O filme Ainda Estou Aqui e a história contada por bens públicos
10 de janeiro de 2025, 21h12
Nos últimos meses, ascendeu no cenário artístico internacional o filme brasileiro Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e que rendeu à atriz Fernanda Torres o prêmio de melhor atriz em filme de drama no Globo de Ouro de 2025. A obra retoma um episódio da história do Brasil referente ao desaparecimento forçado do político Rubens Paiva, reacendendo as discussões a propósito da ditadura militar de 1964.
Existem várias formas de interpretar o filme e suas repercussões sociais, inclusive do ponto de vista jurídico. Um dos possíveis ângulos de análise – e que será o objeto deste ensaio – é o papel do Direito Administrativo no contexto pós-ditadura, de justiça de transição. A interseção entre esse ramo do Direito e a memória coletiva por graves violações a direitos humanos é um tanto inusitada. Em geral, as investigações sobre esse fenômeno recaem sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Constitucional e até mesmo sobre o Direto Penal. Mas o ferramental teórico administrativista tem muito a contribuir com o debate e, entre todas as possibilidades, destaca-se o papel dos bens públicos como veículos de memória.
Grosso modo, é o que o historiador francês Pierre Nora definia como lugares de memória [1], espaços que narram histórias relevantes para determinadas sociedades e que não devem ser esquecidas, mesmo em mundo em constante mutação.
No caso do Brasil, muitos bens públicos foram usados como instrumentos de persecução a civis. Isso se observa no filme, em particular, nas cenas que retratam o DOI-Codi na Tijuca, um dos muitos prédios públicos palco de episódios de violência à época.
As cenas do filme contrastam um Rio de Janeiro tropical, praiano e vívido com uma cidade permeada por desaparecimentos forçados, torturas e outras estratégias antidemocráticas acometidas em espaços públicos, algo do qual muitas vezes nos olvidamos nos dias atuais. Mesmo depois da adoção de algumas medidas de justiça de transição, como a constituição de uma Comissão da Verdade, em 2012, e do pagamento de indenização a ao menos parte das famílias das vítimas, a memória coletiva ainda pode ser fortalecida, e a forma como utilizamos bens públicos tem muito a contribuir com essa missiva.
Nessa perspectiva, existem ao menos três papéis que o domínio público pode desempenhar na recuperação da memória. O primeiro deles consiste na proposta de que alguns bens públicos que foram palco de cenas violentas na ditadura militar sejam convertidos em lugares de memória, tais como memoriais, museus ou centros culturais, voltados a recordar os acontecimentos neles ocorridos. Isso tornaria mais visível às gerações mais novas, que não tiveram contato direto com a ditadura, senão pelos livros, a violência, as vítimas, onde ocorreu qual fato, etc.
Não se trata apenas de uma decisão político-partidária, senão uma questão jurídica. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CDIH [2] e a Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH possuem entendimento consolidado no sentido de que os Estados devem adotar políticas de memória, entre as quais constam justamente a criação de lugares de memória, de modo a manter viva a história de graves violações a direitos humanos perpetradas em contextos autoritários.
Casa da Morte e memoriais
Há alguns exemplos concretos nesse sentido. Para ilustrar, em 2024, o município de Petrópolis ajuizou ação de desapropriação, com recursos advindos da União Federal, em face dos proprietários do que antes era conhecido como Casa da Morte, imóvel dedicado à repressão e tortura de presos políticos na ditadura, para convertê-la em um memorial [3]. Esse parece ser um bom destino também para o DOI-Codi, apresentado no filme de Salles, tornando-o lugar de memória no Rio de Janeiro, tal como se sucedeu em São Paulo com o Deops, que deu origem ao Memorial da Resistência.
Em segundo, tem-se a possibilidade de erigir novas construções para recordar histórias da ditadura, ainda que em locais diversos dos que onde ocorreram episódios de violência, no intuito de fomentar o debate público sobre o tema em diferentes regiões do país. Foi esse o caso do projeto Memorial Pessoas Imprescindíveis, que consistiu na construção de monumentos em diversos locais em homenagem às vítimas; e também do Memorial da Anistia Política, na UFMG, cujas obras estão em execução há alguns anos. E esses espaços podem ser, inclusive, virtuais, a exemplo da página Memória Reveladas, no site do Arquivo Nacional, que reúne a memória arquivística nacional da repressão entre 1964 e 1985 em um só lugar.
Esse ponto é relevante considerando que alguns locais onde ocorreram fatos históricos podem já não existir mais ou terem sido alterados substancialmente, como se sucedeu com o Instituto Penal Cândido Mendes, o presídio de Ilha Grande (RJ), para o qual também eram enviados presos políticos, que foi implodido em 1994 e teve parte de seu acervo transferido ao Museu do Cárcere.
Outras frentes
O terceiro papel, a seu turno, seria interditar que determinados bens públicos adotem signos elogiosos à ditadura. Exemplo disso foi a decisão proferida pela Justiça Estadual de São Paulo determinando que 11 ruas da capital paulista tenham seus nomes alterados, porquanto fazem apologia a personagens partidários da ditadura militar [4]. A ação foi proposta pelo Instituto Vladmir Herzog e pela Defensoria Pública com fundamento na Lei Municipal nº 15.717/13, que veda a atribuição de nomes de autores de crimes de lesa-humanidade e graves violações de direitos humanos a logradouros públicos (artigo 1º da lei).
Caminhando para o final, não se está a dizer que o Brasil esteja longe de uma política de memória efetiva. Tanto a CIDH quanto a Corte IDH já reconheceram no passado algumas ações brasileiras voltadas à implementação de lugares de memória, tal como consta no relatório sobre Direito à Verdade nas Américas [5] e na sentença no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia) [6][7].
Todavia, é preciso que se continue a remar nessa direção. Algumas iniciativas ainda são recentes ou ainda estão em fase de implementação. E a combinação desses três papeis do Direito Administrativo tem o potencial de fortalecer a memória coletiva, se afigurando um mecanismo relevante de não repetição dos fatos ocorridos, à semelhança da produção de obras artísticas e culturais com essa temática, como o filme Ainda Estou Aqui. No jargão social: saber a história é o primeiro passo para não a repetir.
[1] NORA, Pierre. Les Lieux de Mémoire. Trad., Trilce, 2008, pp. 33 e ss.
[2] Vide COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Resolución nº 03/2019: Principios sobre Políticas Públicas de Memoria en las Américas. 27/05/ 2017.
[3] UNIÃO FEDERAL. Implantação do memorial na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), tem mais uma etapa concluída. 23/12/2024. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2024/dezembro/implantacao-do-memorial-na-casa-da-morte-em-petropolis-rj-tem-mais-uma-etapa-concluida>
[4] 3ª Vara de Fazenda Pública do TJ-SP, decisão proferida nos autos do processo nº 1097680-66.2024.8.26.0053, juiz: Luiz Manuel Fonseca Pires, 12/12/2024.
[5] CIDH. Derecho a La Verdad em América. OEA/Ser.L/V/II.152. 13/08/2014, p. 109.
[6] CORTE IDH. Gomes Lund e Outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”). 24/11/2010, pp. 102 e ss.
[7] No caso Herzog e outros vs. Brasil, que sucedeu ao caso Gomes Lund, esse tema não chegou a ser objeto das discussões, conforme se extrai da página 96 (CORTE IDH. Vladimir Herzog e outros vs. Brasil. 15/03/2018, p. 96).
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