Processo penal militar e o momento da apresentação do rol de testemunhas da defesa
11 de janeiro de 2025, 17h18
O plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, no bojo do RHC 142.608/SP, que, a partir da publicação da ata do respectivo julgamento, os artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal (CPP) devem ser aplicados aos processos penais militares cuja instrução não tenha iniciado.
Essa decisão foi tomada devido à constatação de que o Código de Processo Penal Militar (CPPM) não prevê a possibilidade de o acusado se manifestar nos autos antes do início da instrução probatória. Tal lacuna impede que o acusado possa apresentar, em fase preliminar, argumentos relativos ao julgamento do mérito, tais como a existência de causa excludente da ilicitude do fato, causa excludente da culpabilidade e da punibilidade do agente.
O CPPM prevê apenas a possibilidade de o acusado apresentar, preliminarmente, as exceções de suspeição, incompetência, litispendência ou coisa julgada (artigo 407 do CPPM). Não há, portanto, previsão sobre a possibilidade de absolvição sumária do acusado.
Assim, com o escopo de se conferir maior efetividade aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, o STF entendeu pela aplicação dos artigos 396 e 396-A do CPP aos processos penais de competência da Justiça Militar:
O escopo de se conferir maior efetividade aos preceitos constitucionais da Constituição, notadamente os do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), cabe ser invocado como justificativa para a aplicação dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal ao processo penal militar (…).
Ora, a resposta à acusação permitirá que o acusado convença o magistrado da existência de uma das causas de absolvição sumária previstas no art. 397 do diploma processual. Ademais, em respeito ao contraditório e à ampla defesa, o acusado poderá arguir preliminares, juntar documentos e apontar testemunhas a serem ouvidas, tudo de modo a evitar a continuidade de eventual ação penal temerária, a qual representaria verdadeira violação ao princípio constitucional do devido processo legal, extremamente caro ao Estado de direito[1]
Interrogatório do acusado
Importante relembrar que o STF se utilizou das mesmas premissas teóricas (conferir maior efetividade aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa) quando, no âmbito do julgamento do HC 127.900, determinou que o interrogatório do acusado acontecesse ao final da instrução criminal, aplicando o disposto no artigo 400 do CPP, alterado pela Lei nº 11.719/2008, em detrimento do disposto no artigo 302 do CPPM, que previa o interrogatório como primeiro ato da instrução processual.
Desta forma, ao determinar a aplicação dos artigos 396 e 396-A do CPP aos processos penais militares para efetivar os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o STF, por conclusão lógica, não eliminou do CPPM os dispositivos que contemplam e efetivam as referidas garantias constitucionais.
Nesse contexto, o disposto no artigo 417, § 2º, do CPPM [2] permanece vigente, vez que, assim como o instituto da resposta à acusação no processo penal comum, efetiva as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa dentro do sistema acusatório, assegurando ao acusado o direito de apresentar seu rol de testemunhas somente após a conclusão da fase probatória pelo órgão acusador[3].
Ou seja, o CPPM garante ao acusado o direito de indicar o rol de testemunhas somente após ter acesso ao conjunto completo de provas que pesam contra si, incluindo as provas testemunhais apresentadas pela acusação. Portanto, a não observância do artigo 417, § 2º, do CPPM, especificamente a apresentação do rol de testemunhas da defesa no momento da resposta à acusação (antes de concluída a instrução probatória por parte da acusação), resultaria em um prejuízo significativo à defesa do acusado. Isso porque, retiraria do acusado a possibilidade de indicar testemunhas que possam impugnar a prova acusatória coligida em seu desfavor (contraditório), e de, no exercício do direito de audiência (ampla defesa), influir na formação do convencimento do julgador.
Integração do CPPM à Constituição
Importante consignar que a aplicação dos artigos 396 e 396-A do CPP respeitando o momento de indicação das testemunhas da defesa previsto no artigo 417, §2º do CPPM não configura mesclagem ou hibridismo (tertium genus) entre os procedimentos estabelecidos pelo CPP e pelo CPPM, o que seria incompatível com o princípio da reserva legal. Isso porque, a decisão proferida no bojo do RHC nº 142.608/SP visa integrar de maneira mais harmoniosa o CPPM aos preceitos constitucionais estabelecidos pela Constituição, assegurando maior efetividade ao contraditório e à ampla defesa:
(…) Em detrimento do princípio da especialidade, o Supremo Tribunal Federal tem assentado a prevalência das normas contidas no CPP em feitos criminais de sua competência originária, os quais, como se sabe, são regidos pela Lei nº 8.038/90.[4]
Assim, a aplicação dos dispositivos da Lei nº 11.719/2008 no âmbito do processo penal militar se alinha ao sistema acusatório democrático, sendo uma norma mais benéfica (lex mitior) e apta a concretizar as garantias constitucionais.
O artigo 417, § 2º, CPPM permanece em vigor e sua aplicação tem sido garantida no âmbito do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, conforme precedente firmado pela 2ª Câmara, no julgamento da Correição Parcial nº 200021053.2024.9.13.0002, que foi movida pelo Ministério Público buscando a supressão da referida norma processual.
A prevalência da garantia processual é devidamente elucidada no voto do relator, desembargador Fernando Antônio Nogueira Galvão da Rocha, que destacou:
A aplicação de tal instituto na Justiça Militar, como decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), não estabelece qualquer incompatibilidade com a previsão do art. 417, § 2°, do CPPM. A finalidade dos dispositivos é diversa.
A previsão de que “as testemunhas de defesa poderão ser indicadas em qualquer fase da instrução criminal, desde que não seja excedido o prazo de cinco dias, após a inquirição da última testemunha de acusação” permite que a defesa indique suas testemunhas somente após conhecer todas as provas que foram constituídas em seu desfavor. Impor que a defesa indique suas testemunhas antes que conheça o que dirão as testemunhas de acusação é impor que a defesa faça uma aposta sobre evento futuro.
Certamente, a disposição do § 2° do art. 417 do CPPM se concilia com mais propriedade com a garantia fundamental da ampla defesa e do contraditório.
Justamente por sua conciliação com as garantias fundamentais, a possibilidade de escolher as testemunhas mais adequadas à defesa após conhecer a prova constituída pela acusação é medida que deveria ser aplicada nos processos de conhecimento da Justiça comum. Afinal, o direito de escolher as melhores testemunhas também deve ser reconhecido aos acusados da Justiça comum.
Neste cenário, podemos concluir que a possibilidade de julgar antecipadamente os processos criminais de conhecimento que não demandem instrução probatória se concilia plenamente com o direito da defesa de escolher as melhores testemunhas disponíveis para contrariar a acusação que lhe é dirigida.
Não havendo contradição entre as finalidades que justificam os dispositivos legais contrapostos, não há que se falar em revogação tácita. Nos termos do art. 2°, § 1°, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942), a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
No caso em exame, a Lei nº 11.719, de 2008, que deu nova redação ao art. 396 do CPP, não revogou expressamente o § 2° do art. 417 do CPPM; os referidos dispositivos não apresentam incompatibilidade; e a disposição do CPP não regula inteiramente a matéria relativa ao momento de apresentação de testemunhas. Há disposição especial no CPPM sobre a questão. Também cabe registrar que a revogação tácita do disposto no §2° do art. 417 do CPPM implica retrocesso social que não pode ser admitido em um estado democrático de direito.
Desta forma, a norma prevista no artigo 417, § 2º, CPPM, é um instrumento de efetivação das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa e deve ser aplicada em todas as ações penais regidas pelo processo penal castrense.
[1] Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 142.608/SP
[2] Art. 417, § 2º, CPPM – As testemunhas de defesa poderão ser indicadas em qualquer fase da instrução criminal, desde que não seja excedido o prazo de cinco dias, após a inquirição da última testemunha de acusação. Cada acusado poderá indicar até três testemunhas, podendo ainda requerer sejam ouvidas testemunhas referidas ou informantes, nos termos do § 3º.
[3] CARVALHO, Esdras dos Santos. O Direito Processual Penal Militar Numa Visão Garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[4] Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 142.608/SP
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