Opinião

Litígios estruturais como ferramentas de transformação social

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  • é servidora pública federal diretora de Secretaria na Justiça Federal da Bahia mestranda em Direito Econômico pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa (IDP) pós-graduada em Direito Processual e graduada em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

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7 de janeiro de 2025, 6h02

O processo estrutural emerge como um mecanismo transformador em cenários marcados por desigualdades e violações de direitos humanos, como o litígio emblemático envolvendo as comunidades quilombolas de Alcântara, no estado do Maranhão. Mais do que buscar a reparação individual, essa modalidade de litigância almeja mudanças sistêmicas em políticas públicas e práticas institucionais. No contexto de demandas estruturais, a necessidade de inviabilizar a repetição da causa indenizatória soa mais latente que a mera reparação individual do dano, já que a intenção é promover mudanças sociais duradouras e mais concretas.

O desafio é a complexidade inerente aos litígios estruturais que afeta a celeridade processual e, em consequência, impacta negativamente na efetividade do instrumento, por impedir que as decisões judiciais transcendam os efeitos simbólicos, promovendo mudanças reais.

A análise do Anteprojeto de Lei do Processo Estrutural, da relatoria de Edilson Vitorelli, e legislações conectadas com a temática é relevante para compreender em que medida essas normas protegem (ou protegerá) os direitos humanos diante das práticas contemporâneas de processos coletivo e estrutural e se conseguem assegurar mudanças estruturais na sociedade.

O marco normativo da tutela de direitos difusos e coletivos no Brasil foi a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), especificando responsabilidades por danos ao meio ambiente e a interesses difusos. É nela que se enfatiza a reparação coletiva, tendo relevância em processos estruturais por prever mecanismos financeiros para implementar medidas de reestruturação (artigo 13).

Redução das desigualdades sociais e regionais

A Constituição prevê a promoção de direitos econômicos, sociais e culturais de forma inclusiva, estabelecendo como um dos objetivos fundamentais a erradicação da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III), já visando à proteção de grupos vulneráveis. No entanto, escolhas políticas frequentemente ignoram as necessidades das populações mais marginalizadas, exigindo a intervenção judicial como instrumento de reparação de danos coletivos e mitigação de desigualdades estruturais.

Há litígios de alto impacto social que envolvem povos marginalizados, como negros, índios, quilombolas, cujas vozes são reduzidas pela discriminação social. Diante dessa remoção estrutural, Yuval Harari [1] reforça a importância de se considerar as perspectivas desses grupos, argumentando que “os pobres têm percepções sobre a pobreza que costumam escapar aos professores de economia, e minorias étnicas compreendem o racismo de maneira muito mais profunda do que pessoas que nunca sofreram discriminação”. A contribuição dos povos marginalizados sobre suas condições reduziria a possibilidade de violação dos seus direitos.

Diante disso, surge o desafio de adaptar o sistema jurídico para responder a demandas com impacto coletivo, considerando, entre outros aspectos, a necessidade de integração entre os Poderes, a capacidade e estrutura técnica para a condução e supervisão das medidas judiciais e a superação de limitações territoriais ou procedimentais que possam comprometer a eficácia das decisões e a garantia dos direitos fundamentais.

Spacca

O artigo 1º do relatório preliminar do Anteprojeto de Lei define o processo estrutural como aquele relacionado a “conflito coletivo de significativa abrangência social, cuja resolução adequada depende de providências prospectivas, graduais e duradouras” [2].

Políticas públicas

A complexidade das demandas coletivas, diante da extensão e quantidade de entes envolvidos, afeta a resolução desses litígios e nem sempre a legislação brasileira em vigor oferece mecanismos para enfrentar tais desafios. Isso porque os processos estruturais envolvem questões de alta complexidade e, muitas vezes, a solução perpassa por implantação de políticas públicas, o que demanda a elaboração de protocolos mais detalhados, sendo necessário o monitoramento de cumprimento das soluções estruturais.

O envolvimento do interesse público em processos estruturais ressalta a ampliação dos poderes dos órgãos jurisdicionais, incluindo formas de tutela mais flexíveis para a efetividade desses direitos. Nesse cenário, esse estilo de processo, quando implementado de forma adequada e funcional, emerge como uma ferramenta eficaz para assegurar a reparação dos bens jurídicos lesados, contribuindo para a concretização dos direitos fundamentais.

Ocorre que a atuação do Judiciário em litígios dessa natureza levanta questionamentos sobre a separação de poderes, no concernente a sua competência para propor ou determinar políticas públicas. Casimiro e Lopes Filho destacam que a crescente utilização de processos estruturais tem atraído críticas relacionadas à legitimidade e à capacidade técnica do Judiciário:

“A crescente utilização de processos estruturais atraiu a atenção de críticos, que questionam a competência e a legitimidade do Judiciário para intervir em políticas públicas. Uma das principais objeções levantadas trata da incapacidade técnica do Judiciário para intervir em litígios estruturais. Juízes não possuem o conhecimento necessário para criar ou supervisionar a implementação de políticas públicas” [3].

É certo que o acesso à Justiça desempenha papel essencial para possibilitar a oitiva de grupos marginalizados e oportuniza maior participação social em status de igualdade. Entretanto, o ativismo judicial tem sido alvo de questionamento político, no sentido de que a intervenção judicial em políticas públicas pode comprometer a legitimidade democrática, sob o argumento de que essa prática desestabilizaria a ordem social e tensionaria o princípio da separação de poderes [4]. Os autores destacam para a possibilidade de um efeito backlash, em que “intervenções unilaterais do Judiciário em políticas públicas podem dificultar o comprometimento da administração pública com a implementação da decisão”. A mesma ideia foi compartilhada por Letícia Osório [5] quando afirma que se vive uma era marcada por frequentes controvérsias judiciais, na qual a implementação das decisões dos tribunais é debatida quase com a mesma intensidade que os atos dos legisladores e do poder executivo.

Papel do Judiciário em impacto social

Esses questionamentos evidenciam a necessidade de discutir os limites e as possibilidades do papel judicial em litígios de alto impacto social, considerando tanto os desafios técnicos quanto os princípios constitucionais que norteiam a divisão funcional entre os Poderes.

O fato é que, sem uma atuação judicial mais ativa, não há garantia de efetivação de direitos fundamentais para os grupos mais vulneráveis da sociedade, já que o Poder Judiciário não tem força executiva em políticas públicas. Assim, ainda que o ativismo judicial levante críticas legítimas, no escopo do processo estrutural é instrumento necessário para assegurar direitos humanos.

A implementação de soluções estruturais exige um ambiente mais colaborativo entre as instituições, com envolvimento da sociedade civil. Práticas conciliatórias e de convergência social, como mediações e audiências públicas, têm sido adotadas com o objetivo de promover soluções mais céleres e eficazes. Contudo, casos como o litígio envolvendo as comunidades quilombolas de Alcântara, no Estado do Maranhão, evidenciam os limites dessas práticas no Brasil e destacam a necessidade de avanços institucionais e metodológicos.

Exclusão de comunidades quilombolas

No município de Alcântara, as comunidades quilombolas enfrentaram décadas de exclusão após o deslocamento forçado de mais de 310 famílias para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) na década de 1980. Recentemente, por meio do projeto “Viva Alcântara”, coordenado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), foram homologados acordos que incluem indenizações fundiárias, regularização de mais de 78 mil hectares de terras e medidas voltadas ao fortalecimento cultural dessas comunidades [6].

Ocorre que a implementação de algumas medidas acordadas nesse processo, ainda se estenderá. A condução de audiências de conciliação demonstrou o potencial de abordagens colaborativas, mas também expôs os desafios impostos pela lentidão na convergência dos conflitos e pela limitada capacidade de execução de tais soluções. Esse caso ressalta a importância de iniciativas estruturadas, capazes de superar a fragilidade das práticas tradicionais e de garantir a efetividade de direitos fundamentais, especialmente em litígios de impacto coletivo e histórico. Nesse sentido, Osório [7] expõe que “delongas na reparação podem resultar em danos irreparáveis aos afetados”.

Na prática, essa morosidade compromete a efetividade das ações, levando à perpetuação de violações, por reduzir o impacto social e político dos fatos envolvidos, uma vez que outros eventos subsequentes acabam por diluir sua relevância no cenário público. Nesse contexto, a perda de centralidade de um fato em meio à lentidão processual pode comprometer sua capacidade de gerar as mudanças necessárias para o alcance da justiça social.

Os litígios estruturais devem transcender a solução de casos individuais, para atingir um impacto social mais abrangente e duradouro, com o fim precípuo de corrigir desigualdades sistêmicas. Mais do que a reparação individual do dano, as decisões judiciais devem desafiar estruturas de exclusão e desigualdade para se tornarem uma ferramenta efetiva de transformação social. Nesse sentido, Casimiro e Lopes Filho destacam a prática adotada pelo Supremo Tribunal da Índia, que busca superar decisões meramente simbólicas ao designar comissões socio-jurídicas de investigação.

Na Índia, comissões para produzir provas

Para não proferir decisões de caráter retórico, produtoras apenas de efeitos simbólicos, o Supremo Tribunal da Índia passou a apontar comissões socio-jurídicas de investigação, integradas por especialistas no objeto do litígio e com competência para produzir provas, monitorar a implementação de reformas e sugerir medidas complementares a serem adotadas pelo Executivo [8].

Assim, é necessário reformas institucionais para que o processo estrutural seja utilizado como instrumento eficaz de transformação da realidade social e concretização de direitos fundamentais. A dogmática processual precisa fortalecer e capacitar o corpo judicial para lidar com litígios complexos e estruturais. Isso porque a decisão judicial sem determinação para que o Executivo priorize a população afetada não produz efeitos concretos na proteção de seus direitos, sendo apenas uma simbologia.

Nesse sentido, considerando os obstáculos e as dificuldades reais da implementação das medidas, consultas prévias, diálogos efetivos e audiência públicas envolvendo povos impactados são instrumentos previstos no artigo 2º do anteprojeto de lei para garantia dos direitos fundamentais. O artigo 7º do Anteprojeto estabelece a elaboração do plano de atuação estrutural contendo metas, indicadores e cronograma de cumprimento, com prazo de início e fim do processo, além da supervisão na implementação. As medidas previstas fortalecem a condução do processo estrutural, buscando solução sistêmica e eficaz para a restauração da justiça social em um nível mais amplo.

A adoção de soluções interinstitucionais, com a convergência da sociedade civil, pode assegurar a efetividade das ações estruturais e a concretização de direitos fundamentais. Uma abordagem participativa com incorporação da perspectiva das vítimas reforça a centralidade da dignidade humana, promovendo justiça social, por transcender o caráter compensatório. Nessa linha, tem-se que o processo estrutural possui grande potencial para transformar a realidade social e promover direitos humanos no Brasil.

 


Referências

CASIMIRO, Matheus e MOURÃO LOPES FILHO, Juraci. Processos estruturais para além da retórica: contribuições indianas para o monitoramento de decisões judiciais. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, V.14, N.02, 2023, p.1027-1051. DOI: 10.1590/2179-8966/2022/62856. Recuperado de https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/62856. Acesso em: 04 nov. 2024.

HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial. São Paulo: Companhia das letras, 2024.

OSÓRIO, Letícia Marques. Litígio Estratégico em Direitos Humanos: Desafios e

Oportunidades para Organizações Litigantes. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 1, 2019 p. 571-592.DOI: 10.1590/2179-8966/2019/39337| ISSN: 2179-8966.

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO. Justiça Federal da 1ª Região avança na reparação às comunidades quilombolas de Alcântara no Maranhão Disponível em: https://www.trf1.jus.br/trf1/noticias/trf1-participa-de-mutirao-historico-e-celebra-regularizacao-de-terras-que-encerra-disputa-entre-uniao-e-comunidades-quilombolas-de-alcantara-no-maranhao. Publicado em 03 dez/2024. Acesso em: 05 dez. 2024.

VITORELLI, Edilson. Levando conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. Vol. 284/2018, p. 333 – 369. Out/2018. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7863793/mod_resource/content/1/LEVANDO_OS_CONCEITOS_A_SERIO_PROCESSO_ES%20(1).pdf. Acesso em: 04 nov. 2024.

 

[1] HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial. São Paulo: Companhia das letras, 2024, p. 206.

[2] SENADO FEDERAL. Relatório preliminar. Anteprojeto de Lei do processo estrutural do Brasil. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2664/.

[3] CASIMIRO, Matheus e MOURÃO LOPES FILHO, Juraci. Processos estruturais para além da retórica: contribuições indianas para o monitoramento de decisões judiciais. Recuperado de https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/62856, p. 1.030.

[4] CASIMIRO, Matheus e MOURÃO LOPES FILHO, Juraci. Recuperado de https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/62856, p. 1.032.

[5] OSÓRIO, Letícia Marques. Litígio Estratégico em Direitos Humanos: Desafios e Oportunidades para Organizações Litigantes. Rev. Direito Práx., p. 583.

[6] Justiça Federal da 1ª Região avança na reparação às comunidades quilombolas de Alcântara no Maranhão. Disponível em: https://www.trf1.jus.br/trf1/noticias/trf1-participa-de-mutirao-historico-e-celebra-regularizacao-de-terras-que-encerra-disputa-entre-uniao-e-comunidades-quilombolas-de-alcantara-no-maranhao.

[7] OSÓRIO, Letícia Marques. Litígio Estratégico em Direitos Humanos. p. 586.

[8] CASIMIRO, Matheus e MOURÃO LOPES FILHO, Juraci. Recuperado de https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/62856. p. 1.046.

Autores

  • é servidora pública federal, diretora de Secretaria na Justiça Federal da Bahia, mestranda em Direito Econômico pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa (IDP), pós-graduada em Direito Processual e graduada em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

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