Opinião

'Prova' oral irrepetível e sua utilização na decisão judicial: em busca de contornos ao artigo 155 do CPP

Autor

  • é pós-graduado stricto sensu em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas professor universitário da Estácio/Fal lecionando a disciplina “Processo Penal” (2008-2010) defensor público do Estado de Alagoas desde 2003 corregedor-geral da Defensoria Pública do Estado de Alagoas (2019-2021) e foi membro da Comissão Nacional de Penas e Medidas Alternativas — Depen/MJ e do Conselho Estadual de Segurança Pública (AL).

    Ver todos os posts

10 de janeiro de 2025, 15h11

Atuando pela Defensoria Pública do Estado de Alagoas em dois casos julgados recentemente pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no RHC nº 175.415-AL, relator: ministro Jesuíno Rissato, j. 11/3/2024, e AgRg no AREsp nº 2.334.905-AL, rel. min. Jesuíno Rissato, j. 6/8/2024), surgiu a ocasião de analisar interessante questão jurídica acerca da possibilidade de utilização, na decisão de pronúncia, de “prova” oral (elemento informativo do inquérito, tecnicamente) colhida em solo policial e não reproduzida em juízo, em razão do desparecimento ou morte da testemunha. No primeiro caso, admitiu-se tal “prova” para embasar a existência de indícios de autoria e confirmar a pronúncia; no segundo, para julgar admissível uma qualificadora do crime.

Nos casos acima referidos, o Superior Tribunal de Justiça apontou que o depoimento prestado na fase policial de uma testemunha que faleceu antes de ser ouvida em juízo caracteriza, na verdade, uma prova irrepetível, de modo que a decisão (pronúncia) pode nela se basear exclusivamente, nos termos da ressalva prevista no artigo 155, caput, do CPP.

De fato, existem situações bastante corriqueiras em que as declarações do ofendido ou o depoimento testemunhal prestado na fase das investigações não são reproduzidos em juízo, caracterizando a irrepetibilidade superveniente (BRENTEL, p. 56) ou irrepetibilidade resultante de fato posterior (FERNANDES, 2010, p. 66). Isso pode ocorrer por diversas razões, algumas imputáveis à vontade humana (por exemplo, a testemunha ou vítima que se nega a depor em juízo, ou que intencionalmente muda-se para lugar desconhecido e impossibilita a sua intimação), outras acidentais ou eventuais (doença incapacitante ou morte antes da audiência). Indaga-se: nessas hipóteses, o elemento informativo altera a sua natureza jurídica e se transforma em prova irrepetível, sendo capaz de fundamentar com exclusividade uma decisão de pronúncia ou sentença condenatória?

Inicialmente, é preciso reconhecer que uma leitura superficial do citado dispositivo legal parece autorizar tal conclusão, que não passa de um sofisma. Confira-se:

“Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008).”

Afinal, de fato, a testemunha ou vítima que desapareceu, não foi localizada ou ficou impossibilitada de ser ouvida em juízo (por doença incapacitante ou morte) caracteriza uma prova que não pode, concretamente, ser reproduzida em juízo. Logo, seria uma prova irrepetível e poderia, por si só, embasar uma decisão de pronúncia ou até mesmo uma condenação.

Porém, é preciso ter cuidado com o que dizem as leis, e a interpretação não pode desconsiderar a natureza jurídica dos institutos, o conjunto do ordenamento jurídico e os princípios que o sustentam, sob pena de gerar sofismas e soluções jurídicas manifestamente equivocadas.

Primeiro, é preciso lembrar o que é a “prova” oral colhida na fase inquisitorial. As declarações do ofendido e o depoimento da testemunha, quando prestados na etapa das investigações, constituem elementos informativos e não prova em sentido estrito. A sua finalidade, portanto, é fornecer subsídios para a investigação, a decretação de medidas cautelares, o oferecimento e recebimento da denúncia ou queixa. Trata-se de uma função precipuamente endoprocedimental (LOPES JR., 2004, p. 259), isto é, tais elementos destinam-se, principalmente, a fornecer base empírica para fundamentar os atos e decisões tomados na fase preliminar; não podem, jamais, ser utilizados como fundamento exclusivo para a sentença condenatória (artigo 155, caput, do Código de Processo Penal) ou mesmo para a pronúncia, conforme a atual orientação do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no HC nº 890.837/RS, rel. min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. 23/10/2024) e do Supremo Tribunal Federal (HC nº 239.207 MC-Ref, rel. min. Edson Fachin, 2ª Turma, j. 22/4/2024).

Spacca

Diferentemente das provas documental e pericial (que podem ser produzidas fora do processo e, depois de juntadas aos autos e submetidas a contraditório diferido, valoradas pelo julgador), a prova oral, por sua própria essência (ou natureza), deve ser produzida em juízo, sob a indeclinável observância do contraditório. Não é apenas uma condição de validade da prova, mas um requisito diretamente relacionado à sua natureza jurídica: ou ela nasce dentro do processo e se caracteriza como prova em sentido estrito, ou é produzida fora do processo e, ipso facto, constitui elemento informativo. Não há outra possibilidade, porque isso é o que efetivamente diferencia os dois institutos (prova em sentido estrito e elemento informativo), é o cerne da questão e está ligado à natureza jurídica de cada um.

É verdade que, segundo o artigo 369 do Código de Processo Civil (aplicável por extensão ao processo penal – artigo 3º do CPP), “As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. Então, por que não admitir o depoimento testemunhal oriundo da fase inquisitorial como prova em juízo, especialmente quando impossível a sua repetição?

É necessário lembrar que tal dispositivo se refere às provas anômalas, isto é, àquelas que, embora não previstas expressamente na legislação, podem ser admitidas desde que moralmente legítimas e capazes de demonstrar a verdade dos fatos controvertidos. Não é o caso, evidentemente, da prova testemunhal, que é uma prova típica, explicitamente regulamentada em nosso ordenamento jurídico (BADARÓ, 2005, p. 344).

Então, coloca-se a seguinte questão: diante de uma prova típica, com requisitos legais expressamente disciplinados na lei, quais os seus requisitos essenciais, sem os quais não pode ser tida como prova em sentido estrito?

Segundo o Código de Processo Penal, a prova testemunhal deve ser requerida, em regra, na denúncia ou queixa (ou, no procedimento escalonado do Tribunal do Júri, também na fase do artigo 422); após o seu deferimento, a testemunha deve ser ouvida na presença do juiz (artigo 203), devendo prestar formalmente o compromisso de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado (artigo 210), ressalvadas as hipóteses de dispensa ou impedimento de depor (artigos 206 e 207). Antes de iniciado o depoimento, as partes podem contraditar a testemunha, isto é, apontar fatos que comprometam a sua imparcialidade ou capacidade de depor sobre os fatos apurados em juízo (artigo 214). Por fim, as partes, durante o depoimento, podem fazer perguntas diretamente à testemunha (artigo 212), garantido o direito do réu de presenciar o ato e auxiliar seu defensor.

Como lembra Badaró (2005, p. 346), nada disso é observado quando se aceita uma declaração de testemunha produzida fora da relação jurídica processual. Diferentemente da prova documental, que essencialmente é produzida extraprocessualmente e, depois de admitida, submetida a contraditório diferido (ou postergado), a prova testemunhal – uma vez requerida e deferida – nasce dentro do processo, pois é da sua essência ser constituída sob contraditório, em juízo e na presença das partes.

Mero elemento informativo

Aliás, exatamente por tais razões a prática forense revela que jamais foram consideradas provas (em sentido estrito) as declarações escritas de quem poderia ser testemunha, colhidas unilateralmente e juntadas aos autos pelo advogado (ou defensor público) da parte ou pelo membro do Ministério Público.

A “prova oral” colhida na fase do inquérito, portanto, não passa de mero elemento informativo, capaz de ser utilizada validamente – é relevante repetir – como base empírica para a decretação de medidas cautelares, o oferecimento da denúncia ou queixa, assim como, segundo a nossa tradição jurídica, para corroborar provas colhidas em juízo, sob o contraditório (embora tenhamos ressalva pessoal quanto a essa última possibilidade). Não pode, porém, como é evidente, ser utilizada como fundamento exclusivo para a pronúncia nem, muito menos, para a sentença condenatória. O Código de Processo Penal, aliás, prevê soluções claras para estas últimas hipóteses: impronúncia (artigo 414), no caso do procedimento do Tribunal do Júri, e absolvição por ausência de provas, nos demais casos (artigo 386, VII).

É importante compreender que, por sua natureza, a prova oral – entendida em sentido estrito como prova e não mero elemento informativo – precisa ser produzida em juízo, sob o contraditório e com a participação das partes: por essa razão, em caso de risco de perecimento, admite-se a sua produção de forma antecipada; da mesma forma, aceita-se a utilização da prova oral emprestada, pois em ambos os casos houve a produção da prova em juízo, com todas as garantias daí decorrentes, e com a participação ativa das partes. Nada disso ocorre quando se tem um elemento informativo colhido na fase do inquérito, o qual não pode ter a sua natureza jurídica transformada em razão de um fato superveniente (doença ou morte da testemunha, por exemplo). Conforme arremata Vicente Greco Filho (2010, p. 204-205):

“Resta a prova não repetível. Quanto a esta, exemplificando com a testemunha falecida ou que não é encontrada para depor em juízo, de duas uma: ou seu depoimento está corroborado por provas submetidas a contraditório (prévio, concomitante ou diferido) ou não está. Se está, pode, e isso sempre foi possível, compor o conjunto probatório suficiente para a condenação; se não está, exclusivamente não pode servir de base para a condenação e não há disposição legal que possa fazê-lo valer em virtude do princípio constitucional do contraditório”.

Na mesma linha, Andrey Borges de Mendonça (2008, p. 86) ressalta que “Não teria sentido em considerar que a mera impossibilidade de repetição pudesse transmudar essa prova de ‘não apta’ para ‘apta’ a fundamentar um decreto condenatório”.

Logo, a superveniente impossibilidade de reprodução em juízo do elemento informativo (depoimento de testemunha ou declarações do ofendido) não tem o condão de mudar a sua natureza jurídica, transformando-o em prova. Ofende a lógica jurídica, contraria o senso mais elementar de aplicação do direito a afirmação de que um elemento informativo não comprovado em juízo, justamente por não ter sido reproduzido judicialmente, considera-se como prova. Nem mesmo a lei poderia estabelecer isso, já que possui limitações e precisa respeitar a natureza jurídica dos institutos.

Na realidade, a ideia de permitir a utilização de elementos informativos como provas (em sentido técnico) reflete uma ideologia antigarantista permeada pelo decisionismo processual, isto é, a ausência de fundamentos empíricos objetivos e precisos e consequente subjetividade dos pressupostos de aplicação da sanção penal (FERRAJOLI, 2006, p. 45-46).

Portanto, deve-se interpretar o conceito de “provas irrepetíveis” (artigo 155, parágrafo único, do Código de Processo Penal) tendo em conta a diferente natureza jurídica dos institutos em questão (elementos informativos do inquérito e provas em sentido estrito). Desse modo, o conceito abrange apenas aquelas produzidas cautelarmente (como a prova pericial, por exemplo), de forma antecipada ou emprestada (de outro processo). Fora dessas hipóteses, não se trata de prova, mas de mero elemento informativo, que não pode servir de lastro exclusivo para uma decisão de pronúncia nem, a fortiori, para a sentença condenatória.

 


REFERÊNCIAS:

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. (2005). “Provas atípicas e provas anômalas: inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas de quem poderia ser testemunha”. Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover, Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanoide de Moraes (organizadores), São Paulo, DPJ, p. 251-362.

BRENTEL, Camilla. (2012). As provas não repetíveis no processo penal brasileiro. 110 fls. Dissertação (Mestrado em Direito Processual Penal – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-02102012-145142/publico/Dissertacao_versao_final_marco_2012_Camilla_Brentel.pdf

FERNANDES, Antonio Scarance. (2010). Processo penal constitucional, 3ª ed., revista, atualizada e ampliada, São Paulo, RT.

FERRAJOLI, Luigi. (2006). Direito e razão – teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica et al. 2ª edição, São Paulo, RT.

GRECO FILHO, Vicente. (2010). Manual de processo penal, 8ª ed. Revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Saraiva.

LOPES JR., Aury. (2004). Introdução crítica ao processo penal (Fundamentos da instrumentalidade garantista), 1ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris.

MENDONÇA, Andrey Borges de. (2008). Os elementos produzidos durante o inquérito e as provas antecipadas, cautelares e irrepetíveis, segundo a reforma do CPP. In: Reforma Processual Penal. Revista ESMP, ano 1, vol. 2, n. 1, julho-dezembro 2008.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. (2024). AgRg no RHC n. 175.415-AL, Sexta Turma, rel. Min. Jesuíno Rissato, j. 11.03.2024.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. (2024). AgRg no AREsp n. 2.334.905-AL, Sexta Turma, rel. Min. Jesuíno Rissato, j. 06.08.2024.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. (2024). AgRg no HC n. 890.837/RS, Sexta Turma, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 23/10/2024.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. (2024). HC n. 239.207 MC-Ref, Segunda Turma, rel. Min. Edson Fachin, j. 22/04/2024.

 

Autores

  • Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (lato sensu) em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Ex-Professor universitário. Defensor Público do Estado de Alagoas, com atuação na segunda instância e tribunais superiores.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!