Legalidade, analogia e interpretação extensiva em Direito Penal
9 de janeiro de 2025, 6h30
Um dos postulados angulares da dogmática jurídico-penal é que não há crime nem pena sem lei anterior que a defina, princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine lege), que se desdobra. Luisi, em texto seminal, elencava como decorrentes da legalidade: a) reserva legal; b) taxatividade da norma penal e c) irretroatividade da lei penal [1].
Da reserva legal, extrai-se importantes fundamentos, sendo o mais básico de todos aquele que diz que somente a lei anterior ao fato pode estabelecer que este constitui delito, cominando a pena aplicável [2]. Mas há outra relevantíssima consequência que dele se extrai: a vedação de analogia em desfavor do réu (in malam partem) [3].
Um excurso a modelos autoritários revela que a vedação da analogia in malam partem e outros princípios, como a irretroatividade penal da lei mais gravosa, são flexibilizados em tais situações. Em 1933, p. ex., modificou-se o § 2º do StGB (CP alemão), para permitir a analogia, e, na prática, fulminar o princípio da legalidade [4]. Também o regime stalinista da União Soviética impôs flexibilizações insustentáveis.
Pois bem. Não há dúvida a respeito da vedação de analogia in malam partem. No entanto, há um tom de cinza que nem sempre recebe a atenção e as luzes da doutrina e da jurisprudência: a interpretação extensiva. A hermenêutica jurídica estuda diferentes formas de interpretação do direito; em direito penal, esse estudo parece, senão incipiente, menos consolidado.
O objetivo deste texto não é defender a legitimidade da interpretação extensiva em Direito Penal – o que demandaria estudo próprio, e sim traçar aspectos conceituais que auxiliem na abordagem do tema, delimitando diferenças entre analogia, interpretação analógica e interpretação extensiva, tendo o princípio da legalidade como fundamento maior de um Direito Penal que se queira democrático.
Interpretação extensiva em Direito Penal: o que é?
São conhecidas as distinções entre interpretação restritiva, declarativa e extensiva [5]. A interpretação extensiva ocorre quando a fórmula positiva é estreita, contendo expressões inexatas ou inadequadas a traduzir plenamente o sentido: minus dixit quam voluit – “disse menos do que pretendeu exprimir” [6].
Em Direito Penal esse conceito pouco auxilia. O revogado código penal português de 1886 dispunha, no artigo 18.º, que “não é admissível a analogia ou indução por paridade, ou maioria de razão, para qualificar qualquer facto como crime; sendo sempre necessário que se verifiquem os elementos essencialmente constitutivos do facto criminoso que a lei penal expressamente declarar”. Eduardo Correia esclarecia que a vedação se dava exclusivamente no âmbito da tipicidade, de modo que somente a incriminação não podia aceitar a interpretação extensiva [7], e concluía que a interpretação extensiva é uma abertura do tipo penal, passível de aumentar a esfera do punível – e, por via reflexa, de proteger o bem jurídico-penal que se visa tutelar.
Deve-se distinguir. Comecemos pela analogia, que ocorre quando não há regulação legal, e, portanto, pressupõe uma lacuna, socorrendo-se o hermeneuta de outro dispositivo na legislação. Esse movimento é vedado em direito penal, salvo para beneficiar o réu. Já a interpretação analógica consiste em alcançar o melhor significado de um elemento típico existente utilizando outro que também existe, e que lhe confere sentido ou significado – fazendo uso de um raciocínio assentado na lógica jurídica [8].
À luz desses conceitos, é interessante perpassar por alguns exemplos concretos.
Crime de motim em unidade socioeducadora (FASE)
Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), analisou-se a imputação do crime de motim em caso de cumprimento de medida socioeducativa de internação [9]. O delito do artigo 354, CP, tipifica a conduta de “amotinarem-se presos, perturbando a ordem ou disciplina da prisão”, deixando de fora da literalidade do texto o motim em unidade da FASE, como ocorreu no caso. Seria possível imputar o crime de motim em situações de cumprimento de medida socioeducativa?
O tribunal entendeu que sim, em interpretação extensiva. Para o colegiado, em suma, “preso” é o sujeito privado de liberdade, o que ocorre em face de internação prevista na Lei nº 8.069/90, e “prisão” é o estabelecimento em que cumpre a medida socioeducativa de internação [10]. Na conclusão do relator:
Neste quadro, repito, quem está privado de liberdade na FASE, cumprindo medida socioeducativa de internação, como no caso dos autos, está preso em entidade de atendimento socioeducativo de internação, que se encontra no sentido literal possível do vocábulo prisão. E delibaria violação do princípio da proibição de proteção deficiente afastar do ambiente de internação (em grandes linhas similar à execução penal de adultos) o reforço da tutela penal que veda (artigo 354 do Código Penal) motins que perturbam, consabidamente, a ordem e a disciplina tão necessárias para o cumprimento efetivo e com possibilidades de socialização ou ressocialização de sujeitos na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento [11].
Tal interpretação também ecoa entendimento do STJ [12].
Furto de sinal de TV e de wi-fi cabem no artigo 155, § 3º, do Código Penal?
O crime de furto, tipificado pelo artigo 155, CP, possui a seguinte redação: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Visando solucionar o problema dos “gatos”, i.e., instalações clandestinas que permitem captar energia elétrica, o § 3º do artigo dispõe: “Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”.
Mas e o sinal de TV? caberia no conceito de “energia elétrica” ou de “qualquer outra que tenha valor econômico”? E o sinal de wi-fi?
O STF consolidou que “o sinal de TV a cabo não é energia, e assim, não pode ser objeto material do delito previsto no artigo 155, § 3º, do Código Penal”, asseverando que “na esfera penal não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas” [13]. O entendimento foi seguido pelo STJ [14]. Eventual análise da natureza técnica do sinal de TV a cabo, que não prescinde de aporte interdisciplinar, à luz da noção de interpretação extensiva, que ainda se conserva nos limites do sentido literal possível dos vocábulos consagrados pelo legislador [energia de valor econômico], talvez pudesse conduzir a outra conclusão, questão que deixamos em aberto.
Quanto ao sinal de wi-fi, não há orientação clara. O 38º Exame de Ordem (2023) teve uma questão anulada por esse motivo: o enunciado apresentava caso em que um grupo de pessoas utilizava sinal de wi-fi clandestinamente. A pergunta era se poderia haver indiciamento pelo crime de furto, e o gabarito da questão era o seguinte: “admissível, pois se trata de hipótese de interpretação analógica, cabível no Direito Penal”. Duas notas: talvez o conceito mais adequado, independente do enquadramento final, fosse o de interpretação extensiva; além disso, com o fenômeno do streaming e da digitalização da vida em geral, parece evidente a repercussão econômica do acesso aos dados pela tecnologia em questão.
“SS” sem cruz suástica: apologia ao nazismo?
Em junho de 2024, foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) um caso interessante [15]. O paciente fora denunciado pelo crime previsto no artigo 20, § 1º, da Lei nº 7.716/89. Ele era funcionário público, e o seu local de trabalho dispunha de um vestiário para que os servidores mantivessem pertences em armários durante o horário laboral. Esses armários possuíam etiquetas com os nomes dos funcionários.
No armário, o paciente teria desenhado quatro raios, dois antes e dois depois do seu nome, de modo muito semelhante à “SS” – símbolo da Schutzstaffel (esquadrão de proteção dos líderes nazistas).
O TJ-SP entendeu que o § 1º do artigo 20 da Lei nº 7.716/89 exige a presença da cruz suástica ou gamada. Quaisquer outros símbolos, ainda que remetam ao nazismo, não configuram “divulgação do nazismo” nos termos legais: “os desenhos efetuados ao lado do nome do Paciente numa porta de armário não atingem a finalidade de propagar o nazismo, especialmente porque não se trata da cruz suástica ou gamada, de modo que as garatujas não remetem ao nazismo nos termos definidos em lei”.
Fundamentou o relator que “em matéria penal não se pode admitir interpretação extensiva, especialmente se ela for para prejudicar”. Ressaltamos, no ponto, nossa posição de que a interpretação extensiva, em si, não é tout court inviável em Direito Penal, diversamente do que ocorre com a analogia in malam partem. Outra coisa é saber se determinadas expressões visuais podem ou não se reconduzir ao sentido possível dos vocábulos “cruz suástica ou gamada”.
A posição do STF: o caso Ellwanger (HC nº 82.424) e a “criminalização da homofobia” (ADO nº 26)
No caso Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal considerou o antissemitismo crime de racismo (artigo 20 da Lei nº 7.716/89, na redação dada pela Lei nº 8.081/90), e o fez contrariamente à tese de defesa que postulava interpretação restritiva, pela qual os judeus não configurariam raça. O STF, portanto, interpretou extensivamente o termo racismo, para delimitar a sua abrangência, que abrange “a divisão de seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social” [16]. Buscou compatibilizar os conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo de maneira mais ampla, via “interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal”.
Pese a diversidade vocabular, entende-se que houve interpretação extensiva, com a finalidade de abarcar a conduta delituosa na vedação de imprescritibilidade prevista na CF, artigo 5º, XLII, a significar gravame para a situação do réu [17]. Para a corte, a imprescritibilidade do racismo “deve ser aferida segundo as características político-sociais consagradas na Lei 7.716/89, nas quais se inserem condutas exercidas por razões de ordem religiosa [além de raça, cor, etnia e procedência nacional] e que se qualificam, em tese, como preconceituosas ou discriminatórias” [18].
Caso mais recente foi o da “criminalização da homofobia” (ADO nº 26), em que se deu interpretação conforme a Constituição ao artigo5º, inciso XLI e XLII e ao conceito de “racismo” na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha lei que enquadre homofobia e transfobia nos tipos penais definidos na Lei de 1989. Nos termos da ementa: “as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 8/1/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, artigo 121, § 2º, I, ‘in fine’)” [19]. A corte refere “interpretação conforme [a Constituição]” ao conceito de “racismo” previsto na Lei nº 7.716/89, “que não se confunde com exegese fundada em analogia ‘in malam partem’” [20]. Pese técnica típica do controle de constitucionalidade, trata-se, se bem vemos, de interpretação extensiva, pois racismo deve ser compreendido em sua dimensão social, na trilha do caso Ellwanger [21].
Significa que a Lei nº 7.716/89 usou fórmula demasiado estreita e ao deixar de fora minorias e grupos vulneráveis, “disse menos do que pretendeu [ou deveria] exprimir” [22]? Ou que a omissão que discrimina pessoas e grupos vulneráveis deve ser provisoriamente superada em via jurisdicional? Talvez, que a legalidade, no século 21, continua sendo garantia que deve ser compreendida na plenitude dos direitos fundamentais, influenciada pelo conjunto da Constituição, a demandar equações mais complexas, inclusive nas relações [tensas e dinâmicas] entre juízes e legisladores.
A decisão é polêmica e passível de críticas [examiná-las com maior fôlego é tarefa para outro espaço] – ao cabo, trata-se de espécie de sentença aditiva, com potencial, se não estiverem bem amarrados os critérios, de desarranjar o sistema de garantias penais.
[1] LUISI, Luiz. Os Princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Fabris, p. 18 e ss.
[2] LUISI, Luiz. Op. cit., p. 19.
[3] “Do princípio da Reserva, outrossim, decorre, – em se tratando de normas incriminadoras, – a proibição do direito costumeiro e da analogia como fonte do direito penal” LUISI, Luiz. Op. cit., p. 22.
[4] V. LLOBET RODRÍGUEZ, Javier. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945). Trad. Paulo Busato. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 146 e ss.
[5] CORREIA, Eduardo. Direito criminal. Com a colaboração de Figueiredo Dias. Coimbra: Almedina, 1971, v. I, p. 142.
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, § 217.
[7] CORREIA, Eduardo. Op. cit., p. 145.
[8] OLIVÉ, Juan Carlos Ferré. Et al. Direito penal brasileiro. Parte geral. Princípio fundamentais e sistema. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 86.
[9] TJRS, APC nº 70070139449, rel. des. Jayme Weingartner Neto. Julgado em: 19 out. 2016.
[10] TJRS, APC nº 70070139449, rel. des. Jayme Weingartner Neto. J. 19 out. 2016.
[11] TJRS, APC nº 70070139449, rel. des. Jayme Weingartner Neto. J. 19 out. 2016. Constou, da ementa: “A legalidade e seu precipitado técnico de tipicidade, no Estado democrático de direito, significa que o legislador cria, com o teor literal de um preceito, um marco de regulação que é preenchido e concretizado pelo juiz. Neste marco delimitado pelo sentido literal possível da linguagem, o juiz efetua a interpretação, considerando o significado literal mais próximo, a concepção do legislador histórico e o contexto sistemático-legal e segundo o fim da lei (interpretação teleológica), sendo que a interpretação pode ser tanto restritiva como extensiva. Ao revés, a aplicação do direito à margem do marco de regulação legal (lacuna), que não está coberta pelo sentido literal possível de um preceito penal, configura analogia incriminadora e, portanto, inadmissível.”.
[12] STJ, HC nº 279.729/SP, rel.ª min.ª Maria Thereza de Assis Moura. J. 25 nov. 2014.
[13] STF, HC nº 97.261/RS, rel. min. Joaquim Barbosa. J. 12 abr. 2011.
[14] STJ, REsp nº 1.838.056/RJ, rel.ª min.ª Laurita Vaz. J. 09 jun. 2020.
[15] TJSP, HC nº 2146667-81.2024.8.26.0000, rel. des. Alberto Anderson Filho. J. 14 jun. 2024.
[16] STF, HC nº 82.424/RS, rel. min. Moreira Alves. D.j. 19 set. 2003.
[17] Confira-se: SARLET, Ingo Wolfang/WEINGARTNER NETO, Jayme. Constituição e Direito Penal: questões polêmicas. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 132 e ss.
[18] STF, HC nº 82.424/RS, rel. min. Moreira Alves. D.j. 19 set. 2003.
[19] STF, ADO nº 26/DF, rel. min. Celso de Mello. Julgado em: 13 jun. 2019.
[20] STF, ADO nº 26/DF, rel. min. Celso de Mello. J. 13 jun. 2019, p. 2-3.
[21] STF, ADO nº 26/DF, rel. min. Celso de Mello. J. 13 jun. 2019, p. 125, 130 e 191.
[22] MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., § 217. Com o acréscimo verbo “dever”, deliba-se o problema dos mandados de criminalização e da proibição de proteção insuficiente, que não serão aqui enfrentados.
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