Opinião

Lei 14.905/2024: uso da taxa legal como índice de juros moratórios

Autor

8 de janeiro de 2025, 17h13

Os juros de mora representam uma indenização pelo descumprimento de uma obrigação legal ou negocial. Eles “funcionam como uma sanção pelo retardamento” no cumprimento de uma obrigação. Não se confundem com os juros remuneratórios, que traduzem uma remuneração “pelo capital emprestado”, que representam uma espécie de preço pelo ‘aluguel’ do capital” [1].

Desde que entrou em vigor o Código Civil de 2002, muitas discussões foram travadas a respeito da taxa ou índice a ser utilizado para o cálculo dos juros moratórios incidentes sobre os valores a serem pagos por força de condenações judiciais (dívidas civis em geral).[2] No ano de 2008, no EREsp 727.842/SP, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua corte especial, definiu que a taxa dos juros moratórios a que se referia o artigo 406 (redação original)  “é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – Selic (…)” [3]. Nesse sentido foram fixadas as teses dos Temas nº 99, 112 e 176 daquela corte, que também consolidou o entendimento de que “a incidência de juros moratórios com base na taxa Selic não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária”, cumulação que representaria bis in idem [4].

Todavia, apesar de decorrer estritamente da disciplina legal então vigente, parte da doutrina [5] entendia (e ainda entende) que a taxa Selic é um índice inadequado para servir de taxa legal de juros de relações obrigacionais civis porque é imprecisa e flutuante, não dotada de previsibilidade, já que norteada pela “conveniência e o momento da política econômica, sendo alterada para cima ou para baixo de acordo com uma série de fatores”, como a inflação, o risco de investidores e as metas de crescimento, conforme o cenário macroeconômico. Na sua visão, a referida taxa “congrega diversas variantes inerentes à economia do país, que são dissociadas do escopo da definição da taxa legal de juros em relações obrigacionais”. Ainda, segundo Giovanni Ettore Nanni [6], a compreensão de que a Selic engloba a correção monetária (de forma que sua cumulação com um índice dessa natureza configura bis in idem) gera uma colisão de dispositivos e a anulação dos que regem a atualização monetária, que é devida a título diverso, qual seja, recomposição de perdas inflacionárias [7].

À vista disso, no ano de 2021, no REsp 1.795.982/SP, foi retomado no STJ o debate sobre a adequação do emprego da Selic para tal finalidade. Em julgamento apertado (6 x 5), persistiu o entendimento a favor da aplicação da Selic (acórdão publicado em 23/10/2024).

Lei nº 14.905

Então, em meio a essa nova discussão, foi publicada, em 1/7/2024, a Lei nº 14.905, que alterou o Código Civil para dispor sobre atualização monetária e juros moratórios, tendo entrado em vigor 60 dias depois, isto é, em 30/8/2024, o que torna necessário bem entender as importantes inovações sobre a matéria.

A nova lei incluiu um parágrafo ao artigo 389 do CC, estabelecendo que, “na hipótese de o índice de atualização monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em lei específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado e divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou do índice que vier a substituí-lo”.

Spacca

Assim, se um índice diverso não for pactuado (INPC, IGP-M ou IGP-DI) ou se não decorrer de lei específica, será adotado o IPCA, tanto nos casos de responsabilidade contratual como de extracontratual. A inovação é positiva porque gera uma uniformização de critério, obstando que cada tribunal utilize o índice de sua escolha, como estava acontecendo até então. Agora o IPCA, utilizado para o cálculo da inflação [8], é o índice oficial de correção monetária das dívidas civis em geral.

No que toca aos juros de mora, objeto desses breves apontamentos, o artigo 406 do CC ganhou uma nova redação e três parágrafos:

“Art. 406.  Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal.

§1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código.

§2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil

§3º Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência.”

Essa nova disciplina dissipou a celeuma sobre o índice a ser utilizado para a compensação da mora, tendo o legislador estabelecido que os juros serão fixados segundo a “taxa legal”, a qual corresponderá à Selic, mas com um detalhe: dela deverá ser deduzido o IPCA, mencionado no parágrafo único do artigo 389, acima transcrito. Assim, em relação aos valores devidos a partir de 29/8/2024, se não avençado um índice diferente ou se ele não provier de lei, os juros moratórios serão calculados com base na Selic, com a subtração do IPCA, ou seja, daquela taxa deverá ser descontado o IPCA nela embutida (Selic – IPCA). E na hipótese dessa dedução resultar em um valor negativo, a taxa de juros será zero, ou seja, nada será cobrado a título de juros moratórios, o que é questionável na medida em que se premia o devedor faltoso.

No final de agosto de 2024, o Conselho Monetário Nacional emitiu a Resolução nº 5.171/2024, publicada pelo Banco Central do Brasil [9], por meio da qual se definiu a metodologia de cálculo e a forma de aplicação da “taxa legal”. No site [10] do referido banco foi disponibilizada a Calculadora do Cidadão, para auxiliar os interessados na elaboração das contas destinadas à apuração do valor da dívida.

Como o Conselho da Justiça Federal (CJF) ainda não editou uma nova versão do Manual de Cálculos da Justiça Federal, a Divisão de Cálculos Judiciais da Justiça Federal do Rio Grande do Sul fez, de modo muito oportuno, os seguintes esclarecimentos sobre o assunto [11]:

“(…) Taxa Legal em percentual terá 6 casas decimais, e, no formato de fator, terá 8 casas decimais. A pesquisa no SGS das séries envolvidas na apuração da Taxa Legal pode ser realizada pelos códigos abaixo, ou digitando-se ‘Taxa Legal’ no campo ‘Pesquisa Textual’ (a pesquisa retornará as 3 séries):

  • 29541 – Fator da Taxa Selic mensal para cálculo da Taxa Legal
  • 29542 – Fator do Índice de Preços ao Consumidor (Fator IPCA) para cálculo da Taxa Legal
  • 29543 – Taxa Legal (mensal)

……………………………………………………………………………………….

Infere-se que o BACEN adotou o IPCA-15 em vez do IPCA pelo fato de que, segundo consta no site do IBGE, “O IPCA-15 é o próprio IPCAporém considerando-se outro período de coleta de preços, ou seja, do dia 16 do mês anterior ao dia 15 do mês atual.” (grifo nosso). Enquanto a variação do IPCA-15 está disponível no 1º dia útil do mês, como a Taxa Selic, a variação do IPCA ocorre somente em meados do mês, conforme consta no calendário de divulgação do IBGE, que é variável. O fato do Bacen divulgar a Taxa Legal no 1º dia útil do mês pode justificar a utilização do IPCA-15, por esse índice também estar disponível naquele dia, enquando que o IPCA estará disponível somente lá pelo dia 10 do mês. Na fórmula para calcular a Taxa Legal existente na Resolução CMN Nº 5.171/2024, consta: “III – Fator IPCA m é o fator relativo ao mês de referência “m” da taxa de variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) do mês anterior ao de referência.” (grifo nosso). Como se verifica, o BACEN associou o “Fator IPCA” ao indexador IPCA-15.

Cabe esclarecer, também, que o IPCA-Série Especial (IPCA-E), por determinação legal (Medida Provisória Nº 812, de 30/12/94), é divulgado trimestralmente pelo IBGE (nos trimestres civis). Como o IPCA-E acumula as variações mensais do IPCA-15 no trimestre, na prática, se trabalha com o IPCA-E mensal refletindo a variação do IPCA-15 do mês.

A primeira Taxa Legal (0,605306%), referente ao mês de agosto/24, foi divulgada pelo Bacen em 29/08/24. A partir do mês de referência setembro/24, o Bacen passou a divulgar a Taxa Legal no primeiro dia útil do mês.

Importante referir que, de acordo com o artigo. 6º da Resolução CMN Nº 5.171/24, o regime de juros simples se aplica à taxa legal para fins de acumulação de taxas mensais, ou seja, as Taxas Legais mensais devem ser somadas (juros simples), e não multiplicadas (juros compostos).”

Essas explicações auxiliarão contadores e profissionais do Direito na tarefa de aplicar as regras derivadas da inovação legal em comento, mas têm surgido questionamentos acerca do (des)acerto das mudanças no que diz respeito aos juros de mora, assim como quanto à correção de sua regulamentação pelo CMN [12]. Pode haver um engano de perspectiva, mas ficou a impressão de que, apesar da instabilidade econômica enfrentada no país, seria mais aconselhável a adoção de um percentual fixo, mensal, de fácil aplicação e que efetivamente inibisse o inadimplemento das obrigações.

 


[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Vol. Único. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 867.

[2] Acerca da atualização dos valores a serem pagos a partir de condenações da Fazenda Pública, ver:  ANDRADE, Flávio da Silva. A taxa Selic e as condenações da Fazenda Pública. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 9 de setembro de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-09/flavio-andrade-taxa-selic-condenacoes-fazenda-publica/.

[3] Lincoln Pinheiro Costa lembra que “o Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC é um sistema informatizado que se destina à custódia de títulos escriturais de emissão do Tesouro Nacional e do Banco Central, bem como ao registro e à liquidação das operações com os referidos títulos. Tal sistema permite que a liquidação financeira das operações realizadas com títulos federais seja feita pelo resultado líquido”. A taxa SELIC, segundo a circular nº 2.900/1999 do Banco Central do Brasil, é a taxa média ajustada dos financiamentos diários apurados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC) para títulos federais (COSTA, Lincoln Pinheiro. Os juros de mora no Código Civil. Revista da I Jornada de Estudos de Direito Civil e Processo Civil. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília: ESMAF, 2010, p. 259).

[4] REsp 1.706.536/RS, 2a Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 11/09/2018; REsp n. 1.875.198/SP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 24/11/2020.

[5] NANNI, Gioanni Ettore. Do Direito das Obrigações. In: NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Comentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 664.

[6]  NANNI, Gioanni Ettore. Do Direito das Obrigações. In: NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Comentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 664.

[7] Nessa linha de inteligência é o enunciado nº 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, aprovado ainda na vigência do revogado art. 193 da CF/1988:  “A utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Revista das jornadas do CJF: direito civil, direito comercial, direito processual civil, prevenção e solução extrajudicial de litígios / Superior Tribunal de Justiça, [Gabinete do Ministro Diretor da Revista], Conselho da Justiça Federal. – Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2018, p. 26).

[8] FREITAS, Newton. Dicionário Oboé de Finanças. 14. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2004, p. 180.

[9] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=5171. Acesso em: 27/12/2024.

[10] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/meubc/calculadoradocidadao.

[11] Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=5220. Acesso em 06/01/2025.

[12] BRUNA, Sergio. Quando 2 + 2 = 3,5: os juros legais e o poder regulamentar do CMN. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 18 de setembro de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-18/quando-2-2-35-os-juros-legais-e-o-poder-regulamentar-do-cmn/. Acesso em: 27/12/2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!