O que é isto – 'os positivismos'? A unidade na universalidade de uma ideia
11 de janeiro de 2025, 8h00
O positivismo jurídico é uma categoria conceitual inescapável no âmbito da teoria do direito; refletir tanto ao lado quanto em oposição às suas premissas metodológicas e conclusões descritivas é possível, mas é inviável ignorá-las. No entanto, a sua natureza trans-paradigmática é tão perceptível quanto também o é a sua variedade e complexidade interna, no que tange às diferentes abordagens desenvolvidas pelos diversos teóricos inseridos no seu seio ao longo da história do pensamento jurídico moderno e contemporâneo. Para demonstrar essa pluralidade na unidade do positivismo jurídico, oferecemos uma análise comparativa entre dois conceitos centrais para o desenvolvimento histórico do positivismo jurídico: a Norma Pressuposta Fundamental (NPF) [1] e a Regra de Reconhecimento (RR) [2].
Adentrando nos domínios da Teoria Pura de Direito de Kelsen, importa ter-se em mente o desafio que o próprio autor colocou a si mesmo: soerguer a teoria do direito para um ambiente epistêmico hermético, livre, portanto, de fatores ideológico-políticos e suportes teológicos e/ou morais metafísicos. Nesses termos, a luta de Kelsen era travada em busca da independência metodológica da “ciência do direito” [3].
O paradigma filosófico do qual Kelsen parte encontra intersecções com o movimento filosófico que propulsionou aqueles que outrora deram forma ao dito “Círculo de Viena”; para esses, cada qual nos seus domínios próprios de reflexão, um dos pontos de endereçamento essencial era justamente o desenvolvimento de uma crítica ao discurso “filosófico” ou “metafísico”, na medida em que as proposições desse discurso viam-se aceitas a partir de justificações independentes da experiência empírica do mundo – os ditos juízos sintéticos a priori –, o que as tornaria desprovidas de qualquer sentido factual útil para além da expressão de “sentimentos morais” do ator do discurso, porquanto incapazes de serem inseridas dentro de um espaço regido por critérios racionais de articulação de sentidos [4]. Para o desenvolvimento dos elementos estruturantes de sua teoria, Kelsen repousará em três principais núcleos de análise: (1) o ordenamento jurídico enquanto uma estrutura normativa de natureza dinâmica; (2) o desenvolvimento de um segundo nível metalinguístico, superior ao discurso da prática jurídico-normativa empírica, a partir da ideia de proposições jurídica; e, por fim, (3) a NPF.
Kelsen articula a norma jurídica como esquema de interpretação da realidade, separando sentido subjetivo de um ato de vontade humano, do seu sentido objetivo jurídico; em suma, a norma jurídica representa a imputação, a um ato de vontade humano, de um sentido jurídico predeterminado. As normas inseridas representam, assim, atos de vontade sobre os quais outra norma imputa um determinado sentido jurídico [5] estruturam-se em um sistema de validação desprendido da valoração do conteúdo normativo das regras que o compõem, focando-se na estrutura formal de validação entre normas.
Em outras palavras, a diferença entre A esfaquear B até a morte significar um homicídio no Tennessee, e, ao mesmo tempo, agentes penitenciários tirarem a vida de um apenado na cadeira elétrica significar, no mesmo estado norte-americano, a execução de uma pena de morte, é que na primeira situação há uma norma jurídica que atribui um sentido objetivo jurídico X (homicídio) e, na segunda hipótese, há outra norma jurídica — mais precisamente, uma sentença judicial — que atribui sentido diverso Y (execução da pena). O sentido subjetivo do ato é o mesmo; o que muda é a norma. A validade jurídica da norma que imputa o sentido jurídico, por exemplo, de execução de uma pena de morte, não é válida porque subsumida a partir do conteúdo de uma norma superior, mas porque foi estatuída segundo a forma estipulada por essa norma.
Ocorre que as normas jurídicas, a aplicação e criação dessas, insere-se em um ambiente linguístico deontológico emaranhado em impurezas. Assim, a norma jurídica é “purificada” a partir de uma abstração levada a cabo pelo “cientista do direito”, por meio do que Kelsen denominará de “proposição jurídica”. O Direito não é a norma propriamente dita, mas a proposição jurídica emitida pelo ato de conhecimento do cientista [6]. Significa dizer que a dimensão essencial do fenômeno jurídico, para a Teoria Pura, é a abstração de um sentido construído em uma dimensão não empírica ou sociológica, numa espécie de construtivismo epistemológico [7]. Diante disso, emerge a questão: onde se insere a NPF? A resposta: (1) primeiro, como pressuposto lógico do funcionamento da estrutura dinâmica do ordenamento jurídico; (2) segundo, como pressuposto cognosciológico do ato de conhecimento do cientista do direito. Ambas as suas dimensões, por sua vez, são independentes da experiência empírica.
Nesse sentido, relembre-se que uma norma jurídica deriva a sua validade de outra(s) norma(s). Todavia, essas normas necessitam derivar seu sentido jurídico de outras normas. Surge, portanto, a necessidade lógica de um fundamento de fechamento. Ocorre que esse fechamento não pode estar consubstanciando em um ato positivo empírico, eis que, sendo positivo e, portanto, caracterizado como um ato de vontade humano, uma outra norma “superior” seria necessária para lhe atribuir o sentido objetivo jurídico, e a NPF opera como essa condição lógica [8] para a identificação do fechamento da dimensão jurídica do Direito. Contudo, trata-se de uma condição, não da prática jurídica em si, mas do estudo do Direito. É no ato de conhecimento do cientista que a NPF exerce sua função precípua de fundamento último de validade do ordenamento jurídico. A unidade do sentido jurídico objetivo de um conjunto de regras tido por Direito é uma unidade construída a partir das proposições jurídicas, não se tratando de uma unidade lógica de natureza empírica.
A partir dessas considerações, tem-se um panorama geral suficientemente coeso para que possamos partir para a segunda etapa do estudo, e abordar os aspectos centrais da teoria de H.L.A. Hart necessários à compreensão da RR. O direito e sistemas legais não são obras da natureza; o Direito é feito de fatos institucionais como ordens e regras, e esses, por sua vez, produtos do pensamento e ação humana. Assim afirma, Leslie Green, em introdução preparada para a terceira edição da obra o Conceito de Direito[9], de H.L.A. Hart; esse, por sua vez, esclarece que a sua teoria do direito pode ser lida também como uma “sociologia descritiva”, com tributos à aportes da filosofia da linguagem, mencionando expressamente as contribuições de J.L. Austin às suas reflexões, ressaltando a necessidade de exame dos “usos convencionais das expressões conexas e da maneira como estas dependem de um contexto social”[10].
Em Hart, o Direito é um fato construído socialmente e possível de ser descrito a partir de uma sociologia construtivista; a investigação a respeito do conceito de Direito é uma investigação sobre esse conjunto de práticas em estado de contínua construção, atravessadas por referências linguísticos reconhecidos e “aplicados” pelos seus partícipes, inclusive levando-se em conta o próprio uso “ordinário” do conceito de Direito no seio dos “discursos e reflexões do dia a dia” [11][12]. Hart, assim, dedica-se a analisar as insuficiências, enquanto leitura desse “jogo de linguagem” [13], de outro modelo teorético proposto por seu principal antecessor e que imperou no imaginário anglo-saxônico por mais de um século, qual seja, o positivismo imperativista de John Austin. Hart defende que o modelo imperativista simplifica sobremaneira a natureza do fenômeno jurídico e das regras sociais que o constituem; uma simplificação que encontraria seu calcanhar de Aquiles na própria noção de habitualidade atrelada, por Austin, à autoridade do soberano enquanto fonte da produção das regras jurídicas. A habitualidade deixaria de considerar que a prática de seguir e aplicar regras sociais envolve um comportamento de aceitação ativo por parte daqueles que nela se inserem. Em outras palavras, a regra social é, ela própria, o fator da normatividade, na medida em que vista como “padrão geral que deve ser seguido”, cuja existência é suficiente para legitimar uma postura crítica ao comportamento desviante[14].
A partir do contraste entre habitualidade e aceitação, é que Hart propõe uma nova compreensão a respeito do que deve ser entendido como a definição de Direito. No entanto, a crítica não se confunde com a proposta de um novo modelo de pensamento, de tal modo que seria necessário suprir as insuficiências do modelo imperativista, delineando os traços distintivos desse fenômeno com relação a outros que também operam a partir da noção central de regra social. Assim, Hart propõe que um ordenamento jurídico sofisticado é composto por regras primárias e regras secundárias [15]. Regras primárias seriam aquelas que estabelecem a padrões de ação, estabelecendo deveres positivos ou negativos, ao passo em que as regras secundárias seriam aquelas que regem a atividade daqueles responsáveis por introduzir novas regras primárias no ordenamento, extinguir normas preestabelecidas, as modificar ou fazê-las incidir concretamente e regular esse processo de incidência [16].
Um modelo de regras primário, desprovido de regras secundárias, é tido por Hart como dotado de “defeitos”, os quais superáveis se se estiver tratando de uma comunidade simples, não complexa, unida, por exemplo, por vínculos de parentesco e num número bastante reduzido de pessoas. Nessa linha, um dos principais defeitos identificados por Hart é que cada regra social primária representa um padrão normativo isolado que não encontra qualquer parâmetro de unificação com as demais regras, o que fragiliza o processo de identificação do que é ou não um padrão normativo a ser efetivamente seguido no interior dessa comunidade, gerando-se, assim, uma paisagem de insegurança e incerteza [17].
Nesse sentido, a RR surge justamente como uma resposta à falta de parâmetros que permitam identificar quais regras sociais se inserem no conjunto de regras que receberão o amparo (ou não) dos de pressão social institucionalizados[18]: Para Hart, a RR se apresenta como fundamento de validade para todas as demais regras que se inserem no “jogo de linguagem” do Direito, de tal modo que “dizer que determinada norma é válida equivale a reconhecer que esta satisfaz a todos os critérios propostos pela norma de reconhecimento e é, portanto, uma norma do sistema” [19]. Fala-se em uma regra social que fixa os “critérios” daquilo que deve ser considerado Direito, que tem como alvo de endereçamento as autoridades responsáveis pela aplicação das regras do ordenamento jurídico [20].
Tendo em vista o aspecto central da teoria de Hart, i.e., que o direito é uma prática social centrada em regras, é natural que a RR seja identificada e corresponda a um produto de uma prática discursiva que aceita um certo nível razoável de desacordo; oficiais inseridos nessa prática social poderão dissentir com relação àquilo que, em determinados casos, a RR aceita como um composto do ordenamento jurídico, e, do mesmo modo, estarão dispostos a censurarem seus colegas que porventura venham a negar vigência à RR ou aplica-la de forma equivocada [21]. Trata-se de um fundamento de validade último que pode ser expressamente articulado pelos atores oficiais inseridos na prática social do Direito, mas também pode ser descrita sociologicamente a partir do exame da conduta desses oficiais [22]. Nessa linha, a pergunta sobre a natureza e existência da RR é, para Hart, respondida a partir de fatos sociais propriamente ditos, do exame da prática discursiva na qual agentes oficiais inserem-se e atuam.
A partir de todo o exposto, o contraste fica claro: Kelsen assume que o objeto de estudo do “cientista” é construído por um ato de conhecimento, ao passo em que Hart desce até a prática social concreta e assume que seu objeto de estudo é por um fato social, constatável a partir do exame do uso ordinário das palavras. Porquanto positivistas, ambos os autores entendem que a ideia de direito envolve a fixação de padrões normativos a partir de atos positivos – regras sociais, no caso de Hart, e atos de vontade enquanto esquema de interpretação objetiva desses atos. No entanto, Hart é um “construtivista social”, ao passo em que Kelsen não é [23]. A distinção entre a RR e a NPF é ontológica, e jaz em uma distinção mais profunda sobre o conjunto abrangente de ambas as obras nas quais tais conceitos se inserem. A pergunta sobre a RR é respondida por meio de uma investigação empírica, ao passo em que a pergunta sobre a NPF é encontrada a partir da postulação de um dado lógico. Em suma, “[a] ideia de que as regras secundárias devem ser entendidas como verdadeiras práticas sociais [dá] à teoria do direito um sabor empírico terreno, até mesmo sociológico, que falta na teoria positivista de alguém como Hans Kelsen” [24].
[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
[2] HART, H.L.A.. The concept of law: with and introduction by Leslie Green. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.
[3] KELSEN, Hans. Opus Cit. p. XIV.
[4] STRECK, Lenio Luiz; JUNG, Luã Nogueira. Kelsen e a Metaética: empirismo lógico, emotivismo e discricionariedade judicial. Revista da Faculdade Mineira de Direito – PUC MINAS, Belo Horizonte, v. 23, n. 45.
[5] KELSEN, Hans. Opus cit.
[6] ROCHA, Leonel Severo; COSTA, Bernardo Leandro Carvalho. Pressupostos epistemológicos da teoria pura do direito de Hans Kelsen. Revista da Faculdade de Direito da FMP, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 207-220, 2021; STRECK, Lenio Luiz. Kelsen e o positivismo jurídico contemporâneo: notas de um (possível) acerto de contas. Nueva Época – UNAM, n. 9, jul./dez., 2018.
[7] NETO, Arthur M. Ferreira. Metaética e a fundamentação do direito. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015
[8] KELSEN, Hans. Opus Cit. pp. 224-225.
[9] GREEN, Leslie. Introduction. In: H.L.A., Hart. Op cit. p. xvii.
[10] H.L.A., Op cit. p. vi.
[11] KRAMER, Matthew. H.L.A. Hart: the nature of law. Medford: Polity, 2018. p. 4-5.
[12] MORBACH, Gilberto. Op cit. p. 130.
[13] H.L.A., Hart. Op cit. pp. 279-280.
[14] H.L.A., Hart. Op cit. pp. 51-58.
[15] KRAMER, Matthew. H.L.A. Hart: the nature of law. Medford: Polity, 2018. p. 68-70.
[16] H.L.A., Hart. Op cit. p. 81.
[17] WALDRON, Jeremy. Who needs rules of recognition? Public Law & Legal Theory Research Papers – NYU School of Law, n. 09-21, Nova York, mar. 2009.
[18] H.L.A., Hart. Op cit. p. 94.
[19] H.L.A., Hart. Op cit. p. 103
[20] KRAMER, Matthew. Op cit. p. 83.
[21] KRAMER, Matthew. H.L.A. Hart: the nature of law. Medford: Polity, 2018. pp. 82 e 84-85.
[22] H.L.A., Hart. Op Cit. p. 102.
[23] GREEN, Leslie. Introduction. In: H.L.A., Hart. Op Cit. p. xix
[24] WALDRON, Jeremy. Op cit.
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