Opinião

Combate à litigância abusiva interessa especialmente à advocacia

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8 de janeiro de 2025, 6h02

Até há pouco, o tema que propomos debater era adjetivado quase que exclusivamente como “predatório”. Nomeava-se o fenômeno da perspectiva do agressor, daquele que, através de expedientes antiéticos, se propunha a predar recursos do Judiciário ou da parte contrária.

Atribuímos durante muito tempo à litigância predatória uma posição ativa, de quem tem aptidão para colocar em xeque o equilíbrio do sistema processual.

O movimento semântico proposto pela Recomendação nº 159/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), portanto, é o ponto de partida deste artigo. Nela, fala-se não em “predatória”, mas em litigância “abusiva” — e, nesse processo de revisão, retira do fenômeno sua dimensão ativa, atribuindo-lhe o status passivo de quem caminha na contramão do ordenamento.

Parece pouco, mas não nos parece que seja — sobretudo se levarmos em consideração que as disputas começam sempre no campo da narrativa.

Substituir o predador pelo abusador é um ponto de inflexão relevante em um processo gradual e orgânico; e que, nos últimos meses, voltou a receber atenção da comunidade jurídica.

É daqui que seguimos.

Transformando a cultura da litigância

A eficiência do sistema judiciário brasileiro tem sido objeto de intensos debates, especialmente em razão do crescente número de processos judiciais, que sobrecarregam os tribunais e tornam a resolução dos litígios mais lenta e onerosa.

Na sessão plenária de 22 de outubro de 2024, o CNJ deu uma contribuição decisiva para racionalizar o acesso à Justiça e evitar a sobrecarga do Judiciário com processos que poderiam ser resolvidos fora das cortes, naquela que possivelmente já nasceu como a normativa mais minuciosa a se debruçar sobre o tema.

A Recomendação nº 159 do CNJ consolida entendimentos e ações que têm sido adotadas por tribunais de todo o país no tratamento da litigância abusiva, além de adicionar novas formas de identificar, diligenciar e tratar situações que envolvam esse tema.

Nessa normativa, o CNJ convoca os órgãos julgadores a adotar “medidas para identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva”, conceituando-a como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça” (artigo 1º da Recomendação).

Spacca

Avocando para si a tarefa de criar um protocolo nacional para tratamento do tema, o CNJ elenca exemplificativamente medidas potencialmente abusivas (Anexo A), como, por exemplo, desistência de ações após o indeferimento de liminares, ou submissão de documentos com dados incompletos, ilegíveis ou desatualizados.

Em seguida, lista no Anexo B uma série de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva, entre eles: notificação para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação; e apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida.

As medidas têm o potencial de transformar a cultura da litigância no Brasil, incentivando uma visão em que o processo judicial passa a ser visto como última alternativa, e não a primeira delas.

Se bem pensadas as coisas, a recomendação de alguma maneira passa a capitanear um movimento orgânico que tem ganhado força no Judiciário — e do qual o Tema/STJ 1.198 e o Tema/TJ-MG 91 constituem claras expressões.

O primeiro deles, a essa altura, já não é nenhuma novidade: discute-se na Corte Especial do STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, a possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.

Ainda em julgamento, esse tema visa a coibir a litigância abusiva, permitindo que o juiz, ao perceber que uma ação está sendo proposta de forma irregular ou sem fundamento, exija que a parte autora apresente provas mínimas para embasar suas alegações, como contratos ou outros documentos pertinentes. Caso essa exigência não seja cumprida, a ação pode ser extinta sem julgamento de mérito.

A se confirmar a possibilidade posta em julgamento, confere-se o Judiciário instrumentos para evitar sua utilização como instrumento de pressão em litígios infundados, muitas vezes propostos com o único intuito de obter acordos forçados, sem que haja uma base fática ou jurídica sólida para a demanda.

A discussão pendente de julgamento, como o leitor já deve ter observado, teve seu ineditismo esvaziado pela recomendação do CNJ, cujo Anexo B sugere, entre outras medidas, a notificação da parte para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação, sempre que houver dúvida fundada sobre a autenticidade, validade ou contemporaneidade daqueles apresentados no processo.

No caso do Tema/TJ-MG 91, cujos reflexos imediatos estão circunscritos aos limites estaduais da competência do tribunal, há um inequívoco avanço no esforço de racionalização no acesso à justiça, ao estabelecer que, em ações consumeristas, o interesse de agir do consumidor somente será reconhecido se for comprovado que houve uma tentativa de resolução extrajudicial do conflito — seja por meio do Procon, do Consumidor.gov.br ou outros canais administrativos.

Ao criar essa condicionante, o TJ-MG dá um passo adiante: não se trata mais de incentivar a utilização de canais alternativos de solução de conflitos, e sim de condicionar o acesso ao Judiciário à tentativa de resolução prévia e administrativa dos conflitos. A diferença é enorme.

Promovendo uma releitura do artigo 17 do CPC a partir da realidade de um Judiciário cada vez mais inchado de demandas, a decisão, ao tempo em que desestimula o ajuizamento acrítico de ações, contribui para o desafogamento do tribunal — o que, em última hipótese, tende a representar uma melhor gestão do tempo gasto na solução dos processos.

Restrição à inafastabilidade da jurisdição

Uma das questões mais prementes suscitadas por essa medida é se ela poderia representar uma restrição indevida à inafastabilidade da jurisdição, raciocínio que não resiste a um exame mais cuidadoso do tema.

Primeiro porque condicionar está ligado, antes, ao estabelecimento de circunstâncias visando à gestão adequada dos recursos (humano e estrutural) inerentes ao exercício da atividade jurisdicional.

Segundo porque a postura é adequada e necessária à finalidade a que se destina, sem descuidar das situações de urgência que, justificadamente, autorizem que se prescinda desse procedimento administrativo padrão.

Terceiro porque, como todo e qualquer princípio, o da inafastabilidade da jurisdição não é absoluto e tolera condicionamentos. Basta que se recorde, aqui, o posicionamento firmado pelo STF no Tema 350, de acordo com o qual é indispensável o prévio requerimento administrativo de benefício previdenciário como pressuposto para que se possa acionar legitimamente o Poder Judiciário.

De mais a mais, vale aqui argumento no sentido de que o recurso ao Judiciário continua disponível, apenas pressupondo a constatação de que as vias administrativas não foram eficazes.

É certo que, ao exigirem a tentativa de solução extrajudicial e coibirem a litigância abusiva, essas decisões contribuem para reduzir o número de ações desnecessárias no Judiciário, melhorando o acesso à Justiça para aqueles que realmente necessitam de uma intervenção judicial e promovendo uma maior confiança da população nos meios alternativos de resolução de conflitos.

Esse também foi o entendimento alcançado pela Recomendação do CNJ, cujo Anexo B sugere, entre outras medidas, a notificação para apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida.

Apesar dos desafios, a adoção dessas medidas representa um avanço significativo na busca por um Judiciário mais eficiente e menos sobrecarregado. Ao fixar balizamentos claros para o tratamento da litigância abusiva, nos termos da normatização do CNJ; ao condicionar o acesso à Justiça à tentativa prévia de resolução extrajudicial, conforme o Tema/TJ-MG 91; e ao exigir provas mínimas em ações com indícios de abuso, conforme o Tema/STJ 1.198, o sistema judicial brasileiro se aproxima de um modelo mais equilibrado e justo, que privilegia o uso responsável dos recursos judiciais e incentiva a resolução pacífica e eficiente dos conflitos. Essas mudanças, a médio/longo prazo, fortalecem o Judiciário e trazem benefícios diretos para todos os cidadãos, que podem contar com uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz.

Em outras palavras, se conduzido de maneira cooperativa e responsável, o movimento orgânico encabeçado pelo Judiciário tem o condão de fortalecer o sistema jurisdicional como um todo e, por consequência, robustecer as garantias de acesso à justiça e ampla defesa.

O problema, como costuma acontecer, está nos excessos. E é a partir daqui que caminhamos para o desfecho deste artigo.

O papel da advocacia neste novo cenário

No Anexo C da Recomendação nº 159, em que é apresentada uma lista de medidas recomendadas aos tribunais, encontra-se a seguinte: “adoção de práticas de cooperação entre tribunais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensoria Pública e instituições afins, para compartilhamento de informações e estabelecimento de estratégias conjuntas de tratamento da litigiosidade abusiva e de seus efeitos deletérios sobre o sistema de Justiça e a sociedade”.

A premissa é perfeita: o tratamento de problemas complexos demanda ações inovadoras e permanente diálogo entre todos os atores que participam da construção do sistema jurídico nacional.

Nesse sentido, não deixa de ser motivo de preocupação o fato de que a recomendação, em teoria tão plural e cooperativa, tenha sido aprovada sem a participação da advocacia – o que motivou, no dia imediatamente seguinte à aprovação, um pedido de suspensão e de reconsideração subscrito pelo Conselho Federal da OAB nos autos do Ato Normativo 0006309-27.2024.2.00.0000.

Reconhecer os avanços e saudar o caráter propositivo da postura adotada pelo CNJ não nos impede de endossar a crítica do Conselho Federal no sentido de que a ausência de representantes da OAB na sessão plenária — na medida em que os dois representantes da classe ainda aguardam sabatina do Senado Federal – não se coaduna com a postura dialógica que deve informar o tratamento da questão.

Mesmo porque, em última análise, combater a litigância abusiva, inclusive com a adoção de novos recursos e de uma postura mais proposicional dos órgãos julgadores, interessa a todos — especialmente à própria advocacia. Isso porque, antes de representar uma afronta às garantias da classe, a adoção de medidas de controle da atuação de maus profissionais termina por privilegiar aqueles que trabalham de maneira ética e responsável.

Isso não significa, contudo, que os profissionais não tenham de ressignificar as suas atuações a fim de adequá-las à nova realidade.

Assessorar um consumidor a perseguir a solução da controvérsia que lhe aflige em âmbitos decisórios extrajudiciais, fomentar a atuação preventiva de órgãos de controle como agências reguladoras e, em última hipótese, exercer um juízo de valor crítico acerca dos contornos que uma pretensão venha a ser judicializado — recusando dilações probatórias infundadas, ou indenizações por danos morais inconsequentes, por exemplo — já deveriam ter sido assimiladas pela advocacia (cf. artigo 2º, VI, VII; artigo 8º, ambos do Código de Ética da OAB).  Com a mudança desse paradigma jurisdicional se tornam ainda mais prementes.

O processo de ressignificação da atuação do Judiciário, que tem sido fomentado pela atuação orgânica de seus órgãos (Conselhos, Tribunais Superiores, Escolas de Magistratura etc.) não pode prescindir da participação ativa da advocacia; e essa, por seu turno, não pode fechar os olhos para esse movimento de mudança que tem se consolidado.

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