Dano ao projeto de vida no caso Pérez Lucas y otros vs. Guatemala
9 de janeiro de 2025, 13h19
A Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou, no dia 14 de novembro, o ato de notificação de sentença [1] do Caso Pérez Lucas y Otros vs. Guatemala, a respeito do desaparecimento forçado dos senhores Agapito Pérez Lucas, Nicolás Mateo, Macario Pú Chivalán e Luis Ruiz Luis, na década de 1980. O julgamento, realizado em setembro, considerou o Estado guatemalteco responsável por violar diversos direitos humanos das vítimas e de seus familiare s[2].
Os fatos objeto do processo ocorreram no período de conflito armado interno que a Guatemala viveu entre 1962 e 1996, durante o qual o Estado guatemalteco aplicou a chamada Doctrina de Seguridad Nacional:
27. No âmbito deste conflito, o Estado aplicou a chamada “Doutrina de Segurança Nacional”, a partir da qual utilizou a noção de “inimigo interno”, que inicialmente incluía organizações guerrilheiras, mas que foi ampliada para incluir “todas aquelas pessoas que se identificavam com a ideologia comunista ou que pertencessem a alguma organização – sindical, social, religiosa, estudantil – ou que por qualquer motivo não fossem a favor do regime estabelecido”. A noção de “inimigo interno” era de tal amplitude que, segundo o CEH*, “era aplicada contra qualquer cidadão, dependendo do capricho ou da arbitrariedade dos agentes do Estado”.[…] [3]
Nesse contexto, uma das estratégias utilizadas pelo Estado foi a criação de comissários militares e de Patrullas de Autodefensa Civil (PAC). O recrutamento de pessoas para suplementar o contingente militar do país foi realizado em larga escala, inclusive com recrutamento forçado, notadamente entre a população indígena.
Os senhores Pérez Lucas, Mateo, Chivalán e Luis, todos indígenas do povo Maya K’iche’ e trabalhadores rurais em lavouras de café, vinham atuando para liberar camponeses recrutados forçadamente pelas PAC. Eram membros ativos do Conselho de Comunidades Étnicas “Runujel Junam” (CERJ), uma organização de direitos humanos. O tribunal interamericano entendeu que, em razão de sua atuação como militantes, foram classificados como “inimigos” pelo Estado guatemalteco.
Os senhores Chivalán e Luis foram retirados à força de suas residências, diante de suas famílias, por homens encapuzados e vestindo uniformes de soldados, no dia 1º de abril de 1989. Em 7 de abril, os senhores Pérez Lucas e Mateo foram igualmente vítimas de sequestro em suas próprias casas, diante de seus familiares.
Corte reconhece “contrainsurgência” do Estado
A Corte assevera na sentença que, em julgamentos anteriores, o desaparecimento forçado de pessoas já havia sido reconhecido como uma medida de “contrainsurgência” adotada pelo Estado da Guatemala e executada pelas forças de segurança, como modo de “desarticular movimentos e organizações” consideradas potencialmente subversivas, e “espalhar o terror entre a população”[4].
No caso das quatro vítimas em questão, foram impetrados dois habeas corpus pela CERJ, em 1989 e 2005, a fim de localizá-las. Ambas as ações restaram infrutíferas, e o seu paradeiro permanece desconhecido.
Em face dos fatos narrados, a Corte IDH considerou que a República da Guatemala é responsável pelas seguintes violações de direitos humanos:
Consequentemente, a Corte Interamericana declarou que a Guatemala violou, em detrimento dos Srs. Agapito Pérez Lucas, Nicolás Mateo, Macario Pú Chivalán e Luis Ruiz Luis, os direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, à liberdade proteção pessoal, às garantias processuais, à proteção judicial, liberdade de associação, a defender os direitos humanos e os direitos de circulação e residência. Além disso, declarou que o Estado violou os direitos às garantias judiciais, à proteção judicial, ao conhecimento da verdade, à integridade pessoal, à proteção da família e aos direitos das crianças, em relação aos familiares das vítimas desaparecidas. Neste sentido, o Estado violou artigos 3, 4.1, 5.1, 7.1, 8.1, 13.1, 16.1, 17.1, 19, 22.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “Convenção Americana”), em relação, respectivamente, às obrigações de respeitar e garantir os direitos estabelecidos pelo artigo 1.1 do mesmo instrumento internacional, bem como não praticar, permitir ou tolerar o desaparecimento forçado de pessoas e investigar, processar e, no seu caso, punir o desaparecimento forçado de pessoas, o que está previsto no artigo I, parágrafos a) e b), da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas [5].
Dentre as principais medidas de reparação integral fixadas pelo tribunal ao Estado, estão o pagamento de indenizações aos familiares; a obrigação de impulsionar as investigações oficiais para esclarecer os desaparecimentos, a fim de julgar e, sendo o caso, punir os responsáveis, além de localizar o paradeiro das quatro vítimas; e, como garantia de não repetição, a implementação, em prazo razoável, de uma “política pública para proteção de defensores e defensoras de direitos humanos” [6].
Perseguição antes de desaparecimento
O entendimento dos juízes da Corte foi unânime em quase todos os pontos, exceto no tocante à violação dos direitos de circulação e de residência, sobre os quais os magistrados Humberto Antonio Sierra Porto e Patricia Pérez Goldberg votaram de forma dissidente. Prevaleceu, por 5 votos a 2, o entendimento de que, antes do desaparecimento forçado, as quatro vítimas foram obrigadas a se mudar de cidade em razão das ameaças e perseguição que vinham sofrendo por parte do Estado, em virtude da sua atividade como militantes de direitos humanos, caracterizada, então, a violação de seus diretos.
O juiz brasileiro e atual vice-presidente da Corte, Rodrigo Mudrovitsch, apresentou em conjunto com os magistrados Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Ricardo C. Pérez Manrique seu voto convergente [7], reforçando os argumentos da sentença.
Resgatando a jurisprudência da Corte IDH desde o Caso Loayza Tamayo vs. Perú, julgado em 1998, o voto defende a “necessidade de reconhecimento do direito ao projeto de vida” [8], o qual, segundo os juízes, constitui um direito autônomo, que não se confunde com o dano moral. Nesse sentido, aduzem:
8. Neste espírito, consideramos necessário avançar para o pleno reconhecimento do direito a um projeto de vida, com garantias e reparações próprias, sem subsumi-lo ou confundi-lo com dano moral, nem o restringir apenas ao âmbito da violação do direito à integridade pessoal, evitando campos jurisprudenciais confusos e procurando identificar o conteúdo e as dimensões deste direito.
9. No nosso entendimento, tal como o desenvolveremos, o direito a um projeto de vida surge de um conjunto de direitos convencionais, da mesma forma que se vem construindo o direito à verdade ou o direito à defesa dos direitos humanos, que foram declarados violados no presente caso [9].
Os magistrados ressaltam que a partir do Caso Loayza Tamayo vs. Perú, quando foi reconhecido pela primeira vez um novo tipo de dano, associado ao conceito de “realização pessoal” [10], a Corte desenvolveu o conceito de dano ao projeto de vida. Consta no voto a seguinte definição:
79. Em suma, a dignidade humana, reconhecida em vários instrumentos internacionais e na maioria das Constituições dos Estados Membros, fundamenta o “direito a um projeto de vida”. A sua natureza está intimamente ligada à natureza do ser humano como ser constantemente projetivo. O ser humano projeta-se, procura a sua realização pessoal, aspira ao aperfeiçoamento do seu ser, posiciona seu ser em um contexto existencial futuro. Ainda que não se deva nem se possa desconhecer as dificuldades circunstanciais da vida, tampouco se deve ignorar os graves efeitos individuais, familiares e sociais que o Estado gera quando, através de sua atuação ou omissão, viola direitos humanos capazes de afetar o projeto de vida das pessoas [11].
O voto convergente aduz que o tribunal interamericano reconhece, inclusive, a existência de um “projeto de vida coletivo” [12], a exemplo de comunidades indígenas que possuem estruturas sociais, econômicas e culturais próprias, como verificado no Caso Masacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Para os juízes, a dimensão coletiva do dano ao projeto de vida, quando se trata de grupos “historicamente vulneráveis, marginalizados ou excluídos” exige tutela especial do Estado, a fim de superar a situação em que se encontram “de forma estrutural e sistemática” [13].
A respeito da autonomia e da transcendência do direito ao projeto de vida, o voto cita, ainda, a fundamentação apresentada no caso The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, julgado pelo Tribunal Penal Internacional, a respeito do recrutamento de menores de 15 anos de idade para integrar a Força Patriótica pela Liberação do Congo, bem como a utilização efetiva dessas crianças e adolescentes em hostilidades, entre 2002 e 2003 [14].
Dano ao projeto de vida
Os três magistrados também lembram que diversos ordenamentos internos, no âmbito do sistema interamericano, reconhecem o dano ao projeto de vida, como ocorre na Colômbia, Peru e México [15]. E esclarecem:
50. Na doutrina, o dano ao projeto de vida é concebido como um “dano futuro e certo, geralmente continuado ou sucessivo, já que suas consequências acompanham o sujeito, como dito, durante o decorrer de sua vida”, ressaltando a ausência de certeza em sentido estrito; contudo, é evidente que, dada sua importância, ante a produção do dano, suas consequências se prolongarão no tempo conforme as circunstâncias e experiências de vida em cada caso concreto, restando à aguda sensibilidade do julgador perceber a existência e dimensão do dano ao projeto de vida.[16]
O voto convergente ressalta, por exemplo, o dano ao projeto de vida constatado em julgamentos anteriores pela Corte em relação à esterilização forçada. A respeito do Caso Pérez Lucas vs. Guatemala, especificamente, seus familiares sofreram violação ao direito a um projeto de vida uma vez que a ação do Estado restringiu significativamente a sua liberdade de fazer escolhas e de viver com dignidade. O voto convergente transcreve falas das vítimas, ressaltando, por exemplo, como esposas tiveram que criar seus filhos sozinhas, e pais não puderam contar com o auxílio dos filhos durante a velhice — vindo a falecer, inclusive, sem conhecer a verdade sobre o seu desaparecimento e paradeiro.
Nesse sentido, a sentença da Corte afirma:
186. Adicionado a isto, a Corte recorda, como tem assinalado em distintos casos, que as vítimas de uma impunidade prolongada sofrem distintos efeitos pela busca de justiça, não apenas de caráter material, mas também outros sofrimentos e danos em seu projeto de vida, assim como outras possíveis alterações em suas relações sociais e na dinâmica de suas famílias e comunidades. Tais efeitos, no caso de familiares de pessoas desaparecidas, se intensificam pela falta de apoio das autoridades na busca efetiva do paradeiro de seus entes queridos [17].
O voto de Mudrovitsch, Mac-Gregor Poisot e Manrique é categórico ao defender o dano ao projeto de vida como uma categoria autônoma, de conteúdo próprio e indenizável, reconhecido pela própria Convenção Americana, “especialmente derivado da tutela aos direitos à vida digna, integridade pessoal, dignidade humana, livre desenvolvimento da personalidade e autodeterminação […]” [18]. A vida humana, aduzem, não se limita à existência biológica ou à mera sobrevivência. E concluem:
85. Como juízes de um tribunal internacional de proteção dos direitos humanos e conscientes da realidade social da nossa região, a doutrina da reparação de danos da Corte deve permanecer firme e resguardar a árdua e constante luta pela garantia e proteção dos direitos humanos das pessoas (vida, dignidade humana, liberdade e outros), principalmente dos mais vulneráveis, materializando e maximizando os propósitos perseguidos pela Convenção Americana através do reconhecimento do projeto de vida como um direito autônomo [19].
O Caso Pérez Lucas vs. Guatemala nos remete inevitavelmente ao recém-lançado filme nacional Ainda Estou Aqui [20], sobre o desaparecimento forçado do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva, durante a ditadura militar brasileira. A obra relata com delicadeza ímpar o sofrimento da família pelo desaparecimento e, como sabido posteriormente, morte de Rubens Paiva, mas também em função da insegurança, desamparo, ausência de respostas do Estado e desconhecimento do paradeiro da vítima, cuja certidão de óbito atestando a tortura e morte pelos agentes estatais somente foi emitida 25 anos após a morte, em 1996.
Os efeitos do desaparecimento de Rubens Paiva em relação à viúva, Eunice, e aos cinco filhos do casal também são evidenciados no filme. Todos os planos da família tiveram que ser bruscamente alterados, o que o filme simboliza na cena em que a família Paiva se muda do Rio de Janeiro para São Paulo, onde Eunice teria o apoio dos avós para cuidar da prole e voltar à faculdade de direito. A quem ainda tiver dificuldades de compreender o dano ao projeto de vida como categoria autônoma, “Ainda estou aqui” é uma emocionante lição.
[1]Acto de Notificación de Sentencia del Caso Pérez Lucas y otros Vs. Guatemala. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cPF7LF6C5Eg . Acesso em: 11/12/2024.
[2] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Pérez Lucas y Otros vs. Guatemala. Sentencia de 4 de Septiembre de 2024 (Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_536_esp.pdf . Acesso em: 11/12/2024.
Tradução livre.
*CEH é a Comisión para el Esclarecimiento Histórico, instituída após acordo firmado em 1994 pelo governo guatemalteco e a Unidad Revolucionaria Nacional Guatemalteca (URNG), com intuito de esclarecer as violações a direitos humanos e os episódios de violência cometidos durante o período de conflito armado interno. Vide SENTENCIA, p. 10, Nota de Rodapé nº 26.
[3] Idem, p. 11.
[4] Idem, p. 12.
[5]CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Pérez Lucas e Otros vs. Guatemala. Sentencia de 4 de Septiembre de 2024. (Fondo, Reparaciones y Costas). Resumen Oficial Emitido por la Corte Interamericana. P. 01. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_536_esp.pdf . Acesso em: 11/12/2024. Tradução livre.
[6] Idem, p. 05-06.
[7] VOTO CONCURRENTE DE LOS JUECES RODRIGO MUDROVITSCH, EDUARDO FERRER MAC-GREGOR POISOT Y RICARDO C. PÉREZ MANRIQUE. Caso Pérez Lucas Y Otros Vs. Guatemala. Sentencia de 4 de Septiembre de 2024 (Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_ferrer_manrique_536_esp.docx . Acesso em: 11/12/2024. Tradução livre.
[8] Idem, p. 02.
[9] Idem, p. 02.
[10] Idem, p. 3.
[11] Idem, p. 22-23.
[12] Idem, p. 07.
[13] Idem, p. 16.
[14]Idem, p. 09.
Sobre Luganga Case: https://arquivo.ibccrim.org.br/site/boletim/pdfs/Juris236.pdf . Acesso em: 12/12/2024.
[15] Idem, p. 10-12.
[16] Idem, p. 15.
[17] SENTENCIA, p. 50.
[18] VOTO CONCURRENTE, p. 15.
[19] Idem, p. 23.
[20] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ainda_Estou_Aqui_(filme_de_2024) . Acesso em: 12/12/2024.
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