Opinião

A judicialização da saúde e a busca por medicamentos de alto custo no Brasil

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11 de janeiro de 2025, 13h11

O acesso à saúde é um direito fundamental garantido pela Constituição, que assegura a todos os cidadãos brasileiros o direito à saúde pública e gratuita por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o direito à saúde é frequentemente colocado à prova quando o assunto é o fornecimento de medicamentos de alto custo.

A crescente busca pelo acesso a tratamentos inovadores, geralmente com custos elevados, tem levado à chamada “judicialização da saúde”. O fenômeno é caracterizado pela intervenção do Poder Judiciário para garantir que o Estado, seja na esfera federal, estadual ou municipal, forneça medicamentos, tratamentos e procedimentos que, por vezes, não estão previstos nos protocolos oficiais do SUS, sendo oportuno analisar os principais aspectos que envolvem essa prática, as controvérsias jurídicas e as soluções propostas para lidar com o problema.

O direito à saúde e a perspectiva constitucional

O artigo 196 da Constituição é claro ao afirmar que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Isso inclui, de forma implícita, o fornecimento de medicamentos necessários à preservação da vida e da saúde dos indivíduos. A partir dessa premissa, muitos cidadãos recorrem ao Judiciário para obter medicamentos que não constam nas listas oficiais do SUS.

A interpretação constitucional é sustentada por diversas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que têm reafirmado a responsabilidade do Estado de garantir o fornecimento de medicamentos quando comprovada a necessidade, a urgência e a falta de alternativas terapêuticas na rede pública. Decisões como essa fortalecem o entendimento de que o direito à saúde não se limita à oferta dos medicamentos padronizados pelo SUS, mas também àqueles que se mostrarem indispensáveis para a vida do paciente.

Principais argumentos na judicialização de medicamentos de alto custo

O embate jurídico envolve duas perspectivas centrais:

  1. O direito individual à saúde e à vida: Os cidadãos que buscam a via judicial normalmente alegam que a negativa do Estado em fornecer o medicamento viola o direito à saúde e coloca em risco a própria vida. De forma pragmática, o argumento é que o custo de um medicamento não pode se sobrepor à proteção à vida. A situação se agrava em casos de doenças raras, cujos tratamentos, muitas vezes, não estão disponíveis nas listas padronizadas do SUS.
  2. O impacto no orçamento público: O outro lado da discussão envolve a ponderação quanto ao custo elevado que a determinação de fornecimento impõe ao Estado. O argumento é que a intervenção judicial pode desequilibrar as políticas públicas, pois o Judiciário estaria impondo uma nova obrigação financeira ao Estado sem previsão no orçamento. Isso pode comprometer a sustentabilidade do sistema de saúde pública e prejudicar a execução de políticas de saúde já estabelecidas.

Impactos da judicialização no sistema de saúde

A supracitada “judicialização da saúde” tem gerado um impacto significativo no planejamento orçamentário do SUS. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que as demandas por medicamentos não padronizados geram um custo bilionário aos cofres públicos. O aumento do número de ações judiciais para a obtenção de medicamentos fora dos protocolos oficiais tem pressionado o orçamento da saúde e obrigado o Estado a realizar compras emergenciais e de alto custo.

Spacca

De acordo com a Advocacia-Geral da União (AGU), grande parte dos medicamentos solicitados não possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que gera um impasse legal. Isso ocorre porque o STF entende que, salvo situações excepcionais, o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos que ainda não foram registrados pela Anvisa. Nesse contexto, a obtenção de laudos médicos e a comprovação de eficácia dos tratamentos têm sido exigências frequentes nos processos judiciais.

Outro aspecto relevante é o chamado “efeito multiplicador” das ações judiciais. Quando um cidadão obtém uma decisão favorável para o fornecimento de determinado medicamento, outros indivíduos com a mesma necessidade tendem a ingressar com ações semelhantes, ampliando o impacto financeiro para o Estado. Esse efeito demonstra a necessidade de uniformizar entendimentos e criar soluções que contemplem o coletivo, e não apenas demandas individuais.

Dessa forma, torna-se oportuno destacar como os tribunais superiores têm firmado o entendimento quanto à judicialização para a compra de medicamentos de alto custo.

Nestes termos, uma das decisões mais importantes sobre o tema é o julgamento do RE 566.471/RN, no qual o STF definiu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos experimentais ou sem registro na Anvisa, salvo em situações de comprovada urgência e mediante a apresentação de laudo médico. Essa decisão tem orientado os tribunais de todo o país e ajudado a reduzir a quantidade de demandas judiciais.

Outro julgamento importante foi o Tema 793 do STF, que estabeleceu requisitos mais rígidos para o fornecimento de medicamentos fora das listas do SUS. O STF fixou a tese de que, para o fornecimento de medicamento não incorporado no SUS, é necessário comprovar a imprescindibilidade do fármaco, a inviabilidade de substituição por outro medicamento padronizado e a capacidade financeira do autor para adquirir o medicamento.

Entendimento este que também foi corroborado no âmbito do STJ, no REsp nº 1.657.156/RJ (Tema 106 dos Recursos Repetitivos), que definiu como como requisitos para o fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS: comprovação da imprescindibilidade do medicamento; incapacidade financeira do paciente; existência de registro na Anvisa.

Soluções e caminhos possíveis

Diante desse cenário, algumas soluções têm sido propostas, entre as quais destacam-se:

  1. Protocolos de assistência farmacêutica mais amplos: A inclusão de medicamentos inovadores no rol do SUS poderia reduzir a quantidade de ações judiciais. Atualizar o rol de medicamentos regularmente, com base em evidências científicas e nas demandas sociais, seria uma forma de minimizar a intervenção judicial;
  2. Mediação e conciliação: O CNJ tem incentivado a adoção de Câmaras de Mediação, para que o cidadão possa buscar a solução sem acionar a Justiça. Essa prática permite a resolução de conflitos de forma mais célere e econômica, evitando custos processuais e garantindo a entrega mais rápida dos medicamentos;
  3. Informação ao cidadão: A orientação sobre os direitos e as opções dentro do SUS pode evitar a judicialização desnecessária. Muitas vezes, a falta de informação sobre a oferta de medicamentos padronizados leva os cidadãos a ingressar com ações judiciais sem necessidade;
  4. Outra solução seria o fortalecimento das ouvidorias de saúde, para que o cidadão pudesse registrar suas demandas e ter uma resposta rápida e eficiente antes de recorrer ao Judiciário. Tal medida garantiria mais transparência no acesso a medicamentos e poderia evitar a sobrecarga de ações judiciais.

Por todo o exposto, resta clara a importância de garantir o acesso aos medicamentos de alto custo. Contudo, é preciso ponderar os limites dessa obrigação. A solução não está em impedir o acesso, mas em construir um sistema mais eficiente, transparente e participativo.

A judicialização é uma resposta às lacunas do sistema de saúde pública, mas não pode ser utilizada como um mecanismo constante de correção de rotas. Portanto, é necessário unir esforços entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo para criar soluções estruturais efetivas, que atendam aos anseios da sociedade.

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