Direitos Fundamentais

Direitos fundamentais, meio ambiente e clima em 2024: uma retrospectiva na perspectiva jurisprudencial

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10 de janeiro de 2025, 11h16

O ano de 2024 foi mais um ano marcante para o Direito Ambiental e o Direito Climático, tanto no campo legislativo quanto jurisprudencial. Neste artigo, iremos nos ater ao legado de 2024 para jurisprudência ambiental e climática. Num segundo artigo que será publicado na sequência, abordaremos os avanços legislativos na matéria. Contudo, de adentrar o exame da jurisprudência propriamente dito, cabe registrar que o ano de 2024 entrou para a nossa história recente como o ano dos maiores desastres climáticos verificados no Brasil, pelo menos até o presente momento, já que segundo o último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, esse será o novo normal climático, com episódios climáticos extremos cada vez mais intensos e frequentes.

Entre enchentes, secas e incêndios, os episódios climáticos extremos bateram todos os recordes históricos em 2024 e impuseram-se como nunca na vida cotidiana dos brasileiros, impactando direitos fundamentais e fragilizando, ainda mais e de forma desproporcional, grupos sociais vulneráveis. A título de exemplo, nas enchentes de abril/maio de 2024 no Rio Grande do Sul, verificou-se, conforme dados oficiais, a formação de um contingente de mais de meio milhão de deslocados climáticos.

Não por coincidência, o ano de 2024 foi reconhecido pelo Instituto Copernicus da União Europeia, que monitora o clima global, como o ano mais quente da nossa história (desde o início dos registros históricos em 1940) [1]. Feita essa breve contextualização dos desafios ambientais e climáticos vivenciados no Brasil e no mundo no ano de 2024, a ponto de se falar do reconhecimento jurídico de um “estado de emergência ambiental e climática”, passaremos a analisar os casos que reputamos mais importantes e emblemáticos da jurisprudência ambiental e climática do ano passado.

Caso Habitantes de La Oroya vs. Peru da Corte IDH

A sentença no Caso Comunidade La Oroya, julgado ainda em final de 2023, mas cujo inteiro teor só foi divulgado em 2024, foi o primeiro julgamento contencioso da Corte IDH sobre poluição (ou contaminação) química. Para dimensionar a magnitude da poluição industrial verificada no caso, La Oroya foi listada entre as localidades mais poluídas do mundo por órgãos internacionais. A poluição decorrente do Complexo Metalúrgico de La Oroya, no Peru, perpetuou-se por mais de um século, ensejando, segundo a Corte IDH, violação flagrante ao direito a um meio ambiente saudável e a configuração de uma “zona de sacrifício”, caracterizada pela violação sistêmica e massiva dos direitos humanos dos seus residentes. Inúmeras gerações dos habitantes de La Oroya foram envenenadas por chumbo, arsênico e outras substâncias químicas altamente tóxicas, resultando em doenças (físicas e mentais) e mortes.

Na sua decisão no Caso La Oroya, a Corte IDH passou a reconhecer, de forma pioneira, a proteção ambiental como norma de jus cogens.  Ao adotar tal entendimento, a Corte IDH elevou o status jurídico da proteção ambiental, reconhecendo-a como norma imperativa de direito internacional e princípio universal inderrogável imposto aos Estados, de modo similar ao verificado nas proibições de genocídio, de escravidão, de apartheid, de desaparecimento forçado e de crimes de lesa humanidade.

Outro ponto inovador trazido pela Corte IDH no caso foi o reconhecimento de que os deveres de proteção do Estado para com os direitos humanos incidem na regulamentação da atividade de mineração empreendida por empresas públicas e privadas, por meio da imposição de “deveres de devida diligência” e a correlata reparação de danos causados às vítimas de tal atividade (“las obligaciones de los Estados para el respeto y garantía de los derechos humanos frente acciones u omisiones de empresas públicas y privadas”). Ainda de acordo com a decisão da Corte IDH, “como parte de su deber de protección contra las violaciones de derechos humanos relacionadas con actividades empresariales, los Estados deben tomar medidas apropiadas para garantizar, por las vías judiciales, administrativas, legislativas o de otro tipo que correspondan, que cuando se produzcan ese tipo de abusos en su territorio y/o jurisdicción los afectados puedan acceder a mecanismos de reparación eficaces”.

Na linha dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU (2011), conhecidos como Princípios Ruggie e aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos, o reconhecimento, pela Corte IDH, do dever (na verdade, múltiplos deveres) de devida diligência das empresas públicas e privadas em matéria de direitos humanos, meio ambiente e clima, conecta-se com denominada eficácia dos direitos humanos nas relações entre particulares, o que ganha ainda maior relevância e força no Brasil após a decisão emblemática proferida pelo STF na ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima) [2], ao reconhecer o status supralegal dos tratados internacionais em matéria ambiental e climática (ex. Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, Acordo de Paris etc.) ratificados e incorporados ao sistema jurídico nacional.

Spacca

A decisão da Corte IDH no Caso Comunidade La Oroya, por sua vez, guarda sintonia com o que se passa no contexto europeu e internacional no concernente à responsabilidade corporativa em matéria de direitos humanos, proteção do meio ambiente e clima. Nesse sentido, registra-se a Diretiva de Due Diligence em Sustentabilidade Corporativa (CS3D) da União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu em 2024, que estabelece obrigações das empresas em relação aos impactos adversos atuais e potenciais aos direitos humanos e ao meio ambiente em suas operações diretas e no âmbito de sua cadeia global de atividades, alcançando, de modo indireto, empresas brasileiras ou com operação no país que integrem de algum modo essa cadeia.

Caso Verein KlimaSeniorinnen Schweiz e outros v. Suíça, da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH)

A Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) proferiu importante decisão no caso Verein KlimaSeniorinnen Schweiz e Outros v. Suíça (2024), envolvendo, pela primeira vez, a matéria climática, ao considerar violação do direito ao respeito pela vida privada e familiar da Convenção Europeia de Direitos Humanos, em razão do não cumprimento, por parte da Suíça, dos seus deveres (“obrigações positivas”) em relação ao enfrentamento das mudanças climáticas.

O caso trata da reclamação de quatro mulheres idosas e uma associação suíça, cujos membros são todas mulheres idosas preocupadas com as consequências do aquecimento global em suas condições de vida e saúde. De acordo com as autoras, as autoridades suíças não estariam tomando medidas suficientes, apesar de suas obrigações nos termos da Convenção, para mitigar os efeitos da mudança climática. A corte considerou que o artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos abrange o direito à proteção efetiva por parte das autoridades estatais contra os graves efeitos adversos das mudanças climáticas sobre a vida, a saúde, o bem-estar e a qualidade de vida.

A corte constatou que a Confederação Suíça não cumpriu seus deveres (“obrigações positivas”) de acordo com a Convenção sobre mudanças climáticas e, assim, houve uma violação do Artigo 8 (direito à vida privada e familiar) da convenção, haja vista a verificação de omissões críticas no processo de implementação da estrutura regulatória nacional, incluindo a falha das autoridades suíças em quantificar, por meio de um orçamento de carbono ou de outra forma, as limitações nacionais de emissões de gases de efeito estufa. A Suíça também não havia cumprido suas metas anteriores de redução de emissões de GEE. Embora reconhecendo que as autoridades nacionais gozam de ampla discricionariedade em relação à implementação da legislação e das medidas, a CEDH considerou, com base no material apresentado, que as autoridades suíças não agiram a tempo e de forma adequada para conceber, desenvolver e implementar legislação e medidas adequadas ao enfrentamento das mudanças climáticas.

Opinião Consultiva sobre “Mudanças Climáticas e Direito Internacional” (2024) do Tribunal Internacional sobre o Direito do Mar (Itlos)

O Tribunal Internacional sobre o Direito do Mar, por meio da sua Opinião Consultiva sobre “Mudanças Climáticas e Direito Internacional” (2024), reconheceu expressamente que: “as mudanças climáticas representam uma ameaça existencial e levantam questões de direitos humanos”. A Opinião Consultiva é histórica, sendo a primeira emitida por um Tribunal Internacional de modo específico sobre as obrigações internacionais dos Estados para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Na linha do que vem adotando outros tribunais internacionais, como a CIJ e a Corte IDH que tiveram audiências públicas em 2024 e devem emitir também Opiniões Consultivas sobre matéria climática ao longo de 2025, o documento resultou de iniciativa liderada pela República de Vanuatu (país no sul do Oceano Pacífico formado por cerca de 80 ilhas já impactadas diretamente pelo aumento do nível do mar), juntamente com 105 Estados-Membros a respeito das obrigações dos Estados em relação às mudanças climáticas, aprovada por consenso pela Assembleia Geral da ONU em 2023. A Opinião Consultiva do Itlos é explícita ao estabelecer uma abordagem de direito humanos para o tratamento das mudanças climáticas, bem como reconhecer a emissão de gases do efeito estufa como uma forma de poluição dos mares e oceanos.

Caso PPCDAm (ADPF 760/DF) do STF

No plano doméstico, como um dos casos mais importantes julgados pelo STF no ano de 2024 em matéria ambiental e climática, destaca-se a ADPF 760/DF, também conhecido como Caso PPCDAM, na medida em que discutiu a (in)constitucionalidades das medidas de combate ao desmatamento na Amazônia e inativação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).

A ADPF 760/DF estava inicialmente sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, que havia inclusive reconhecido, no seu voto, o estado de coisas inconstitucional (ambiental/climático) decorrente do aumento expressivo do desmatamento ilegal da Floresta Amazônica (entre os anos de 2019 e 2022) e omissão do Estado brasileiro no cumprimento dos seus deveres constitucionais de proteção ambiental.

O Plenário julgou procedente a ação, mas afastou o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ambiental no julgamento final da ADPF 760/DF, seguindo voto-redator do ministro André Mendonça, notadamente por identificar um processo de “constitucionalização” do cenário relativo ao desmatamento florestal na Amazônia, considerando a alteração substancial do contexto fático após a propositura da ação. De acordo com o ministro Mendonça, “afigura-se inconstitucional a adoção de postura estatal omissiva, deficiente, ou em níveis insuficientes para garantir o grau de eficácia, efetividade e eficiência mínimo necessário à substancial redução do cenário de desmatamento e degradação atualmente verificado”.

De acordo com a corte, a decisão encontra fundamento no “compromisso significativo” (meaningful engagement) assumido pelo governo federal, por exemplo, por meio da “(…) determinação de (i) elaboração de plano de ação voltado à efetiva execução do PPCDAm ou outro instrumento de planejamento e formatação da política pública ambiental para a região amazônica atualmente em vigor; (ii) elaboração de plano específico de fortalecimento institucional do Ibama, do ICMBio, da Funai e outros órgãos envolvidos na defesa e proteção do meio ambiente; (iii) apresentação, em sítio eletrônico a ser indicado pela União, de relatórios objetivos, transparentes, claros e em linguagem de fácil compreensão ao cidadão brasileiro, contendo as ações e os resultados das medidas adotadas em cumprimento aos comandos determinados por este STF; (iv) abertura de créditos extraordinários, com vedação de contingenciamento orçamentário, em relação às rubricas ambientais; e, (v) expedição de notificação ao Congresso Nacional acerca do contido na presente decisão”.

Para além da importância da decisão em si e do reconhecimento do regime constitucional de proteção não apenas ambiental, mas igualmente climática, na linha de decisões pretéritas do STF, a riqueza dos votos dos ministros representou uma passo à frente em diversos pontos. A título de exemplo, conforme referido anteriormente, o ministro assinalou no seu voto que: “(…) é forçoso concluir pela existência de um estado de coisas ainda inconstitucional na proteção e preservação da Floresta Amazônica, em trânsito para a constitucionalidade, acoplando-se a essa declaração medidas remediais que permitam superar esse cenário e efetivar os direitos e os deveres fundamentais ambientais, ecológicos e climáticos”.

É a primeira referência em decisão do STF acerca do reconhecimento de um direito fundamental ao clima (limpo, saudável e seguro). Além disso, como referido pelo ministro Fachin, no seu voto, é imperativo um novo pacto constitucional transgeracional: “no Direito Ambiental, no atual quadro de emergência climática, o dever mesmo é de um novo pacto social, entre esta e as futuras gerações”. Por fim, dentre outros pontos a serem destacados, registra-se o reconhecimento, no voto da ministra Carmen Lúcia, da natureza multinível do atual sistema normativo ambiental e climático.

O Caso das Queimadas (ADPF 743/DF, 746/DF e 857/DF) do STF

O STF julgou, em 2024, parcialmente procedentes os pedidos formulados nas ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF, que têm como objeto a elaboração de um plano governamental para a proteção da Amazônia e do Pantanal contra incêndios nos referidos biomas, determinando ao governo federal, entre outras medidas, apresentar, no prazo de 90 dias, um “plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que já estão ocorrendo e para prevenir que outras devastações dessa proporção não sejam mais vistas”, bem como que  um “plano de recuperação da capacidade operacional do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais – Prevfogo”.

O ministro Flávio Dino, ao dar cumprimento à decisão do STF proferida nas ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF [3], enfatizou o estado de emergência climática vivenciado no Brasil por conta da disseminação de incêndios (segundo ele, enfrentamos uma “pandemia de incêndios”) verificado com mais gravidade no segundo semestre do ano de 2024 (ou seja, após a decisão proferida pelo Plenário da Corte no mês de abril). No bojo das decisões adotadas pelo ministro Dino, inclusive com a realização de audiências com as partes interessadas, resultou expressamente a natureza do processo em questão, em vista da resolução prognóstica do litígio posto em causa, como um “processo estrutural ambiental”.

O que esperar de 2025? O ano da COP30 no Brasil!

O ano de 2025 será histórico para o Brasil da seara ambiental e climática em razão da realização da COP30 (Paris+10) no mês de novembro, em Belém do Pará. Ao colocar as florestas – e, em particular, a Floresta Amazônica – no centro da agenda global climática, o Brasil terá a oportunidade de assumir na COP30 um papel de ainda maior protagonismo no debate climático internacional. Para isso, no entanto, deverá fazer seu dever de casa e alinhar os eixos político, econômico e ambiental em torno do mesmo propósito de proteção climática. O Direito, por sua vez, já deu mostras suficientes nos últimos anos – e a jurisprudência referida aqui ilustra esse cenário – dos avanços incontestáveis em torno de um regime jurídico (convencional, constitucional e infraconstitucional) bastante consistente de proteção ecológica e climática – inclusive por meio da consolidação de um Direito Climático [4] – para se colocar como barreira a quaisquer retrocessos, além de diretriz futura para os progressos que se fazem necessários na matéria rumo à neutralidade climática e o desmatamento zero – fatores determinantes para o efetivo cumprimento do Acordo de Paris (2015).

Para fechar, destacamos passagem inspiradora do voto da ministra Cármen Lúcia na ADPF 760/DF, ao sinalizar, entre outros pontos, para o reconhecimento do valor intrínseco que devemos atribuir à Natureza, aos animais e aos elementos naturais (florestas, rios, paisagens etc.), dado elo existencial que mantemos com o Planeta Terra:

“A Natureza tem a dignidade que supera a questão primária do que é avaliável e revertido em dinheiros. (…) A dignidade ambiental conjuga-se com a solidariedade humana que lança como base formadora do sistema de humanidade planetária, de interesses de bem-estar e de bem em igualdade de condições de saúde, de formação humanística e de preservação das condições de vida para os que vierem no futuro. A Floresta não pode ser cuidada apenas como estoque de carbono. Ela é uma expressão da humanidade, que se compadece com os valores da dignidade e da ética ambientais.”

 


[1] Disponível em: https://climate.copernicus.eu/year-2024-set-end-warmest-record#:~:text=The%20estimate%20for%202024%20is,to%201.48%C2%BAC%20in%202023).

[2] STF, ADPF 708/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Barroso, j. 01.07.2022.

[3] STF, ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF, decisão monocrática, Rel. Ministro Flávio Dino, j. 15.09.2024.

[4] SARLET, Ingo W.; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito climático. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2023 (2.ed. de 2025 no prelo).

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