Opinião

Desintelingência entre casal por guarda de menores: o papel da polícia em conflitos familiares

Autor

  • é oficial da Polícia Militar de São Paulo ocupante do posto de 1º Tenente PM bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco-SP bacharel em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul Campus São Judas Tadeu-SP e pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    Ver todos os posts

11 de janeiro de 2025, 6h30

No Brasil, o número de divórcios entre casais não para de crescer. Em publicação do site eletrônico Exame.com, observa-se que em 2022 foram 420.039 divórcios, sendo 81% dos casos decididos em audiências judiciais. Desse total, 54,2% envolviam pais de filhos menores de idade (Martins, 2024).

Diante desses números, não é difícil imaginar um cenário de turbulências envolvendo disputas judiciais de todas as formas: estipulação do valor da pensão alimentícia; ação de revisão de alimentos; litígios por guarda de menores; e alienações parentais. E é nesse aspecto que nos concentraremos.

Diante de uma desinteligência entre casais por guarda de menores, um dos pais pode ligar para o 190 e solicitar a presença da Polícia Militar para intervir em conflitos relacionados a menores.

Um caso bem comum ocorre quando um dos pais se desloca à residência do guardião designado pelo tribunal para responder por aquela criança, e encontra recusa no outro em ceder-lhe o menor, ainda que aquele seja o seu dia de “ficar” com a criança.

Nesse cenário, quase sempre chamar a Polícia Militar acaba sendo uma saída. Mas o que o policial militar poderia fazer diante dessa situação? Caberia prisão em flagrante do pai ou da mãe que comprovadamente pratica alienação parental, como, por exemplo, dificultar contato de criança ou adolescente com o genitor? Qual seria, afinal, o papel da polícia em conflitos familiares dessa natureza? O policial militar pode conduzir partes da ocorrência ao distrito policial?

São essas e outras questões que esse artigo jurídico/policial se propõe a responder.

Concentremo-nos, primeiramente, na questão da possibilidade da prisão em flagrante delito em um caso em que, comprovadamente, um dos genitores pratica qualquer tipo de alienação parental, como, por exemplo, negar ao outro o seu dia de exercer a paternidade ou maternidade com o menor.

A Lei Federal nº 12.318, de 26 de agosto de 2010 (Brasil, 2010), dispõe sobre alienação parental. O artigo 2º dessa lei descreve alienação parental como a interferência na formação psicológica do menor, promovida por qualquer pessoa que tenha esse menor sob sua autoridade, a fim de causar prejuízo no relacionamento dessa criança com um dos genitores.

O parágrafo único do mesmo artigo traz vários exemplos de alienação parental, tais como: dificultar o contato do menor com o outro genitor; desqualificação da conduta do outro genitor; e até mesmo a mudança de residência, sem justificativas, para dificultar o convívio com o outro.

É importante perceber que alienação parental não é um crime e, portanto, não deve ser tratada como tal. Não há pena de detenção ou reclusão para quem pratica alienação parental, ou seja, ninguém vai para a cadeia pela prática de alienação parental.

As penalidades, previstas no artigo 6º da lei (Brasil, 2010), variam entre: multa; alteração da guarda unilateral para compartilhada; inversão da guarda ou até mesmo a determinação cautelar do domicílio da criança. Nada de crime; ou seja, já se tem a resposta para uma das questões: em caso de ocorrência policial envolvendo alienação parental, não há que se falar em prisão em flagrante. Não sendo caso de prisão em flagrante, também não há que se falar em condução da ocorrência para apresentação no distrito policial competente.

Imagine-se o dano psicológico para uma criança ou adolescente ao ver um de seus genitores em um guarda-preso (monocela) de viatura policial, enquanto ele(a) próprio(a) é conduzido(a), juntamente com o outro responsável, no banco de trás de uma viatura, em direção ao distrito policial.

É notório que para a designação de um guardião para exercer a tutela de um menor, é considerado o melhor interesse da criança. Em que pese possa haver uma violação dos direitos de um dos genitores, uma prisão em flagrante seria evidente abuso policial, e a condução de partes ao distrito policial poderia ser mais danosa ao menor do que a própria alienação.

Contudo, se a prisão em flagrante não é permitida nesses casos, por não haver crime, e a condução coercitiva de pessoas ao distrito policial não encontra reserva (dessa forma) no Código Penal ou Processual Penal, configurando evidente abuso, o que o policial militar poderá fazer nesses casos?

Apesar de a resposta parecer óbvia, o policial poderá registrar os fatos por meio de um boletim de ocorrência.

O artigo 405 do Código de Processo Civil afirma que o documento público faz prova dos fatos que o servidor declarar que ocorreram em sua presença. Esse artigo compõe a seção VII do referido código, seção essa que versa sobre a prova documental (Brasil, 2015); ou seja, esse boletim de ocorrência, assinado por um policial militar que presenciou os fatos, nada mais é do que uma prova documental. Nesse ponto, alguém poderia questionar: mas o próprio interessado não poderia se dirigir a um distrito policial civil e registrar sua queixa?

É claro que ele poderia, mas imagine um processo judicial por alienação parental em que o suporte fático seja um boletim de ocorrência registrado pelo interessado em um distrito policial e compare com a força probatória de um boletim de ocorrência registrado por um policial militar que presenciou os fatos. Compreende?

No primeiro caso, a queixa é realizada por um único indivíduo, geralmente sem testemunha dos fatos. Sem mencionar que o outro genitor pode agir de má-fé e simplesmente negar o episódio, buscando desqualificar judicialmente a versão do genitor queixoso.

Com um boletim de ocorrências feito por um policial militar que compareceu ao local dos fatos, isso não poderia acontecer. Nesse exemplo, o próprio policial é uma testemunha do ocorrido. Seu boletim de ocorrência contempla a qualificação pessoal de ambos os genitores, data e hora dos fatos, suas versões, local e as circunstâncias em que os fatos se deram.

Spacca

Desse modo, se um dos pais quiser alegar em sede de processo judicial que não entregou o filho ao outro por que este estava bêbado ou sob efeito de uma substância química, tal fato pode ser facilmente rechaçado, se inverídico, assim como comprovado, se verídico, pelas testemunhas: os policiais militares que atenderam àquela ocorrência.

Vale ressaltar que, a depender do local dessa ocorrência, os policiais militares podem estar recorrendo às chamadas câmeras operacionais portáteis, ou seja, a ação toda será gravada em áudio e vídeo.

Quais são os limites, afinal?

Na condição de advogado de defesa, com qual suporte fático você gostaria de trabalhar: com um boletim de ocorrência registrado pelo interessado em um distrito policial sem testemunha ou com um suporte fático que contemple o registro do policial que presenciou o ocorrido, com a possibilidade de ter os policiais como testemunhas e um registro audiovisual completo?

Não restam dúvidas, o registro completo desse tipo de ocorrência poderia trazer à luz circunstâncias do fato que se perderiam caso a ocorrência fosse registrada posteriormente.

Então, para responder à pergunta do início do artigo, quais seriam os limites da ação policial em uma ocorrência dessa natureza? O registro eletrônico ou físico dos fatos por policiais militares que atenderam a ocorrência e, se possível, o registro audiovisual por câmera.

Na hipótese de o policial militar entender por adequado que a ocorrência deva seguir para apresentação pessoal em um Distrito Policial, valeria ressaltar que, por não se tratar de um crime e, portanto, não haver flagrante delito, qualquer uma das partes envolvidas podem se negar a acompanhar a equipe policial ao distrito competente.

E justamente por não haver lei que o obrigue a se submeter a essa condução coercitiva, consoante o artigo 5º, inciso II, da Constituição (Brasil, 1988), também não haveria o que se falar em crime de desobediência à negativa em acompanhar os policiais.

Do mesmo modo, caso um dos genitores demonstre interesse onde a ocorrência seja apresentada em uma delegacia, isso não obriga a outra parte a concordar com essa apresentação, podendo simplesmente negar-se a acompanhar os policiais à delegacia.

Novamente, isso não configuraria desobediência por parte daquele que se recusa a acompanhar a equipe policial a uma delegacia, uma vez que, não cometeu crime e, portanto, não está preso.

Importante esclarecer que nenhum policial, seja ele militar ou civil, tem autonomia para determinar que um menor deva, em um determinado caso, permanecer com um dos genitores ou ser entregue ao outro. Essa competência extrapola sua autoridade, sendo o policial um garantidor do cumprimento das leis vigentes.

Ainda que um dos genitores apresente à equipe policial um documento que demonstre claramente que aquele é seu dia de exercer sua paternidade ou maternidade, ainda assim, não cabe ao policial determinar que a criança deva ser entregue a um ou permanecer com outro.

Seu limite de atuação restringe-se ao registro pormenorizado dos fatos.

Nesse mesmo sentido, as ordens judiciais de concessão de guarda ou inversão dela serão cumpridas por oficiais de justiça no exercício de suas funções, limitando-se a ação policial a um possível auxílio ou, até mesmo, uso de força, se necessário, para cumprimento da determinação judicial.

Em resumo, não há que se falar em prisão em flagrante para o alienador, sendo sua prisão impossível por esse fato. A condução coercitiva não encontra respaldo em nossas leis, portanto, fazê-lo configuraria claro abuso, nos termos do artigo 33 da Lei de Abuso de Autoridade (Brasil, 2019).

Por outro lado, o registro bem realizado, por todos os meios possíveis admitidos em direito, poderia subsidiar de informações relevantes os advogados de ambos.

 


Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 mai. 2024.

BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, p. 19699, 13, out. 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del368 9.htm. Acesso em: 15 mai. 2024.

BRASIL. Lei n.º 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 3, 27 ago. 2010.

BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 17 mar. 2015.

BRASIL. Lei n.º 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade; altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Diário Oficial da União: seção 1, Edição Extra – A, Brasília, DF, p. 1, 05 set. 2019.

MARTINS, André. Número de divórcios no Brasil bate recorde e chega a 420 mil, mostra IBGE. Revista Exame, 27 mar. 2024. Disponível em: https://exame.com /brasil/numero-de-divorcios-no-brasil-bate-recorde-e-chega-a-420-mil/. Acesso em: 15 mai. 2024.

Autores

  • é técnico em polícia ostensiva e preservação da ordem pública pela Escola Superior de Soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo, bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul, especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduando em Polícia Judiciária Militar pelo Instituto Venturo-RJ e policial militar com mais de oito anos de serviços prestados.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!