Opinião

Ainda Estou Aqui: 2025 e o sentipensar de Eunice Paiva no Direito

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  • é advogada pesquisadora sócia-fundadora da Ricci Salomoni Sociedade de Advogados (RSLaw) mestranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR) e especialista em Direito Ambiental (UFPR) Direito Empresarial (IBMEC) e Direito Processual Civil (Instituto Bacellar).

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9 de janeiro de 2025, 17h14

No último final de semana o Brasil parou para aplaudir Fernanda Torres e seu merecido prêmio de Melhor Atriz em Filme de Drama no Globo de Ouro, uma robusta premiação do cinema internacional; afinal, a atriz fez história ao ser a primeira brasileira a vencer o prêmio nessa categoria. A honraria abre brecha para diversas ponderações, especialmente no campo dos direitos humanos e da justiça socioambiental. Dentre as possibilidades, escolho abrilhantar a atuação jurídica sentipensante de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva (1929 – 2018), a agora famosa Eunice Paiva.

O Direito brasileiro é marcado por figuras que desafiaram estruturas opressoras e abriram caminhos para um sistema mais sensível às demandas socioambientais. Como ocorre em outras áreas do conhecimento, muitas dessas pessoas foram mulheres invisibilizadas. Em Ainda Estou Aqui, filme homônimo ao livro de Marcelo Rubens Paiva, a atriz Fernanda Torres interpreta com maestria a mãe do autor – Eunice Paiva, cuja trajetória profissional daria por si um belo registro cinematográfico.

Se bem que separar as vivências da jurista de sua carreira no Direito seria um trabalho inglório, possivelmente tão infrutífero quanto a ruptura expressa pela dicotomia humano-natureza imposta pela modernidade.

A jurista Eunice Paiva

Eunice, que era formada em Letras, motivada pelo desaparecimento do marido, Rubens Paiva, ingressou na faculdade de Direito no ano de 1973, período em que passou a conciliar a vida de mãe solo de cinco filhos com a rotina universitária. Tal e qual mostrado no filme, foi uma das forças motrizes a possibilitar a edição da Lei nº 9.140/95, que entre outras medidas, reconhece a morte das pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas no período da ditadura militar.

Ao tornar-se advogada, Eunice combateu a necropolítica indigenista do regime até o final da ditadura, destacando-se como especialista em Direito Indígena – segmento do Direito Humanitário que busca a proteção necessária para salvaguardar a cultura, o modo de vida, o habitat e a proteção à posse das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas. Segundo Ailton Krenak, é impossível contar a história do movimento indígena na ditadura sem falar de Eunice Paiva.

No ano de 1987, Eunice foi cofundadora do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iama), organização não governamental voltada à defesa e à autonomia dos povos indígenas. Em 1988, atuou como consultora da Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela promulgação da Constituição Federal Brasileira em vigor. Portanto, de fato e de Direito, Eunice Paiva ainda está aqui.

A dicotomia ‘humano-natureza’

Enquanto Fernanda Torres alcançou um belíssimo marco como a primeira atriz brasileira a receber o Globo de Ouro, o recém findo ano de 2024 é um marco deplorável dos altos níveis de aquecimento global – foi o ano mais quente da história. Contemporaneamente, diversos pesquisadores relacionam a crise socioambiental ao legado colonial e concordam que grupos tradicionalmente vulneráveis, entre os quais as comunidades indígenas, são os mais afetados.

Spacca

No aclamado livro Uma Ecologia Decolonial, Malcom Ferdinand afirma que uma dupla fratura – ambiental e colonial, que são dimensões interdependentes e inseparáveis – impede o combate adequado à crise socioambiental; o autor destaca uma série de rupturas, entre as quais a própria concepção de humanidade.

Na lição de Caetano Galindo, expressa no ótimo Latim em Pó, desde a origem da palavra “bárbaros”, na Grécia, passando pela sua adoção pelos romanos até o uso que lhe empregamos hoje no Brasil, os bárbaros são os outros que não aqueles pertencentes ao povo que narra a história. Tradicionalmente, a história é narrada pelos colonizadores. Para Ailton Krenak, a humanidade é para poucos.

Essas ideias se entrelaçam ao binômio modernista que separa humanidade e natureza, sentir e pensar, fonte instrumental a justificar desigualdades. Enquanto o “pensar” foi associado ao masculino, à objetividade e à autoridade, o “sentir” foi vinculado ao feminino, à subjetividade e, muitas vezes, à irracionalidade. O racional foi associado ao progresso e à civilização, ao passo que o sentir foi descredibilizado, identificado com a natureza e com os bárbaros, que deveriam ser domados. Ao privilegiar o racional, a modernidade fragmentou a experiência humana, criando uma desconexão entre mente e corpo, razão e emoção.

O sentipensar de Eunice

Embora o termo tenha sido popularizado por Arturo Escobar (2014), sentipensar é um conceito apreendido pelo sociólogo Orlando Fals-Borda, expressão proveniente das comunidades ribeirinhas da Colômbia, que a definem como o ato de agir com o coração usando a cabeça; utilizado para descrever uma forma de viver em que o coração e a mente constroem conjuntamente a relação com o mundo.

Para Escobar, esse conceito permite superar as separações binárias que sustentam os regimes de modernidade e colonialidade, delineando outras formas de fazer o mundo, “os contornos de um pluriverso para habitar de múltiplas maneiras”, ao apontar para um pensamento e uma razão ligadas ao sentimento, à emoção e à intuição. Escobar sugere que na prática científica, mediante o sentipensar, coloquemos para trabalhar conjuntamente o pensamento e o sentimento, fundindo formas distintas de interpretação em prol de uma concepção integradora da realidade.

Assim, o sentipensar apresenta-se como um pluriverso ao conectar o pensamento com o sentimento, o corpo e a mente, representando o encontro das emoções profundas com os pensamentos abstratos, capaz de promover a sensibilização no Direito, aproximando-o da justiça. Tal e qual fez a jurista Eunice Paiva, através do sentipensar parte-se da reflexão e do impacto emocional, até convergir em um mesmo ato de conhecimento o sentir, o pensar e o agir.

O início de um novo ano convida à reflexão sobre o que foi vivido, o que pode ser transformado e quais compromissos desejamos assumir para o futuro. O sucesso de Fernanda Torres e a história de Eunice Paiva podem ser recebidos como um convite para sentipensar o Direito e o meio ambiente em 2025, afinal “a vida presta”.

Definitivamente, Eunice Paiva ainda está aqui.

Autores

  • é advogada, pesquisadora, sócia-fundadora da Ricci Salomoni Sociedade de Advogados (RSLaw), mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR), especialista em Direito Empresarial (Ibmec) e Direito Processual Civil (Instituto Bacellar), com estudos em feminismos, arte e patrimônio cultural pela Academia de Direito Internacional de Haia (Holanda) e certificação ESG pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), integrante da Comissão de Direito Ambiental da OAB-PR, da Rede LACLIMA e da Basa Network e mãe.

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