Opinião

Divulgação das decisões arbitrais à luz da Lei do Contrato de Seguro

Autores

  • é mestranda em Direito Processual pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Mediadora extrajudicial certificada pelo Instituto de Ensino Centro de Mediadores. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes. Associada efetiva da Abep. Advogada.

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  • é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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8 de janeiro de 2025, 11h14

Historicamente, a possibilidade de acordar a confidencialidade tem sido considerada uma característica muito atrativa da arbitragem [1], especialmente em contraste com a tendencial publicidade inerente ao processo judicial. Contudo, nos últimos anos, tem ganhado força um movimento em prol de maior transparência nesse método de solução de conflitos, sustentado por argumentos diversos, com destaque para a necessidade de uma mínima prestação de contas a terceiros interessados e à sociedade.

Um exemplo relevante de maior transparência na arbitragem é proporcionado pela nova Lei do Contrato de Seguro brasileira (Lei n° 15.040, de 09 de dezembro de 2024). Embora o referido diploma legal, que entrará em vigor no dia 10/12/2025, apresente diversos aspectos controvertidos relacionados à arbitragem securitária – como a exigência de que essa seja “feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro” – [2], interessa, para o presente estudo, a previsão de publicização, “sem identificações particulares”, das decisões de litígios resolvidos por “meios alternativos”.

A publicização das decisões arbitrais na Lei do Contrato de Seguro

Nos termos do parágrafo único do artigo 129 da referida lei: “A autoridade fiscalizadora disciplinará a divulgação obrigatória dos conflitos e das decisões respectivas, sem identificações particulares, em repositório de fácil acesso aos interessados”.

Esse dispositivo, na prática, atribui à Superintendência de Seguros Privados (Susep) a responsabilidade de regular o tema da divulgação das decisões arbitrais e de outros métodos alternativos (rectius, mais adequados) de solução de conflitos, muito provavelmente por meio de uma circular. Entre os aspectos a serem disciplinados, destacam-se os prazos, os responsáveis, os mecanismos de divulgação das decisões e as eventuais sanções em caso de descumprimento. A regulação deverá esclarecer, igualmente, se a publicação será realizada de forma isolada ou agregada, se incluirá decisões interlocutórias ou apenas decisões finais e se haverá menção aos árbitros envolvidos, respeitando os limites impostos pela confidencialidade.

Evolução legislativa

O texto final do artigo 129 é resultado de alterações relevantes durante a tramitação legislativa. Na versão mais primitiva do PL n° 29/2017, o dispositivo, então identificado como artigo 63, tinha uma abordagem distinta:

“Art. 63. A resolução de litígios por meios alternativos não será pactuada por adesão a cláusulas e condições predispostas, exigindo instrumento assinado pelas partes, e será feita no Brasil, submetida ao procedimento e às regras do direito brasileiro.

Parágrafo único. O responsável pela resolução de litígios é obrigado a divulgar, em repositório de fácil acesso a qualquer interessado, os resumos dos conflitos e das decisões respectivas, sem identificações particulares.”

No texto aprovado no Senado, o artigo foi deslocado para a parte final da lei, renumerado como artigo 127, e sua redação foi modificada, permanecendo essa inalterada na aprovação final pela Câmara (PL 2.597/2024) e na versão consolidada da lei (artigo 129 da Lei 15.040/2024). A reformulação buscou atender às críticas, especialmente quanto à abrangência da norma sobre a arbitragem ressecuritária e à falta de clareza em relação ao dever de divulgação das decisões. Do relatório do senador Jader Barbalho, sublinhe-se o seguinte trecho:

“Além de deslocarmos o artigo 63 para o trecho final do projeto – porque, repise-se, não se trata de uma questão relacionada à intepretação (sic) do contrato –, esclarecemos, em seu texto, que sua abrangência se limita ao contrato de seguro e não se aplica aos contratos de resseguro e de retrocessão. Ademais, especificamos que a autoridade fiscalizadora disciplinará a forma de divulgação dos conflitos e das decisões respectivas, deixando clara tal atribuição e abolindo, assim, a vaga expressão ‘responsável'” [3].

Ao comparar a redação do supracitado artigo 63 do PL com o parágrafo único do artigo 129 da Lei nº 15.040/2024, observa-se que a obrigatoriedade de divulgação dos conflitos e decisões, anteriormente atribuída ao “responsável pela resolução de litígios”, passou a ser um tema cuja regulação caberá à Susep. A versão final também restringiu o acesso ao repositório aos “interessados”, reduzindo a abrangência de “qualquer interessado” prevista no PL, e suprimiu a menção à obrigatoriedade de “resumos”, conferindo maior flexibilidade à Susep para definir o nível de detalhamento das informações [4]. Ressalta-se, contudo, que, em princípio, deve-se evitar a exigência de divulgação de dados que possam permitir a identificação das partes, considerando a adoção de meios técnicos razoáveis e disponíveis à época de seu tratamento.

Em busca do equilíbrio entre transparência e confidencialidade

Ao comentar o tema da divulgação das decisões arbitrais, Ana Frazão destacou:

“Sob essa perspectiva, a inexistência de uma jurisprudência arbitral consistente acaba impossibilitando que uma série de objetivos extremamente importantes possam ser alcançados, tais como (1) o direito à informação, por parte da coletividade, (2) a legitimidade social das decisões arbitrais, (3) o necessário aprendizado coletivo, (4) a prevenção de futuros litígios, (5) a garantia de isonomia e (6) o próprio desenvolvimento do Direito da Arbitragem” [5].

Ao rebater algumas das críticas ao então PL n° 29/2017, Ernesto Tzirulnik advogou:

“Outra crítica comum ao Projeto de Lei de Contrato de Seguro é a de que estaria em jogo a confidencialidade das arbitragens. Isto também não é fato. O projeto prestigia a confidencialidade. O que ele estabelece é que os resumos das arbitragens, seus fundamentos e conclusões, não se percam, deixando o Brasil órfão de experiência e cultura jurídicas sobre seguro e resseguro, e sem jurisprudência a prevenir abusos” [6].

Spacca

Nota-se, portanto, que a nova Lei de Seguros busca harmonizar dois princípios que, à primeira vista, podem parecer contraditórios: a transparência e a confidencialidade. Enquanto a confidencialidade protege as partes, permitindo a discussão de questões sensíveis sem exposição pública, a transparência reforça a legitimidade do sistema, promovendo previsibilidade e aprendizado coletivo. A solução apresentada pela lei, que aparentemente impõe a publicização anonimizada das decisões arbitrais, busca oferecer um equilíbrio que permita desenvolvimento de uma jurisprudência acessível e potencialmente consistente, sem comprometer o sigilo das informações envolvidas. De resto, segue tendência mundial no sentido de divulgação, sem identificação das partes, das sentenças arbitrais.

Essa abordagem é especialmente relevante e digna de elogios no setor de seguros, em virtude de sua função social característica. A divulgação anonimizada oferece aos atores do mercado – seguradoras, segurados e operadores do direito – uma base para identificar padrões e ajustar práticas, contribuindo para a prevenção de litígios e o aumento da eficiência do sistema arbitral. A medida também favorece a confiança na arbitragem como meio de solução de conflitos, ao mesmo tempo em que respeita a sensibilidade das informações envolvidas.

O papel regulatório da Susep e os desafios de implementação

A implementação dessa publicização apresenta desafios não desprezíveis. Garantir uma anonimização efetiva é um deles, já que detalhes específicos do litígio, como o tipo de contrato ou as características das partes, podem levar à identificação indireta, especialmente em disputas de grande visibilidade. Isso pode gerar preocupações em relação à preservação da confidencialidade e, no limite, de segredos industriais.

Outro desafio reside na regulação pela Susep, que terá de equilibrar clareza e flexibilidade. Parâmetros insuficientes, como prazos inadequados ou formatos de publicação pouco eficientes, podem limitar os benefícios esperados. Por outro lado, a obrigatoriedade de uma divulgação ampla demais pode ser vista como um entrave à escolha da arbitragem, devido ao receio de exposição de informações sensíveis, ainda que de forma indireta.

Superar essas questões, observando as boas práticas regulatórias [7], será essencial para garantir que a medida imposta pelo legislador e analisada neste estudo alcance seus objetivos sem comprometer a atratividade da arbitragem no mercado securitário brasileiro.

 


[1] Sobre o tema, e com menção a diversas pesquisas empíricas na área, seja consentido remeter a JUNQUEIRA, Thaís Dias David. Arbitragem: entre a confidencialidade e a transparência. (obra no prelo).

[2] Art. 129, caput, da Lei n° 15.040/2024. “Nos contratos de seguro sujeitos a esta Lei, poderá ser pactuada, mediante instrumento assinado pelas partes, a resolução de litígios por meios alternativos, que será feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro, inclusive na modalidade de arbitragem”. Antes da aprovação da lei, o Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) emitiu uma nota intitulada “Comitê Brasileiro de Arbitragem Projeto de Lei 29/2017, de autoria do Sr. Deputado José Eduardo de Cardozo”, na qual expressou diversas críticas à abordagem da arbitragem em disputas securitárias e ressecuritárias no então Projeto de Lei n° 29/2017 (PL). Entre os pontos destacados, apontou-se o desalinhamento do PL com a Lei de Arbitragem, com uma excessiva limitação da autonomia privada ao não garantir a escolha da lei aplicável, o uso da equidade e/ou usos e costumes, além de falhas na regulamentação da forma de contratação da cláusula arbitral em contratos de adesão, que deixou de considerar a possibilidade de arbitragem iniciada pelo aderente. Também foi criticada a ausência de uma mera referência direta à Lei de Arbitragem, como ocorre em outras legislações correlatas, como o Código de Processo Civil, o Código Civil e a Lei de Parcerias Público-Privadas. A obrigatoriedade de divulgação de conflitos e decisões, mesmo que, em princípio, anonimizadas, prevista no art. 63 do PL (atual art. 129, parágrafo único) foi identificada como fonte de problemas práticos e considerada incompatível com a Lei de Arbitragem, além de inaplicável sem previsão específica nessa legislação. O CBAr ainda ressaltou a necessidade de alterar o art. 127 (atual art. 129, caput) para evitar interpretações que proibissem a realização de arbitragens com sede no exterior entre seguradoras, resseguradoras e retrocessionárias. O pronunciamento está disponível em: https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2018/04/Parecer-PLC-n%C2%BA-29.2017.pdf. Essas críticas foram reforçadas por Angélica Carlini e Gustavo Amado León no artigo Breves comentários acerca da arbitragem em resseguro no Projeto de Lei nº 29 de 2017 (in: Direito Internacional e Globalização Econômica, v. 11, n. 11, 2023, pp. 78-85). Os autores, nessa oportunidade, destacaram que: “Ao restringir a capacidade das partes de negociar e prever a arbitragem nos termos dispostos na Lei de Arbitragem, o projeto não apenas gera insegurança jurídica devido a conflitos normativos, mas também aumenta os custos de transação, uma vez que a arbitragem é um elemento econômico essencial no contrato”. (Ibid., p. 82).

[3] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128831. A respeito dos contornos da arbitragem (res)securitária e da lei aplicável, confira-se, para além do art. 129, os seguintes artigos da Lei nº 15.040/2024: Art. 4º. “O contrato de seguro, em suas distintas modalidades, será regido por esta Lei. § 1º Sem prejuízo do disposto no art. 20 da Lei Complementar nº 126, de 15 de janeiro de 2007, aplica-se exclusivamente a lei brasileira: I – aos contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; II – quando o segurado ou o proponente tiver residência ou domicílio no País; ou III – quando os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos se situarem no Brasil”. Art. 130. “É absoluta a competência da justiça brasileira para a composição de litígios relativos aos contratos de seguro sujeitos a esta Lei, sem prejuízo do previsto no art. 129 desta Lei”. Art. 131. “O foro competente para as ações de seguro é o do domicílio do segurado ou do beneficiário, salvo se eles ajuizarem a ação optando por qualquer domicílio da seguradora ou de agente dela. Parágrafo único. A seguradora, a resseguradora e a retrocessionária, para as ações e as arbitragens promovidas entre si, em que sejam discutidos conflitos que possam interferir diretamente na execução dos contratos de seguro sujeitos a esta Lei, respondem no foro de seu domicílio no Brasil”.

[4] A retirada da expressão “resumos” na redação final da norma poderia, ainda, ser interpretada como uma tentativa de exigir a divulgação integral das decisões arbitrais. No entanto, essa interpretação não parece compatível com a intenção legislativa, especialmente porque o legislador utiliza a formulação “sem identificações particulares”, indicando a preocupação em preservar a confidencialidade. Conforme mencionado, a omissão do termo parece buscar maior flexibilidade, permitindo que a Susep determine o grau de detalhamento adequado na divulgação, considerando as necessidades de confidencialidade e as especificidades do mercado. Essa abordagem evita interpretações que comprometam a privacidade das partes ou inviabilizem a prática arbitral no setor securitário.

[5] Frazão, Ana. Arbitragem, seguro, resseguro e formação do Direito. In: VII. Fórum de Direito do Seguro. São Paulo: Roncarati, 2018. p. 365.

[6] TZIRULNIK, Ernesto. Arbitragem conforme lei de contrato de seguro trará segurança. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-out-12/tzirulnik-arbitragem-lei-contrato-seguro-traz-seguranca/.

[7] Conforme se mencionou recentemente em outra sede: “Nos próximos anos, a SUSEP e o CNSP enfrentarão desafios consideráveis para atualizar a regulação em conformidade com a nova Lei de Seguros. Além de realizar uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) efetiva antes da aprovação de novas normas – o que não tem precedente desde a regulamentação desse procedimento pelo Decreto nº 10.411/2020 –, a SUSEP poderia se inspirar na Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e adotar a prática de tomadas de subsídios, coletando sugestões antes de apresentar minutas de atos normativos. Essa abordagem tornaria o processo mais transparente e participativo, permitindo que as partes interessadas contribuíssem desde o início com perspectivas e experiências práticas, enriquecendo a qualidade das normas”. JUNQUEIRA, Thiago; GELBECKE, Daniel. Retrospectiva 2024: o Direito dos Seguros no limiar de uma transformação. Disponível em: https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Artigos-e-Noticias/Artigos-e-Noticias/Retrospectiva-2024-o-Direito-dos-Seguros-no-limiar-de-uma-transformacao.html.

Autores

  • é mestra em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atua como advogada e coordenadora de pesquisas no escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados.

  • é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil.

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