer que o Poder Executivo Municipal deve se preocupar em fiscalizar todas as intervenções que eventualmente ocorram em seus territórios.

Normalmente, cabe ao órgão ambiental e de infraestrutura local realizarem o licenciamento autorizativo de novos empreendimentos imobiliários, sejam eles promovidos pelo poder público ou pela iniciativa privada.

Ocorre que é bem comum a execução de construções, condomínios e até mesmo bairros sem o devido crivo municipal, estabelecido pela Lei Federal nº 6.766/79, norma que traz as diretrizes gerais sobre o parcelamento do solo urbano brasileiro.

Nesses casos, seria dever dos órgãos municipais coibir tais edificações ilegais, por meio da aplicação de sanções (multa, interdição, demolição, etc) aos possíveis infratores, além de promoverem a resolução de eventuais questões sociais por trás dessas ocupações, como a realocação de famílias ocupantes classificadas como hipossuficientes.

Quando o Estado falha na execução dessa competência fiscalizatória, tem-se a consolidação de um núcleo irregular que, muitas vezes, é permeado por uma série de problemas de ordem urbanística, como a ausência de planejamento estrutural, capaz de fazer com que a população não tenha o devido acesso a serviços públicos e a padrões mínimos de infraestrutura exigidos pela Lei Federal nº 6.766/79, até questões ambientais delicadas, relacionadas à ocupação de espaços ambientalmente protegidos.

Regularização de ocupações

Diz-se que a intervenção nesses ambientes sensíveis é uma questão séria porque, além de tal ação ir de encontro aos anseios constitucionais para essas áreas, previstos no artigo 225, §1º, III [1] da Lei Magna, muitas vezes ela também coloca em risco a saúde, segurança e a vida dos ocupantes.

Spacca

Diante da falha estatal para evitar a consolidação de núcleos urbanos informais, bem como da sua decisão pela manutenção da área [2], faz-se necessário que o Estado promova a regularização das ocupações, até mesmo quando situadas em espaços ambientalmente protegidos, conforme as peculiaridades que serão tratadas a seguir.

Para fins de Reurb, tem-se como espaços ambientalmente sensíveis relevantes as Áreas de Preservação Permanente (APP) (e aqui se inclui as áreas de proteção de mananciais, nos termos do artigo 4º, IV, da Lei 13.465/17), as unidades de conservação de uso sustentável [3] e as áreas de risco [4]. Quaisquer ocupações nessas localidades, seja total ou parcialmente, terão regras de regularização específicas.

O artigo 3º, II, da Lei Federal nº 12.651/2012 (Código Florestal Brasileiro) entende por Área de Preservação Permanente (APP) o espaço protegido, coberto ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

O artigo 4º do Código Florestal traz um rol taxativo das localidades consideradas como Áreas de Preservação Permanente. Quando determinado núcleo estiver situado nessas localidades, seja total ou parcialmente, o artigo 11, §2º, da Lei da Reurb indica que, para ocorrer a regularização, é necessária a realização de estudos técnicos que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, inclusive por meio de compensações ambientais, quando for o caso.

Projeto de regularização fundiária

Esses estudos deverão ser elaborados por profissional legalmente habilitado, devendo ser compatíveis com o projeto de regularização fundiária e conter, conforme o caso, os elementos constantes dos artigos 64 ou 65 do Código Florestal (artigo 11, § 2º, L. 13.465/17).

O Artigo 64 da Lei 12.651/12 trata dos estudos técnicos necessários para a regularização dos núcleos classificados como de interesse social (Reurb-S) que ocupam Áreas de Preservação Permanente. O §2º do dispositivo traz os elementos mínimos que o trabalho deverá conter:

I – caracterização da situação ambiental da área a ser regularizada;

II – especificação dos sistemas de saneamento básico;

III – proposição de intervenções para a prevenção e o controle de riscos geotécnicos e de inundações;

IV – recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização;

V – comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental, considerados o uso adequado dos recursos hídricos, a não ocupação das áreas de risco e a proteção das unidades de conservação, quando for o caso;

VI – comprovação da melhoria da habitabilidade dos moradores propiciada pela regularização proposta; e

VII – garantia de acesso público às praias e aos corpos d’água.

Já o artigo 65 do Código Florestal apresenta os estudos técnicos necessários para a regularização dos núcleos classificados como de interesse específico (Reurb-E) que ocupam Áreas de Preservação Permanente. O §2º do dispositivo traz os elementos mínimos que o trabalho deverá conter:

I – a caracterização físico-ambiental, social, cultural e econômica da área;

II – a identificação dos recursos ambientais, dos passivos e fragilidades ambientais e das restrições e potencialidades da área;

III – a especificação e a avaliação dos sistemas de infraestrutura urbana e de saneamento básico implantados, outros serviços e equipamentos públicos;

IV – a identificação das unidades de conservação e das áreas de proteção de mananciais na área de influência direta da ocupação, sejam elas águas superficiais ou subterrâneas;

V – a especificação da ocupação consolidada existente na área;

VI – a identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de movimentos de massa rochosa, tais como deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida de lama e outras definidas como de risco geotécnico;

VII – a indicação das faixas ou áreas em que devem ser resguardadas as características típicas da Área de Preservação Permanente com a devida proposta de recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização;

VIII – a avaliação dos riscos ambientais;

IX – a comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental e de habitabilidade dos moradores a partir da regularização; e

X – a demonstração de garantia de acesso livre e gratuito pela população às praias e aos corpos d’água, quando couber.

Regularização em rios

No tocante aos núcleos classificados como Reurb-E em APPs, é importante salientar que, ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, será mantida faixa não edificável com largura mínima de 15 metros de cada lado (artigo 65, §2º, do Código Florestal). Isso quer dizer que, se uma construção do núcleo classificado como Reurb-E estiver situada a menos de quinze metros do leito de curso d’água, mesmo que sejam realizados os estudos ambientais descritos no §1º do artigo 65, a edificação não será regularizada.

E se essa edificação mencionada pelo artigo 65, §2º, do Código Florestal estiver em área tombada como patrimônio histórico e cultural, a faixa não edificável poderá ser redefinida de maneira a atender aos parâmetros do ato do tombamento (artigo 65, §3º, da Lei 12.651/12).

Todos esses estudos técnicos aplicam-se somente às parcelas dos núcleos urbanos informais situados nas áreas ambientalmente sensíveis, e podem ser feitos em fases ou etapas, sendo a parte do núcleo urbano informal não afetada por esses estudos passível de ter o seu projeto aprovado e levado a registro separadamente (artigo 12, §3º, Lei 13.465/17).

Isso quer dizer que, se em determinado núcleo houver intervenções nessas áreas sensíveis, apenas será necessário realizar trabalhos técnicos para tais ocupações. E esses estudos poderão ser feitos em um segundo momento da Reurb, através do destaque da APP do projeto inicial, conforme disposto no artigo 12, §3º [5], da L 13.465/17), o que autoriza o prosseguimento da Reurb para o restante do núcleo que não estiver dentro da APP.

Ressalta-se a existência de entendimento doutrinário [6] que defende o registro do parcelamento de eventual área consolidada em espaço ambientalmente protegido antes mesmo da apresentação dos estudos técnicos, desde que tal informação seja averbada nas matrículas criadas para a APP.

Desta forma, não será necessário sequer destacar o trecho referente à APP do projeto original de Reurb, podendo o parcelamento da área ser levado a registro juntamente com o restante do núcleo não situado na localidade sensível.

Salienta-se, no entanto, que esse posicionamento autoriza tão somente o registro do parcelamento antes da elaboração dos estudos ambientais, ou seja, considera-se imprescindível a realização prévia dos trabalhos listados pelo artigo 64 e 65 do Código Florestal caso se pretenda titular os beneficiários dos lotes situados nas APPs.

Termo de compromisso

Outra questão relevante sobre o tema se refere à execução de intervenções eventualmente apontadas pelos trabalhos técnicos dos artigos 64 e 65 do Código Florestal. Defende-se que, nesses casos, seja possível a titulação dos indivíduos antes da conclusão das ações listadas desde que alguém assuma o seu cumprimento, através da firmatura de termo de compromisso, tal qual ocorre nos casos de implantação de infraestrutura essencial [7].

Como condição de aprovação da Reurb, o termo de compromisso também deverá ser celebrado com o poder público para as situações em que se identifique a necessidade de realização de medidas de mitigação e compensação urbanística e ambiental, nos casos de núcleos classificados como Reurb-E (artigo 38, §2º, da Lei 13.465/17).

Importante destacar que, se existirem intervenções em APP de indivíduos não classificados como “baixa renda”, mesmo nos núcleos classificados como Reurb-S, esses beneficiários terão de arcar com o pagamento de compensação ambiental na proporção do seu lote.

Isso porque a Reurb não suprime a característica ambiental da área. A regularização, em verdade, vem apenas para dar regularidade aos núcleos cuja reversão seria mais danosa social e ambientalmente do que a sua manutenção.

Então não se permite novas intervenções nas áreas sensíveis já regularizadas. Segue um exemplo prático que ilustra essa situação: existe um lote não construído em APP de núcleo já regularizado. Mesmo que o titular tente edificar a área, sob o pretexto de que boa parte dos lotes vizinhos já possuem construções que, agora, estão regulares, não lhe será fornecido alvará construtivo, tendo em vista que a localidade ainda é uma APP, cujas intervenções são permitidas somente em casos legais específicos.

E isso não seria classificado como uma “penalização” àqueles que outrora cumpriram a lei pois os indivíduos que construíram na localidade, se não forem classificados como “baixa renda”, terão de arcar com o pagamento de compensação ambiental na proporção do seu lote, mesmo se o núcleo for considerado de interesse social.

Essa situação poderia ser alterada se houvesse a descaracterização técnica da área de preservação permanente, com base em estudos que comprovassem a perda da sua função ambiental, ou, ainda, se fossem realizados os procedimentos de adequação das metragens da APP de curso d’água para áreas urbanas consolidadas (Lei Federal nº 14.285/21).

 


[1] Constituição Federal de 1988, Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…) III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.

[2] Decreto Federal n. 9.310/18. Art. 105. Na hipótese de decisão pela remoção do núcleo urbano informal consolidado, deverão ser realizados estudos técnicos que comprovem que o desfazimento e a remoção do núcleo urbano não causará maiores danos ambientais e sociais do que a sua regularização nos termos da Lei nº 13.465, de 2017, e deste Decreto. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica às áreas de risco a serem realocadas conforme o disposto no § 2º do art. 39 da Lei nº 13.465, de 2017.

[3] Lei 13.465/2017. Art. 11, §2º. Constatada a existência de núcleo urbano informal situado, total ou parcialmente, em área de preservação permanente ou em área de unidade de conservação de uso sustentável ou de proteção de mananciais definidas pela União, Estados ou Municípios, a Reurb observará, também, o disposto nos arts. 64 e 65 da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 , hipótese na qual se torna obrigatória a elaboração de estudos técnicos, no âmbito da Reurb, que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, inclusive por meio de compensações ambientais, quando for o caso.

[4] Lei 13.465/2017. Art. 39. Para que seja aprovada a Reurb de núcleos urbanos informais, ou de parcela deles, situados em áreas de riscos geotécnicos, de inundações ou de outros riscos especificados em lei, estudos técnicos deverão ser realizados, a fim de examinar a possibilidade de eliminação, de correção ou de administração de riscos na parcela por eles afetada.

[5] Lei 13.465/17. Art. 12. (…) § 3º Os estudos técnicos referidos no art. 11 aplicam-se somente às parcelas dos núcleos urbanos informais situados nas áreas de preservação permanente, nas unidades de conservação de uso sustentável ou nas áreas de proteção de mananciais e poderão ser feitos em fases ou etapas, sendo que a parte do núcleo urbano informal não afetada por esses estudos poderá ter seu projeto aprovado e levado a registro separadamente.

[6] CUNHA, M. F. F.; MAIA, A. C. Treinamento REURB na Prática: Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. 5ª ed. Belo Horizonte: 07 de abril de 2021.

[7] Lei 13.465/17. Art. 36. § 3º As obras de implantação de infraestrutura essencial, de equipamentos comunitários e de melhoria habitacional, bem como sua manutenção, podem ser realizadas antes, durante ou após a conclusão da Reurb. Decreto 9.310/18. Art. 3º. (…) V – Certidão de Regularização Fundiária – CRF – documento expedido pelo Município ou pelo Distrito Federal ao final do procedimento da Reurb, constituído do projeto de regularização fundiária aprovado, do termo de compromisso relativo a sua execução e, no caso da legitimação fundiária e da legitimação de posse, da listagem dos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado, da devida qualificação destes e dos direitos reais que lhes foram conferidos; (…) § 2º O termo de compromisso referido no inciso V do caput conterá o cronograma da execução de obras e serviços e da implantação da infraestrutura essencial e poderá prever compensações urbanísticas e ambientais, quando necessárias.

Autores

  • é especialista em Direito Ambiental e Urbanístico (PUC-MG); Registral e Notarial (Faculdade Baiana de Direito); Direito da Mineração (CEDIN); Imobiliário (Damásio); Direito do Agronegócio (EBRADI); Consultora Jurídica Urbanística para o Setor Público, e autora do livro "REURB na prática" (São Paulo: Editora Dialética, 2023).

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