Garantias do Consumo

Exclusão de beneficiários de planos de saúde, após a maioridade, viola a boa-fé objetiva

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8 de janeiro de 2025, 8h00

Nos anos 2023 e 2024, as operadoras de planos de saúde fomentaram a prática de excluir beneficiários que deixaram de ser dependentes dos respectivos titulares da contratação, sob o pretexto de que, após atingirem a maioridade, não poderiam continuar usufruindo dos serviços disponibilizados [1]. Os usuários foram surpreendidos com o recebimento de notificações expedidas por estas empresas, cientificando-lhes sobre a sua retirada da relação jurídica, exceto se houvesse a comprovação do vínculo de dependência financeira com o titular do convênio. Ressalta-se que estes sujeitos, na sua grande maioria, passaram a fazer parte do liame quando ainda menores de idade e, no seu transcorrer, não fora exigida documentação ou prova da continuidade da dependência econômica [2]. São muitas pessoas eliminadas da saúde suplementar, de forma indigna e inesperada, originando mais lides para o poder judiciário.

As exclusões têm sido, em regra, assentadas na alegação das operadoras de que a manutenção da qualidade de usuário pressupõe a comprovação do vínculo financeiro com o titular. Utilizam-se, como sedimento, o artigo 35, inciso III, da Lei Federal nº 9.250/95 (INSS/IRPF), segundo o qual, a filha, o filho, a enteada e/ou o enteado poderão ser considerados dependentes até completarem 21 anos. A posteriori, será possível a manutenção destes em decorrência de incapacidade para o trabalho, quer seja sob a ótica física ou mental. Até a faixa etária de 24 anos, admite-se a continuidade na hipótese de estarem matriculados em estabelecimento de ensino superior ou escola técnica de segundo grau, consoante disposto pelo § 1º daquele mesmo dispositivo [3]. Sucede que os contratos de assistência suplementar à saúde podem conter regra com o referido conteúdo ou não, porém, em qualquer uma destas situações, a retirada abrupta,  após a aceitação de permanência, ainda que tácita, desvela-se ilícita e contrária ao microssistema  consumerista vigente.

No que concerne aos contratos firmados após a vigência da Lei nº 9.656/98, em se tratando de plano individual/familiar, o seu artigo 13, parágrafo único, inciso II, dispõe que as operadoras não podem realizar a exclusão potestativa de consumidores,  a não ser diante de fraude ou inadimplência. Quanto aos planos coletivos – empresariais e por adesão –, o artigo 24, da RN nº 557/2022, determina que cabe, exclusivamente, à pessoa jurídica contratante solicitar a suspensão ou exclusão de beneficiários. As operadoras somente poderão o fazer, sem a anuência desta entidade, por motivo de fraude, perda dos vínculos do titular, ou de dependência, desde que previstos em regulamento ou contrato [4]; ou a pedido do usuário. Ainda que haja cláusula contratual estabelecendo a retirada daqueles, que perderam a condição de dependentes, deve-se questionar a sua abusividade à luz do CDC [5] e de tais normas.

No que diz respeito aos contratos “antigos”, conquanto não sejam aplicadas as regras previstas pela Lei nº 9.656/98 e as normativas editadas pela ANS, contendo ou não disposição acerca da perda da posição de usuários dada a ausência de dependência econômica, o microssistema consumerista contempla substrato suficiente para se prevenir e debelar a exclusão ilícita de beneficiários. A cláusula geral da boa-fé objetiva [6], presente nos artigos 4º, III, e 51, IV, do CDC, servirá de motriz para resolver o problema para os planos firmados em período anterior à LPS ou após. Em muitos casos, as operadoras não exigiram a comprovação do vínculo financeiro entre titular e dependente, recebendo os valores pagos, durantes anos, sem qualquer observação, criando-se a legítima expectativa de permanência. Em outros, ainda que tenham solicitado, quedaram-se inertes quanto à exclusão, angariando lucros e, no momento em que alcançam faixa etária mais elevada, almejam retirá-los, locupletando-se ilicitamente.

Nulidade

Diante do exposto, ainda que se identifique cláusula que estabeleça a possibilidade de exclusão do beneficiário que tenha perdido a posição de dependente do titular, devem ser consideradas nulas de pleno direito, nos termos do artigo 51, IV, do CDC [7]. Acerca do tema, elucubra Claudia Lima Marques que, no mercado brasileiro, observa-se, nos contratos de seguro-saúde e planos de saúde, a presença das denominadas “cláusulas de cancelamento [8]. Acentua a doutrinadora que “Este direito extintivo não deve ser permitido indistintamente ao fornecedor que atua neste campo econômico, pois é de seu risco profissional ter de manter um plano de saúde que lançou no mercado”. Adiciona que tem “de manter o vínculo contratual com o indivíduo que pagou contribuições durante anos para os seus serviços e talvez nem as tenha utilizado, em razão de sua boa saúde e pouca idade” [9]. Nesse viés, a arbitrária exclusão de beneficiários contrapõe-se à legislação vigente.

A legítima expectativa gerada para o beneficiário que, mesmo após a perda da dependência perante o titular, continua sendo mantido no plano de saúde, atrela-se à boa-fé objetiva [10] e aos seus efeitos, como vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça. Ao julgar o Recurso Especial nº 1.918.599/RJ, o STJ reconheceu a supressio diante do fato de a empresa estipulante não ter exercido o direito de excluir o ex-empregado do  contrato ao término do prazo de 24 (vinte e quatro) meses, mantendo-o vinculado por quase uma década [11]. No julgamento do Agravo Interno no Agravo no Recurso Especial nº 1.868.100/SP,  a 4ª Turma deliberou pela configuração do venire contra factum próprio diante de a empresa  ter oferecido “condições vedadas de contratação ao segurado”. Devido à “manutenção dessa situação por quatorze anos”, reconheceu-se a “impossibilidade de rescisão”, optando a Corte pela manutenção do vínculo jurídico [12].

Malgrado a existência de cláusula contratual estipulando o desligamento de beneficiário dependente que tenha atingido a maioridade, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 2219413/SP, publicado em 16/12/2022, qualificou como indevida a sua exclusão após longo período. Considerou-se a “justa expectativa de manutenção do contrato” com espeque na boa-fé objetiva e na supressio/surrectio, seguindo-se a trilha de decisões precedentes [13]. No Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.175.509/SP, o STJ também reconheceu a abusividade da retirada de usuário que havia completado 25 anos. Mesmo que presente disposição contratual assegurando a cessação da qualidade de beneficiário, a Corte determinou a permanência do liame [14]. Ampliam-se as demandas judiciais referentes ao problema e a Agência Nacional de Saúde Suplementar não vem sancionando devidamente as empresas, para que não cessem os vilipêndios aos interesses e direitos dos consumidores.

O lobby exercido pelas operadoras nas esferas de poder é inegável e, nas lições de James Buchanan [15], é uma técnica de controle que proporciona a obtenção de resultados benefícios em seu favor. Compõem “grupos de interesse específico” ou “especiais” (special interests), bem estruturados e organizados, que, segundo Mancur Olson, fundamentam o “domínio das minorias” em detrimento dos “grandes grupos de interesse” ou “grupos latentes” (large or latent groups), in casu, os consumidores usuários [16]. Os agentes econômicos, conforme Peltzman, formam grupos “compactos e bem-organizados”, que tendem a se beneficiar mais da regulação do que os  conglomerados “amplos e difusos” [17]. Nesse mesmo viés, James Kwak enuncia que se utilizam de uma “captura cultural” caracterizada pela “identidade”, bem como pelo “status e relacionamentos”. Os reguladores estão mais propensos à defesa dos seus pares, optando pelas pessoas que têm melhores condições sociais, econômicas ou intelectuais, e com as quais mantêm redes de contatos [18].

Os órgãos e as entidades integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor devem atuar, de modo coeso, integrado, harmônico e firme, para reverter a lamentável e explícita influência das empresas do ramo da saúde suplementar. As incursões das operadoras nos centros decisórios exigem altivas providências, eis que lidam com “contratos existenciais ou de subsistência” [19]. A Lei Federal no 13.874/20 instituiu a Declaração de Liberdade Econômica no Brasil e suscita a concretização de análise em cotejo com o Código de Defesa do Consumidor. Como leciona Amartya Sem, “Todo sistema econômico impõe algumas exigências de ética de comportamento, e o capitalismo não é exceção” [20]. Conclui-se no sentido de que a liberdade no campo econômico não significa relegar os postulados consumeristas para um plano inferior, eis que o CDC não foi modificado nem teve partes revogadas pelo citado diploma legal, pressupondo-se que os entes incumbidos da tutela dos mais fragilizados desenvolvam ações conjuntas para a real e efetiva fiscalização do mercado.

 

* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

 


[1] BRETAS, Pollyanna. Plano de saúde quer excluir dependentes maiores de idade do convênio. Usuários reclamam que não há cláusula com a previsão de exclusão nos contratos. Globo, 29/11/2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/noticia/2023/11/29/plano-de-saude-quer-excluir-dependentes-maiores-de-idade-do-convenio-entenda.ghtml. Acesso em: 18 set. 2024.

[2] NOVAES, Iris. Já há alguns meses, milhares de segurados, na maioria que possuem planos individuais e familiares antigos, têm sido surpreendidos com a busca da exclusão dos seus dependentes por famosa operadora de saúde, alegando inexistência de dependência financeira ou econômica. Migalhas, 29 de maio de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/408379/panorama-atual-da-exclusao-de-dependentes-por-operadora-de-saude. Acesso em: 20 ago. 2024.

[3] CARVALHO, Gilma. Pode o plano de saúde excluir dependentes por ausência de dependência conforme regras do INSS/IRPF? Aumentam as queixas dos consumidores sobre as exclusões de dependentes em planos de saúde. Migalhas, 4 de junho de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/408557/pode-o-plano-de-saude-excluir-dependentes-por-ausencia-de-dependencia. Acesso em 25 ago. 2024.

[4] Ressalva-se o disposto nos artigos 30 e 31 da Lei 9.656/1998.

[5] Com relação às abusividades mercadológicas, consultar: TAMM, M. u.a. (Hrsg.). Verbraucherrecht. Rechtliches Umfeld, Vertragstypen, Rechtsdurchsetzung: Beratungshandbuch, Baden-Baden: Nomos Verlag, 2016, p. 1.128-1.179. 

[6] Cf.: ESSER Joseph. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial de derecho privado. Trad. Eduardo Valintí Fiol. Barcelona, Bosch, 1961.  p. 285-287. DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo. In: WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986.  p. 12.

[7] Acerca do desequilíbrio contratual, conferir: GHERSI, C. A. Teoría General del Derecho del Consumo. In: GHERSI, C. A.; WEINGARTEN, C. Manual de los Derechos de Usuarios y Consumidores (Dirs.). 3. ed. actual. y ampl. Buenos Aires: La Ley, 2017, p. 1-10.   

[8] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais, 9. ed. São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 1102.

[9] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais, 9. ed. São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 1102.

[10] Cf.: ESSER Joseph. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial de derecho privado. Trad. Eduardo Valintí Fiol. Barcelona, Bosch, 1961.  p. 285-287. DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo. In: WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986.  p. 12.

[11] STJ, REsp. 1918599/RJ, publicado em 15/03/2021.  Nesse sentido: REsp. 1.879.503; A REsp. 2219413/SP (2022/0308478-3).

[12] STJ, AgInt. no AREsp.1.868.100/SP, 4ª Turma, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, data de julgamento: 11/4/22, , DJe 18/4/22.

[13] Conf.: AREsp. 2219413/SP, publicado em 16/12/2022.

[14] STJ, AgInt. no AREsp. 2175509/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 24/10/2022,  DJe 03/11/2022. Conferir também: STJ, AgInt. no AREsp. 1836687/PR 2021/0038810-5, publicado em 19/08/2021.

[15] BUCHANAN, James. The Calculus of Consent: Logical Foundations of Constitutional Democracy.  Liberty Fund, 2004, p. 287-290.

[16] OLSON, Mancur. The Logic of Collective Action: public goods and the theory of  groups.  ‎ Harvard University Press, 1995, p. 101-121.

[17] PELTZMAN, S. Toward a More General Theory of Regulation. Journal Law abd Economics, vol.19, n. 2 p. 211-240, 1976.

[18] KWAK, J. Cultural Capture and the Financial Crisis. In :  CARPENTER, D. P. ; MOSS, D. (Orgs.), Preventing regulatory capture: Special interest influence and how to limit it. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2013, p. 71-98.

[19] Cf.: LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2005, p. 130.

[20] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia De Bolso, 2010, p. 25.

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