Senso Incomum

Com 'linguagem simples', mundo jurídico se apequena e vira um brechó

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9 de janeiro de 2025, 8h00

1. Por que me manifesto contra a simplificação do direito

Dizem que Einstein, na aurora da criação da teoria da relatividade, contou-a em público e ninguém entendeu nada. Pediram para simplificar. Ele o fez. Ninguém entendeu. Depois da décima vez, alguém da plateia finalmente disse que entendeu. E Einstein respondeu: pois você não entendeu. Pela simples razão de que isso que acabei de contar não é mais a minha teoria.

Isso me leva ao tema sobre o qual escrevi diversas vezes: “linguagem simples”, “simplificação do direito”, “projeto linguagem simples”, “confusão de linguagem simples com juridiquês”. Aliás, escrevi um livro de mais de 300 páginas cujo subtítulo é “Manifesto Contra a Simplificação do Direito”.

Volto ao assunto e o faço sob o abrigo do “princípio da caridade epistêmica”, do qual aqui já falei tantas vezes. Objetivo: diálogo. O tema não é simples (por mais paradoxal que isso possa ser).

Linguagem simples — volta e meia o assunto retorna. É fofo. Quem seria contra?

Respondo: sou contra. E justificarei. Mais uma vez.

2. A confusão entre simplificação e javanezição

O tema da simplificação da linguagem tem sido confundido com o malsinado juridiquês ou javanês jurídico. A Câmara dos Deputados até já aprovou projeto determinando a simplificação no setor público. Está agora no Senado.

Ironizando, nesse rumo o próximo projeto pode ser sobre a simplificação do estudo da filosofia, da química etc. Kant é muito sofisticado. Fenomenologia do Espírito (Hegel) deve ser retirada dos currículos (ou algo assim) ou ensinada de forma simplificada. Estou alegorizando, é claro. Ou metaforizando.

Mas, vejam: o pacto pela simplificação, proposto pelo CNJ, atinge diretamente o ensino jurídico. Sim, já tem gente montando cursinhos para simplificar. E professores exultando com isso em sala de aula. Eis a ironia: como se os cursinhos e as próprias faculdades, com o uso de literatura de resumos e quadros esquemáticos, já não fossem a “essência da simplificação” … Querem simplificar o simplificado? Mais ainda?

O ensino jurídico já naufragou. Temos de consultar um agnotologista, para entender esse processo de “rumo ao resuminho” e à “lei seca”, tudo agora vitaminado por mentorias e inteligência artificial – que transforma tudo em busca do precedente.

3. Por que queremos esconder a verdade de nós mesmos?

Já escrevi aqui sobre agnotologia, tese que explica a formação (deliberada) da ignorância no mundo. Também tem o novo livro de  Mark Lilla (Ignorance and Bliss), que mostra situações em que a humanidade deliberadamente busca ignorar as coisas mais sofisticadas do mundo. Lilla nos proporciona um diagnóstico psicológico da vontade humana de não saber. Queremos sempre esconder a verdade de nós mesmos. Rubens Casara escreve sobre isso em seu belo livro A Construção do Idiota – O Processo de Idiossubjetivação.

Como já escrevi em outros textos, se a modernidade desencantou o mundo, agora querem reencantá-lo [1]. E como fazem isso? Voltando às cartografias da pré-modernidade. Em que tudo está dado. De forma simples. Sem angústia (peço perdão por não poder dizer isso de forma simplificada).

4. O diagnóstico empírico simples sobre a linguagem complexa: uma certeza sensível?

Segundo a Folha de S.Paulo de 6 de janeiro de 2024, tratando da linguagem simples, alguns críticos consideram que o pacto pela simplificação proposto pelo CNJ desconsidera dimensões que vão além da simplificação do vocabulário. Alvíssaras. Venho dizendo isso há tempos.  Pena que a Folha não me ouviu ou deu um google. O jornalista Renato Brocchi por certo não tem formação jurídica. Com isso está desculpado. Ou não. E os críticos consultados não vão ao cerne do problema.

Spacca

A matéria de Brocchi cita uma frase do ministro Barroso:

O que acontecia com o direito —e ainda acontece, mas acho que a gente vem melhorando bem— é você transformar a linguagem num instrumento de poder que exclui do debate as pessoas que não têm aquela chave do conhecimento“.

Para Barroso, a definição de “linguagem simples” usada pelo CNJ não vem de alguma “análise técnico-científica”, mas de “uma coisa mais empírica da capacidade da outra pessoa compreender o que você está falando”.

Quer dizer, para falar de linguagem simples cai-se naquilo que Hegel, na Fenomenologia do Espírito (obra insimplificável) criticava chamando de “certeza sensível”: uma apreciação ingênua do e sobre o mundo.  E não se vai para onde se deveria ir: à epistemologia.

De todo modo, veja-se o imbróglio: para estudar e aplicar linguagem simples deveríamos saber o que é e para saber o que é deveríamos recorrer a uma coisa não simples, que é a epistemologia, que trata das condições de possibilidade pelas quais alguém diz que algo é (por exemplo, por que alguém diz que algo deve ser simples e não complexo? A coisa é simples ou complexa? Pode ser dita de forma simples sem perder o conteúdo?).

Não esqueçamos que a TV Globo até já tentou ensinar filosofia em cinco minutos no Fantástico. A professora escalada para a tarefa, para ensinar a Alegoria da Caverna, tentou uma isomorfia: entrou em uma caverna… Tornou-se hilário. E ninguém aprendeu nada.

O que eu penso sobre o assunto está no livro acima especificado e também nas colunas Sobre a simplificação da linguagem do Direito que o CNJ deseja e A agnotologia jurídica: a produção da ignorância no Direito. Portanto, não me repetirei.

5. De como uma “engenharia reversa” do conto Ideias de Canário nos ensina o porquê de querermos tanto voltar ao encurtamento do mundo

Em contraponto à simplificação da linguagem (e, por consequência, à simplificação do direito), quero trazer uma lição machadiana sobre o tema, especialmente a partir da crítica do nosso Flaubert à linguagem simples. Ou à linguagem privada (escrita antes de Wittgenstein). Já falei demasiadas vezes aqui em autores como Wittgenstein e Gadamer. Ou “como fazer coisas com palavras”, lembrando John Austin.

Hoje quero mostrar uma “engenharia epistêmica reversa” do conto Ideias de Canário, mostrando como e por que queremos voltar ao “mundo-brechó”. Vejo que já existem palestrantes e cursinhos de “linguagem simples”. Estamos nos esforçando, como diria Nelson Rodrigues. De todo modo, a literatura nos ajudará a entender o problema. Sigam-me. Vou contar um conto de minha maneira.

Cenário: um brechó.

O senhor Macedo entra e vê um canário em uma gaiola pendurada. Ao indagar em voz alta quem teria aprisionado a pobre ave, o próprio canário responde: “– você está enganado”. Ninguém o prendera.

O Sr. Macedo então perguntou ao canário se não tinha saudade do espaço azul e infinito, ao que o canário retrucou: “– Que coisa é essa de azul e infinito?” Então, o homem afinou a pergunta: “– Que pensas do mundo, ó canário?” E este respondeu com ar professoral: “O mundo é uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; e eu sou o senhor da gaiola que habito e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão”. E acrescentou: “Aliás, o homem da loja é, na verdade, o meu criado, servindo-me comida e água todos os dias”.

Encantado com a cena, o Sr. Macedo comprou o canário e uma gaiola nova. Levou-o para a sua casa para estudar o canário, anotando a experiência.

Três semanas depois da entrada do canário na casa nova, pediu-lhe que lhe repetisse a definição do mundo. “– O mundo”, respondeu ele, “é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar fresco e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.

Dias depois, o canário fugiu. Triste, o homem foi passear na casa de um amigo. Passeando pelo vasto jardim, eis que deu de cara com o canário. “– Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?” O Sr. Macedo pediu, então, que o canário lhe definisse de novo o mundo. E disse a ave:

O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. E o resto é mentira e ilusão!

Indignado, o Sr. Macedo retorquiu-lhe: “– Sim, o mundo era tudo, inclusive a gaiola e o brechó”.

Ao que o canário respondeu: “– Que loja? Que gaiola? Estás louco?”.

“Moral da história”: o que é o mundo? É uma gaiola? Um brechó? Um alpendre? O céu azul e infinito?

Alegoricamente: o que é o mundo jurídico? É a simplificação e o resto é tudo mentira e ilusão?

Pois no caso da simplificação querida pelo CNJ e defendida por parcela considerável da comunidade jurídica, temos um andar de curupira. Avançamos retrocedendo.

Estamos fazendo o caminho inverso ao do canário. Do mundo como um espaço infinito e azul, com sol por cima, queremos o mundo em que o homem que nos prendeu em uma gaiola nos sirva comida e água e acharmos que aquilo é nossa casa. E o resto é mentira e ilusão.

Claro que nunca tivemos um “espaço azul e infinito” no direito. Mas já tivemos mais sofisticação. Agora queremos pavimentar o simples, do qual a maioria nunca saiu. Voltar ao brechó que nunca saiu da maior parte da comunidade jurídica. E do qual essa também nunca saiu.

No brechó aprendemos que o direito é “aquilo sem as partes difíceis”. E que o direito é o que as teses dos tribunais dizem que é. E é um lugar em que a doutrina se fragiliza dia a dia.

E o resto é mentira e ilusão. Nesse mundo “reencantado”, o direito é a soma dos compêndios desenhados, mastigados, tuitados, resumidos e resumidos a partir de resumos e mostrado com flechinhas usadas em power point. Ou, ainda, é uma coletânea de ementas descontextualizadas.  Isso tudo sem levar em conta o visual law, o legal design etc.

É esse o “tamanho do mundo jurídico”? E o resto é mentira e ilusão?

Leiamos Machado. E depois falaremos.

Eu desisti dessa discussão sobre a simplificação da linguagem, que é, mutatis mutandis, a simplificação do próprio mundo jurídico.

Não, o mundo não é um brechó. E nem o mundo jurídico pode ser um brechó  (atenção: trata-se de uma alegoria).

Numa palavra final, num rasgo de otimismo metodológico, que tento mostrar no livro Ensino Jurídico e(m) Crise – Ensaio Contra a Simplificação e cujo objetivo é dialogar:

(i) Formemos advogados e defensores e procuradores e juízes que saibam levar o direito a sério.

(ii) A simplificação só é boa para um mercado que cresce dia a dia: tik tok, coaching, resumos dos resumos, direito desenhado etc. Já tem gente ensinando como fazer resumo via inteligência artificial.

(iii) Até acredito que haveria espaço para a urbanização (simplificação) do direito, isto é, para a tradução do complexo em termos mais acessíveis. É possível. No plano da mera comunicação, é claro. O ponto é que o ensino, na base, já é frágil. Contentamo-nos com reciclagem?

(iv) Para a simplificação ter sucesso, seria preciso que houvesse de fato uma substância complexa e sofisticada a ser explicada para o público. Mas as faculdades, em sua maior parte, (já) não se preocupam (mais) em transmitir essa substância. Entre informação e conhecimento, optaram por um simulacro de informação de terceiro nível, agora agravado pelo uso deslumbrado da IA, que preguiciza o direito, eliminando a reflexão e a própria doutrina.

(v) O problema da simplificação é que ela faz com que o objeto desapareça. Por isso Paulinho da Viola dizia: tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim. E digo eu: “- olha que a rapaziada está sentindo a falta…de um bom livro de teoria do direito e coisa assim”. Porque, dependendo da alteração, já não há samba. O filósofo Ernildo Stein escreve que “não podemos dizer as mesmas coisas com outras palavras”. Há uma profundidade hermenêutica abissal nessa reflexão. A IA faz com o advogado (e lidador em geral) o mesmo que as telas fazem com as crianças. Há “n” estudos sobre esses malefícios.

Eis minha contribuição, sem pedir vênias ao CNJ. Vênia é uma palavra superchata. De verdade. Nisso concordamos.

Post scriptum: uma dose de literatura – Jonathan Swift, em 1728, já tinha sacado o problema – o cientista de então queria eliminar a complexidade da linguagem

O projeto de lei que trata da simplificação da linguagem foi aprovado na Câmara com entusiasmos de gente da direita e da esquerda. O projeto se destina ao setor público: uso de frases curtas e na ordem direta, expor apenas uma ideia por parágrafo e adotar palavras mais conhecidas pelo público.

OK, tudo bem se for só para explicar determinadas coisas. Mas com certeza a lei será adotada com “rigor” para atrapalhar a própria construção das matérias que perpassam o setor público, mesma confusão que se faz no direito, em que se confunde o “objeto direito” (uma coisa complexa e sofisticada) com o modo pelo qual alguém vai dizer o que foi feito em um processo. Confunde-se o datavenismo com a substância.

Como disse um deputado que votou contra o projeto, estão rebaixando até a língua portuguesa. Concordo com o parlamentar. Estão confundindo linguagem necessária, técnico-científica, meio de evolução do homo sapiens e da sociedade, com a mera comunicação cotidiana. E pensam que informação é conhecimento.

No fundo, o projeto trata as pessoas como incapazes (sendo eufemista). Mais: com o projeto e o pacto, ninguém precisa se incomodar com as condições que torna(ra)m as pessoas incompetentes e iletradas. Algo como “na falta de gols, em vez de melhorarmos a qualidade dos jogadores, aumentemos o tamanho das goleiras”.

O ensino jurídico vai mal? “Temos a solução. Deixemos tudo mais simplinho”. Coitadinhos, “eles” não entendem. “Nós” vamos traduzir. Desenhar. “Nós” quem? Educados pelo mesmo sistema jurídico capenga? E esse é o ponto. A simplificação já é de fragmentos. De trampas, de próteses para fantasmas. Simplificar a linguagem jurídica é diminuir a linguagem. Diminuir a linguagem é diminuir o tamanho do mundo. Como já denunciava Machado. Antes de Wittgenstein.

Eu somente serei a favor da linguagem simples… se ela for complexa antes.

Swift já detectou isso nas Viagens de Gulliver. Na Academia de Lagado, um cientista “inventou” um projeto parecido ao que tramita no Parlamento brasileiro. O cientista queria – vejam a coincidência – eliminar a complexidade, e, para tanto, propôs que, em lugar de frases longas, substituir tudo por monossílabos, onomatopeias e banissem os verbos e particípios. Simplificação total. Pronto. Praticamente transformou a linguagem em legal design, desenhos ou emojis. Ou tik tok. Swift “inventou” os emojis, a simplificação da linguagem e o tik tok.

Recomendo demais as Viagens de Gulliver. A literatura sempre correndo na frente.

 


[1] Ver meu texto em As raízes da discricionariedade: o textualismo e o voluntarismo sob a ótica psicanalítica, publicado na Revista Psicanálise em Tempos desvairados II (Revista Scriptura 14).

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