A linguagem como pilar do Direito Societário: lições de Delaware
8 de janeiro de 2025, 7h18
O Direito Societário, em sua essência, é um exercício de precisão linguística. Recentemente, a juíza Karen Valihura, da Suprema Corte de Delaware, proferiu uma palestra esclarecedora sobre “Linguagem Clara no Direito Societário de Delaware”, destacando como a interpretação de palavras aparentemente simples pode ter consequências profundas no mundo corporativo. Delaware, reconhecido como o epicentro do Direito Societário nos Estados Unidos, oferece, por meio de suas decisões judiciais, lições valiosas que ressoam globalmente.
A precisão linguística, longe de ser um mero exercício acadêmico, emerge como um elemento fundamental na prática jurídica corporativa moderna. Casos emblemáticos de Delaware ilustram como a interpretação de palavras aparentemente simples pode ter consequências financeiras e legais impactantes.
O caso Weinberg v. Waystar (2023) serve como um exemplo paradigmático. A disputa centrou-se na interpretação da palavra “and” em um acordo de opções de ações. A cláusula em questão estabelecia que as unidades convertidas estariam sujeitas ao direito de recompra após “a rescisão do emprego de Weinberg e uma violação da cláusula restritiva” (“…converted units shall be subject to the right of repurchase following x, the termination of Weinberg’s employment and y, a restrictive covenant breach”). A corte interpretou “and” de forma a permitir a recompra após qualquer um dos eventos, não necessariamente ambos.
Para evitar tal ambiguidade, os redatores poderiam ter empregado uma linguagem mais específica, como: “…subject to the right of repurchase if either of the following events occurs: (i) the termination of Weinberg’s employment or (ii) a restrictive covenant breach”. Adicionalmente, uma cláusula de intenção poderia ter sido incluída: “It is the intention of the parties that the occurrence of either event shall be sufficient to trigger the repurchase right”. O uso de listas numeradas também aumentaria a clareza.
A importância da escolha cuidadosa de palavras é ainda mais evidenciada no litígio ION Geophysical Corp. v. Fletcher (2010). O cerne da disputa estava na interpretação de uma cláusula específica do acordo que permitia a Fletcher aumentar sua participação acionária na ION. O acordo permitia que Fletcher entregasse “a 65-day notice” (um aviso de 65 dias) para aumentar o número máximo de ações ordinárias da ION em que Fletcher poderia converter suas ações preferenciais.
Em novembro de 2008, Fletcher entregou um aviso de 65 dias aumentando o número máximo de ações em dois milhões. Posteriormente, Fletcher entregou outro aviso de 65 dias para aumentar sua participação em mais dois milhões de ações. A ION argumentou que Fletcher só poderia emitir um único aviso de 65 dias, não mais de um.
A corte considerou que o uso de “a” em vez de “the” sugeria que múltiplos avisos eram permitidos. Se a intenção fosse limitar Fletcher a um único aviso, o contrato poderia ter usado linguagem mais específica, como “one 65-day notice” ou “a single 65-day notice”. A corte também observou que o artigo definido “the” foi usado em outras partes do contrato para se referir a itens únicos ou específicos, reforçando a interpretação de que “a” neste contexto permitia múltiplos avisos. Literalmente, o “artigo que vale milhões”!
Para advogados brasileiros envolvidos em fusões e aquisições internacionais, este caso ressalta a necessidade de uma atenção meticulosa a cada elemento linguístico, mesmo aqueles aparentemente triviais. Em contratos bilíngues ou internacionais, a precisão na tradução e escolha de artigos é fundamental.
Em Kellner v. AIM ImmunoTech (2023), a Suprema Corte de Delaware invalidou uma cláusula de 1.099 palavras sem pontuação, considerada “indecifrável” pela corte. Esta decisão estabelece um limite claro para a complexidade aceitável em documentos corporativos. Clareza e concisão não são apenas virtudes estilísticas, mas requisitos legais essenciais.
Para evitar tais problemas, os redatores de contratos podem dividir cláusulas complexas em seções menores e numeradas, usar linguagem simples e direta, e incluir sumários no início de seções extensas. O uso de exemplos práticos e até mesmo diagramas ou fluxogramas para visualizar processos complexos pode aumentar significativamente a clareza.
O caso Fox Corporation/Snap Inc. Seção 242 Litigation (2023) surgiu após uma mudança na lei de Delaware que permitiu às empresas expandirem as proteções de responsabilidade para seus executivos. Fox e Snap, ambas com estruturas de múltiplas classes de ações, buscaram emendar seus certificados de incorporação (equivalentes aos estatutos sociais no Brasil) para incluir essas novas proteções. As classes com direito a voto aprovaram as emendas, mas as empresas não solicitaram um voto separado dos detentores de ações Classe A sem direito a voto. Estes acionistas entraram com uma ação, alegando que tinham direito a um voto separado com base na Seção 242(b)(2) [1] do Delaware General Corporation Law, argumentando que as emendas alteravam seus “poderes” ao diminuir sua capacidade de processar executivos por violação do dever de cuidado.
O cerne da disputa estava na interpretação da palavra “power” (poder) na lei. A Suprema Corte de Delaware adotou uma interpretação restrita, determinando que o direito de processar não constituía um “power” no sentido contemplado pela lei, referindo-se mais a direitos de voto ou outros poderes corporativos específicos. Consequentemente, a corte decidiu que as emendas não exigiam um voto separado dos acionistas da Classe A. Esta decisão tem implicações significativas, estabelecendo uma interpretação mais restrita do que constitui um “power” no contexto dos direitos dos acionistas, dando às empresas mais flexibilidade para fazer certas alterações sem aprovação de todas as classes de ações, e potencialmente limitando os direitos de acionistas sem direito a voto em certas situações.
Demonstra, inclusive, como a interpretação de um único termo legal pode ter ramificações extensas, afetando o equilíbrio de poder entre diferentes classes de acionistas e a capacidade das empresas de implementar mudanças em sua estrutura de governança.
A demanda da Activision Blizzard, Inc. Section 220 Litigation (2024) surgiu no contexto da aquisição bilionária da Activision Blizzard pela Microsoft, uma das maiores transações na história da indústria de jogos eletrônicos. Este caso levantou questões fundamentais sobre a diligência do conselho de administração e a importância da linguagem clara nos processos de governança corporativa. O conselho da Activision aprovou um rascunho incompleto do acordo de fusão com a Microsoft, que continha omissões significativas, o que gerou críticas severas da corte. A decisão enfatizou que a aprovação de um rascunho incompleto em uma transação dessa magnitude representa uma falha significativa no cumprimento dos deveres fiduciários dos conselheiros.
Documentos corporativos
A linguagem clara no Direito Societário não se refere apenas à interpretação de termos individuais, mas também à apresentação completa e precisa de informações em documentos corporativos. A mensagem é inequívoca: a diligência não é negociável, independentemente do tamanho ou da reputação das empresas envolvidas. Reforça a noção de que a governança corporativa eficaz vai além do cumprimento formal de regras e procedimentos. Ela exige um compromisso genuíno com a diligência, a transparência e a proteção dos interesses dos acionistas, manifestado através de uma linguagem clara, precisa e completa em todos os documentos corporativos relevantes.
O julgamento de The Williams Companies Stockholder Litigation (2021) envolveu a adoção de uma “poison pill” (medida defensiva que dificulta aquisições hostis, geralmente dando aos acionistas existentes o direito de comprar ações adicionais a um desconto) pela Williams Companies durante a volatilidade do mercado causada pela pandemia de Covid-19. O plano era excepcionalmente restritivo, com um gatilho baixo de 5% (significando que seria ativado se um acionista adquirisse 5% ou mais das ações, bem abaixo do padrão usual), definições amplas de “atuação em conjunto” e limitadas de “investidor passivo”.
A Corte de Chancelaria de Delaware considerou que os termos do plano eram excessivamente amplos e vagos, potencialmente englobando atividades legítimas dos acionistas, e desproporcional à ameaça alegada, resultando na sua invalidação. Esta decisão estabeleceu limites mais claros para “poison pills”, mesmo em tempos de crise, enfatizando a necessidade de equilibrar proteção corporativa com direitos dos acionistas. Reafirma, ainda, a disposição dos tribunais de Delaware em examinar minuciosamente as medidas defensivas corporativas, aplicando um escrutínio rigoroso à linguagem e à estrutura dessas medidas. Ao fazê-lo, a corte demonstrou que a precisão linguística e a proporcionalidade não são apenas questões de forma, mas elementos essenciais para a validade legal de tais medidas.
Estratégia
As decisões de Delaware oferecem lições relevantes para o aprimoramento do Direito Societário, destacando a necessidade de precisão linguística em todos os documentos corporativos, desde contratos até atas de reunião dos órgãos da governança. É fundamental promover clareza e concisão na redação legal, evitando a verbosidade excessiva comum na tradição jurídica brasileira. Além disso, deve-se garantir uma diligência rigorosa nos processos de aprovação corporativa. É igualmente importante manter um equilíbrio cuidadoso entre a proteção corporativa e os direitos dos acionistas, mesmo em tempos de crise. Por fim, deve-se prestar atenção às nuances linguísticas em diferentes contextos legais, especialmente em transações internacionais.
Para advogados e executivos brasileiros, adaptar-se a esses padrões não é apenas uma questão de conformidade legal, mas uma oportunidade de elevar a prática do Direito Societário no país. Deve-se entender que a governança corporativa no século 21 exige uma compreensão profunda das nuances linguísticas que podem fazer ou quebrar um negócio.
Sendo assim, a diligência na revisão e aprovação de documentos corporativos deve ser vista não como um fardo, mas como uma parte integral da estratégia de negócios e gestão de riscos.
[1] Seção 242(b)(2) do Delaware General Corporation Law (DGCL), que diz em parte:
“The holders of the outstanding shares of a class shall be entitled to vote as a class upon a proposed amendment, whether or not entitled to vote thereon by the certificate of incorporation, if the amendment would increase or decrease the aggregate number of authorized shares of such class, increase or decrease the par value of the shares of such class, or alter or change the powers, preferences, or special rights of the shares of such class so as to affect them adversely”.
Em tradução livre:
“Os detentores das ações em circulação de uma classe terão direito a votar como uma classe sobre uma emenda proposta, tenham ou não direito a voto conforme o certificado de incorporação, se a emenda aumentar ou diminuir o número total de ações autorizadas dessa classe, aumentar ou diminuir o valor nominal das ações dessa classe, ou alterar ou modificar os poderes, preferências ou direitos especiais das ações dessa classe de modo a afetá-las adversamente.”
Disponível em: https://delcode.delaware.gov/title8/c001/sc08/index.html. Consultado em: 06 jan 2025.
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