Açúcar, gordura e sódio podem ter o mesmo destino dos fumígenos
7 de janeiro de 2025, 11h13
Temos a ilusão de que somos senhores absolutos de nossas razões, gostos e desejos, mas a verdade é que nossas escolhas são constantemente moldadas por matrizes que muitas vezes sequer reconhecemos. O estilo de música que adoramos, a comida que comemos e as roupas que escolhemos vestir são frutos de influências culturais, sociais e econômicas que nos atravessam. Pierre Bourdieu, em sua teoria sobre habitus, nos alerta para essa engrenagem invisível: as estruturas sociais se internalizam em nós, guiando nossas preferências e práticas sem que percebamos [1]. Estamos imersos em um campo de forças que molda silenciosamente nossos comportamentos, nos fazendo acreditar que tudo parte apenas de nossa vontade.
Talvez este seja o ponto em que o Direito e a Publicidade mais convergem: a capacidade de moldar o comportamento humano. Por que, no passado, homens aderiam a um estilo formal e rígido, enquanto hoje preferem um visual despojado e casual? O que fez o hábito de fumar, antes associado a charme e sofisticação, tornar-se algo tão comumente repudiado? Desejos e tendências não nascem de escolhas puramente individuais: são programados por estruturas culturais, econômicas e ideológicas que agem sobre nós, seja por meio de normas jurídicas, seja pelo apelo sedutor das campanhas publicitárias.
Cientes do poder transformador e condicionante do Direito e da Publicidade, importantes medidas foram implementadas na década de 1990 no Brasil, combinando esforços desses dois campos para reduzir o uso da nicotina e melhorar as condições de saúde da população. O marco inicial foi a Lei nº 9.294/1996, que regulamentou a propaganda de cigarros, limitando-a severamente e proibindo sua veiculação em rádio e televisão. A lei impôs a inclusão de advertências obrigatórias nas embalagens de cigarros, mostrando imagens e mensagens de impacto sobre os riscos à saúde, fortalecendo o papel da publicidade educativa. Em 1999, a Resolução RDC nº 46 da Anvisa avançou ainda mais ao proibir a propaganda de produtos derivados do tabaco em qualquer tipo de mídia, restringindo o alcance de estratégias promocionais. Essas ações coordenadas entre regulação jurídica e controle publicitário foram fundamentais para criar uma percepção social do cigarro, até então tratado como um símbolo de status.
O impacto das medidas regulatórias sobre o tabagismo no Brasil é inegável, com resultados que demonstram sua eficiência. Entre 1990 e 2015, o percentual de fumantes diários no país sofreu uma redução drástica: entre os homens, a taxa caiu de 29% para 12%, enquanto entre as mulheres passou de 19% para 8%. Esses dados, publicados na revista científica The Lancet [2], reforçam como a combinação de restrições legais, controle publicitário e campanhas de conscientização conseguiu transformar o hábito de fumar em um comportamento cada vez menos comum na sociedade brasileira.
Aparentemente, medidas estatais parecem, nos últimos anos, querer replicar o sucesso obtido no controle e diminuição do tabagismo para outros “produtos nocivos à saúde”, como alimentos ultraprocessados com altos níveis de açúcar, gordura saturada e sódio. Nesse sentido, a Resolução RDC nº 429/2020 e a Instrução Normativa nº 75/2020, implementadas pela Anvisa, entraram em vigor em outubro de 2022, trazendo mudanças significativas para a rotulagem nutricional de alimentos e bebidas embalados [3]. O objetivo principal dessas normas é facilitar a compreensão das informações nutricionais, promovendo escolhas alimentares mais conscientes por parte do consumidor. Entre as principais mudanças, destaca-se a introdução da rotulagem nutricional frontal, que utiliza o símbolo de uma lupa na parte frontal das embalagens, acompanhada do selo “ALTO EM”.
A ideia central é a mesma: promover a melhoria das condições de saúde da população. A premissa subjacente é que a obesidade pode ser abordada de forma semelhante ao tabagismo. Para além da responsabilização individual, é necessário adotar uma visão integrada e sistêmica, que considere o diagnóstico médico e os fatores determinantes dessa condição do ponto de vista clínico, a obesidade é uma doença multifatorial, influenciada por elementos como predisposições genéticas, alterações hormonais, hábitos alimentares e contextos culturais. Médicos reconhecem que alguns indivíduos possuem maior propensão ao acúmulo de gordura devido a fatores genéticos ou epigenéticos [4]. Essas predisposições podem ser potencializadas por padrões de comportamento adquiridos em ambientes obesogênicos, onde há fácil acesso a alimentos ultraprocessados e pouco incentivo à atividade física.
Debate no STF deve ser retomado neste ano
Adicionalmente, estudos indicam que mudanças epigenéticas, como as observadas em dependentes químicos, também podem ocorrer em pessoas com obesidade. O sistema de recompensa cerebral, frequentemente exposto a altos níveis de açúcar, pode ser alterado, gerando padrões de consumo compulsivo [5]. Ainda assim, as particularidades individuais são muitas vezes ignoradas, e a obesidade é tratada como um simples reflexo de escolhas pessoais.
Nesse contexto, a regulamentação da mídia desempenha um papel crucial. Publicidades que incentivam o consumo de alimentos ricos em açúcar, sódio e gorduras impactam diretamente as escolhas alimentares, sobretudo de crianças e adolescentes. Incluir advertências nos anúncios é uma medida eficaz para informar a população sobre os riscos associados ao consumo excessivo desses produtos. Assim como as restrições impostas à publicidade de tabaco contribuíram para a redução de fumantes, a regulamentação da mídia pode atuar como ferramenta de prevenção e conscientização no combate à obesidade.
A regulamentação que exige a inserção de advertências em propagandas de alimentos com altos teores de açúcar, sódio e gorduras enfrenta uma controvérsia no Judiciário brasileiro. A disputa não gira essencialmente em torno de seu conteúdo ou finalidade, mas sim de uma questão formal relacionada à competência jurídica para estabelecer tais normas. Para a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), essa exigência fere o princípio da legalidade, uma vez que a Constituição prevê restrições publicitárias explícitas apenas para tabaco, bebidas alcoólicas e medicamentos. O debate chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.480.888, do Distrito Federal, que poderá definir os rumos dessa regulamentação. O relator da ação, ministro Cristiano Zanin, já votou a favor da validade da norma da Anvisa, destacando a importância de medidas voltadas à proteção da saúde pública. Entretanto, o julgamento está suspenso devido a um pedido de vista da ministra Cármen Lúcia. O caso deve ser retomado em 2025, com potencial para gerar desdobramentos relevantes tanto para a indústria alimentícia quanto para a regulamentação da publicidade de alimentos no Brasil.
[1] Bourdieu, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007
[2] REITSMA, Marissa B. et al. Smoking prevalence and attributable disease burden in 195 countries and territories, 1990–2015: a systematic analysis from the Global Burden of Disease Study 2015. The Lancet, v. 389, n. 10082, p. 1885-1906, 2017. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)30819-X/fulltext. Acesso em: 2 jan. 2025.
[3] MAGALHÃES, Simone Maria Silva. Consumidor terá mais informações na rotulagem nutricional de alimentos. Conjur, 14 dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-14/garantias-consumo-regramento-rotulagem-nutricional-alimentos. Acesso em: 2 jan. 2025.
[4] Apovian CM. Obesity: definition, comorbidities, causes, and burden. Am J Manag Care. 2016 Jun;22(7 Suppl):s176-85. PMID: 27356115
[5] Hamilton PJ, Nestler EJ. Epigenetics and addiction. Curr Opin Neurobiol. 2019 Dec;59:128-136. doi: 10.1016/j.conb.2019.05.005. Epub 2019 Jun 27. PMID: 31255844; PMCID: PMC6889055
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