Abate do voo da Arzebaijan Airlines: alguma punição aos responsáveis?
8 de janeiro de 2025, 15h16
Na manhã do dia 27 de dezembro de 2024, fomos surpreendidos por mais um acidente envolvendo uma aeronave de linha aérea. Não passaram algumas horas e as primeiras imagens já apontavam pela possível derrubada da aeronave Embraer 190 da empresa Azerbaijan Airlines, em espaço aéreo do Cazaquistão, por míssil deflagrado a partir de algum sistema antiaéreo.
O abate equivocado de aeronaves comerciais não é novidade. Antes do caso envolvendo o voo da Azerbaijan Airlines, até então com 38 vítimas fatais, houve diversos outros incidentes e com elevado número de vítimas: Korean Airlines (1983, 279 mortos), Iran Airlines (1988, 290 mortos); Malaysia Airlines (2017, 289 mortos) e Ukraine Airlines (2020, 176 mortos).
Após longo percurso em cortes internacionais, alguns dos abates de aeronaves comerciais alcançaram provimentos na área civil, como pagamento de indenizações aos familiares de vítimas e admissão de culpa pelos Estados, com apresentação formal de desculpas.
Porém, muito pouco se conseguiu, até hoje, na área de responsabilização criminal pessoal dos agentes – talvez a chave para extirpar essas condutas extremamente lesivas à sociedade, especialmente pelo forte abalo que provocam à segurança dos voos internacionais.
Regras internacionais
A realização de um voo comercial, em regra, representa uma atividade não beligerante e protegida pelas liberdades do ar, então fixadas pela Convenção de Chicago de 1944. Entretanto, sistemas de defesa aérea dos Estados já geraram ações equivocadas de intervenção, provocando a derrubada de aeronaves comerciais.
O abate do boeing 747 da Korean Airlines pelo sistema de defesa aérea soviética em 1983, na região da ilha da Sacalina, e que levou ao óbito de todas as 279 pessoas a bordo, gerou uma rápida resposta da comunidade internacional: a assinatura do Protocolo de Montreal de 1984.
Com o novo ato internacional, os Estados-Partes se comprometeram a não empregar armas contra aeronaves civis em voo, salvo em caso de legítima defesa do Estado [1]. Apesar da assinatura do tratado, poucos Estados depositaram seus instrumentos de ratificação, pois muitos países compreenderam que a nova regra poderia trazer impactos à sua soberania, especialmente naquela época de guerra fria.
Somente com o segundo abate de uma aeronave comercial que o Protocolo de Montreal chegou ao mínimo de 102 ratificações e então passou a ter vigência internacional: a derrubada do Airbus 300 da Iran Air Lines pela marinha dos Estados Unidos em 1988, no estrito de Ormuz, e que levou a vida de 290 pessoas.
Alcance das regras internacionais
No campo do Direito Internacional, o Protocolo de Montreal trouxe um suporte para o julgamento da responsabilidade internacional dos Estados em casos de abate de aeronaves comerciais, porém, ainda distante da necessária responsabilidade penal dos envolvidos.
No caso da derrubada da aeronave da Iran Air Lines, os EUA firmaram um acordo com o Irã na Corte Internacional de Justiça [2], responsabilizando-se pelas indenizações aos familiares de vítimas e apresentando pedido formal de desculpas.
Recentemente, dois casos de abate de aeronave de linha aérea caminham em busca da responsabilização criminal dos responsáveis: MH 17 (Malaysia Airlines – 2017) e AUI 752 (Ukraine Airlines – 2020).
Caso Malaysia Airlines – voo MH 17
O abate do boeing 777-200ER da Malaysia Airlines ocorreu no leste da Ucrânia e gerou a morte de todos os 289 ocupantes. Segundo as investigações, a derrubada da aeronave comercial foi causada por um míssil buk, disparado por uma bateria antiaérea russa e operada por grupo separatista pró-rússia.
Para apuração dos fatos, foi formada uma Equipe de Investigação Conjunta (ECI) [3] entre Áustria, Bélgica, Malásia, Países Baixos e Ucrânia, países que tiveram nacionais como vítimas no trágico incidente.
O caso MH 17 foi então remetido à Justiça Holandesa, após Ucrânia e Holanda firmarem o Tratado de Talin, com aderência posterior pelos demais países a partir de um Memorando de Entendimento. Dois militares russos e um ucraniano separatista pró-rússia foram condenados a prisão perpétua e pagamento de indenização de 16 milhões de euros, entretanto, a execução das condenações ainda depende da aquiescência do Estado russo.
Caso Ukraine Airlines – voo AUI 752
O voo 752 da Ukraine Airlines foi abatido equivocadamente em 2020, logo após a decolagem de Teerã, por dois mísseis terra-ar do sistema de defesa aérea iraniano. Morreram todas as 176 pessoas a bordo da aeronave.
Embora o Estado do Irã tenha anunciado a punição de militares de baixa patente, em razão do disparo dos mísseis sem autorização superior, os familiares das vítimas submeteram o caso ao Tribunal Penal Internacional (TPI) em razão da insuficiência das condenações, o que pode representar a falta de firme disposição do Estado de Teerã em investigar o caso – um das hipóteses de atração da jurisdição complementar do TPI [4].
Os fatos criminosos representados foram tipificados no item 1 do artigo 7º do Tratado de Roma, considerando que o abate do voo AUI 752 causou a produção de homicídios em massa (alínea a) e por significar um ato desumano, gerador de grande sofrimento humano (alínea k).
Caso a representação criminal seja acolhida pelo TPI e venha a ocorrer a condenação de nacionais do Irã, mais uma vez, a consolidação da justiça dependerá da anuência do Estado de nacionalidade dos eventuais condenados para a entrega de seus nacionais e consequente execução das penas.
Caso Azerbaijan Airlines
Como visto, são limitadas as perspectivas de punição dos responsáveis pelo incidente com o voo da Azerbaijan Airlines, caso confirmado o ilegítimo ataque por sistema de defesa aérea.
A soberania dos Estados, notadamente, ainda é a maior barreira para a execução de condenações criminais, especialmente quando os crimes envolvem nacionais de Estados dotados de maior poder internacional.
Alguns tratados na área de direito aeronáutico trazem a cláusula aut dedere aut judicare [5], isto é, ao Estado cabe decide por processar o acusado ou o extraditar, o que evita a alegação de ausência de jurisdição em determinado caso como subterfúgio para a impunidade [6].
Outra dificuldade está na área de investigação, visto que as regras internacionais remetem a investigação do incidente ao Estado do local da queda da aeronave [7]. Trata-se de regra importante e necessária para a segurança aérea, pois, certamente, o país do local do sinistro tem melhores condições para apurar acidentes aeronáuticos.
Nos casos de abate de aeronaves, essa regra leva a investigação da ocorrência ao Estado geralmente responsável pela derrubada do veículo aéreo, criando um claro conflito de interesses. Todavia, a alteração dessa norma parece ser improvável, ainda que fosse uma regra de exceção, posto que o abate de aeronaves decorre, em geral, da atuação de sistemas de defesa aérea, que envolve questões de segredo militar e soberania.
Talvez, a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) possa criar comissões internacionais para acompanhamento de investigações de abate de aeronaves comerciais em voos internacionais, bem como propor acordos internacionais de submissão dos nacionais dos Estados-Partes à jurisdição de organismos penais internacionais em caso de derrubada de aeronaves por seus sistemas de defesa aérea.
Enquanto as melhorias normativas não chegam, os mísseis continuam livres no espaço aéreo.
[1] HONORATO, M. As interfaces entre a Lei do Abate e o Protocolo de Montreal de 1984. In: ZANETTI, A. F. et al. Lei do Abate: concepção, teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 119.
[2] Informações complementares disponíveis em: https://www.usni.org/magazines/proceedings/1993/august/vincennes-case-study. Acesso em 26 dez.2024.
[3] ARAS, V. O caso da derrubada do voo MH-17. Blog do Vlad. Disponível em: https://vladimiraras.blog/2022/11/19/o-caso-da-derrubada-do-voo-mh-17/. Acesso em: 27 dez. 2023.
[4] 3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos artigos 6o, 7o ou 8o, a menos que o processo nesse outro tribunal:
a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou
b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.
[5] Convenção de Haia de 1970 e Convenção de Montreal de 1971.
[6] HONORATO, M. Crimes Aeronáuticos. 5a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 532.
[7] Convenção de Chicago de 1944:
Artigo 26 – Investigação de acidentes
No caso em que uma aeronave de um Estado contratante, acarretando morte ou ferimentos graves, ou indicando sérios defeitos técnicos na aeronave ou nas facilidades de navegação aérea, os Estados onde tiver ocorrido o acidente procederá a um inquérito sôbre as circunstâncias que provocarão o acidente, de conformidade, dentro do permissível por suas próprias leis com o procedimento que possa ser recomendado nas circunstâncias pela Organização Internacional de Aviação Civil. Será oferecido ao Estado de registro da aeronave a oportunidade de designar observadores para assistirem as investigações, e o Estado onde se esteja processando o inquérito transmitirá ao outro Estado as informações e conclusões apuradas.
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