Opinião

A Justiça brasileira e o soldado israelense

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9 de janeiro de 2025, 10h15

Pode a Justiça brasileira processar um soldado israelense? É a pergunta que muita gente se fez, com razão, quando a Justiça Federal do DF mandou instaurar investigação para apurar crimes de genocídio e contra a humanidade supostamente cometidos por um soldado israelense que passava férias na Bahia. A notícia de crime feita por uma ONG belga ligada a movimentos de defesa da causa palestina pedia inclusive a prisão do militar. Como tudo que envolve o tema, a notícia logo gerou uma onda de paixões de lado a lado, tanto os que querem a cabeça do soldado a qualquer custo, como os que também não admitem qualquer possibilidade de haver investigação desta natureza no Brasil. Como as paixões costumam cegar, ambas as posições parecem equivocadas. O Brasil pode sim investigar, processar e julgar pessoas por genocídio ocorridos fora do Brasil em alguns casos muito específicos previstos em lei, e o caso do soldado israelense não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses.

O sistema internacional de Justiça, que tem como corte central o Tribunal Penal Internacional, adota o princípio da justiça universal, o que quer dizer que todos os países signatários do Estatuto de Roma têm competência para apurar determinados crimes, a exemplo do genocídio e crimes contra a humanidade.

Alguns países adotam a justiça universal de forma ampla, como a Alemanha, ao contrário de outros que colocam limites a este poder. É o caso do Brasil, no tocante específico ao genocídio. A lei penal brasileira, no seu artigo 7º, inciso I, alínea d, é clara e taxativa que para aplicar a lei penal a crimes de genocídio ocorridos fora do território brasileiro é preciso que o agente seja brasileiro ou com domicílio no país. Ou seja, o israelense em férias no Brasil não pode ser processado por genocídio aqui.

Restaria então o crime contra a humanidade, que, no entanto, não encontra tipificação legal no Brasil. Embora o Estatuto de Roma o tenha tipificado, tal diploma foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio de decreto-legislativo. O Legislativo jamais editou uma lei que tipifique o crime. Ocorre que a Constituição Federal é expressa ao dizer que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Como o decreto legislativo não é lei, o crime carece de tipificação legal no Brasil. Logo, tampouco por esse crime o soldado israelense poderia ser processado no Brasil.

Os impedimentos legais do ordenamento jurídico brasileiro estão longe, porém, de permitir que militares estrangeiros possam dormir tranquilos, ou passar férias onde quiserem, sem se preocupar com a Justiça. Se a moda pegar, vários países, como Alemanha, Suécia e Canadá preveem uma legislação mais ampla, e na maioria dos Estados é possível abrir investigação por genocídio bastando que o agente ingresse em território desses países. Em alguns países nem esse ingresso é exigido pela lei.

Mais dor de cabeça ainda poderão ter brasileiros que resolvam servir em forças armadas estrangeiras. A lei brasileira, como visto, autoriza que a Justiça processe o brasileiro que tenha participado de genocídio no exterior.

Seja como for, embora o princípio da justiça universal exista para permitir que crimes dessa gravidade não fiquem impunes, porque raramente serão investigados nos países onde são cometidos, na prática, a apuração por nações estrangeiras acaba oferecendo diversos obstáculos de natureza operacional e probatória.

Como a Justiça brasileira faria para julgar um caso ocorrido do outro lado do mundo? Um caso criminal normalmente demanda realização de perícias, visita ao local do crime, oitiva de testemunhas (isto hoje é mais fácil pela possibilidade da videoconferência), informações estatais (que Israel pode negar a fornecer), e a própria submissão do réu a julgamento. Ainda assim, o estatuto pretendeu que mesmo diante dessas dificuldades, os Estados signatários exerçam o poder de repressão com o qual se comprometeram internacionalmente.

Fábio Tofic, criminalista

Há precedentes emblemáticos de aplicação dessa justiça universal. Entre eles podemos citar: caso Pinochet, em 1999, na Espanha; caso de ex-oficial da marinha argentina Adolfo Scilingo, também na Espanha; caso do processo contra integrantes do regime franquista na Argentina, em 2013; e o julgamento na Bélgica do genocídio de Ruanda, em 1994.

Outro ponto que merece atenção é que essa atuação, a rigor, independe da vontade de governos, mas única e exclusivamente da decisão de juízes e promotores, ou seja, estão adstritas à atuação do Poder Judiciário.

Contradição

Independentemente do aspecto legal, parece que o julgamento de questões complexas como essas demandam um aprofundado exame probatório, que não pode se ater apenas a fotos postadas em redes sociais, que a despeito do mau gosto, e de demonstrarem o baixíssimo grau civilizatório em que nos encontramos, com a completa banalização da violência e da guerra, são insuficientes para permitir que um país abra um processo e puna alguém por genocídio. Até porque, no caso específico do israelense, o TPI recentemente emitiu mandados de prisão contra autoridades israelenses, mas não por genocídio, e sim por crimes contra a humanidade. Seria contraditório o Brasil, com muito menos acesso a provas e evidências, alterar o enquadramento dado pela corte internacional para punir um mero soldado raso.

O tema é complexo e merece análise sóbria, racional, e desapaixonada, já que é certo que ninguém deseja que crimes dessa natureza fiquem impunes, mas tampouco que a liberdade humana fique à mercê da insegurança jurídica das nações estrangeiras. Por isso, o mais recomendável é que os próprios países, como no caso Israel, mande apurar os excessos e desvios de seu corpo militar, evitando assim submetê-lo aos auspícios da Justiça internacional.

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