Opinião

Litigância abusiva e sua regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça

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  • é advogado doutor em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) visiting scholar no Max Planck Institute for Public Law e autor dos livros Autoritarismo e Estado no Brasil (2016) e Processo Administrativo e Democracia (2007).

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  • é advogada com atuação em contencioso e arbitragem sócia fundadora do escritório Guedes Tavares Advogados.

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7 de janeiro de 2025, 13h14

Em 22 de outubro último, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou recomendação para a edição de ato normativo voltado à identificação e combate da litigância abusiva (Recomendação 159/2024, processo nº 6309-27.2024.2.00.000 — Recomendação). O tema não é novidade no CNJ, que já havia tratado da questão em outras oportunidades, a exemplo das Recomendações 127 e 129 [1], de 2022. Desta vez, porém, o conselho foi além e trouxe exemplos de sua caracterização e a indicação de medidas e protocolos à sua repressão e prevenção.

A edição da recomendação se dá no contexto de julgados diversos, que refletem também uma preocupação do Supremo Tribunal Federal com os limites da litigiosidade e da sobreutilização do Judiciário, como a ADI 6.792, que tratou do assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão [2]. No Superior Tribunal de Justiça, a questão é objeto do julgamento do Tema Repetitivo 1.198 para definir se o magistrado, ante a suspeita de litigância predatória, pode exigir a apresentação de documentos que fundamentem o pedido.

É direito das partes não serem importunadas por processos inúteis, temerários ou voltados para objetivos diversos da solução de uma pretensão resistida. Historicamente, pressupostos processuais e condições da ação serviram de critérios efetivos para evitar o uso indevido ou inútil da máquina judiciária, desmotivada também pelo risco de condenação da parte aventureira ao pagamento de verbas sucumbenciais.

A esses instrumentos soma-se a eventual — e atualmente remota — possibilidade de condenação da parte transgressora à reparação de danos decorrente de sua litigância de má-fé, sempre associada à quebra de deveres de lealdade processual. Suas origens remontam ao século 2, nos processos formulários do direito romano, quando o perdedor do processo poderia ser condenado a pagar a dívida acrescida da metade, caso sua resistência fosse manifestamente infundada, ou falsa[3].

Diferentes culturas jurídicas

O tema evoluiu de modo diverso em diferentes culturas jurídicas, até atingir o presente formato legislativo da litigância de má-fé, no qual uma sanção civil busca reprimir comportamentos processuais desviantes, tais como o falseamento de fatos, a busca por resultados ilícitos ou o retardamento do processo (CPC, artigo 80). A cláusula geral da boa-fé processual do artigo 5º e a previsão do artigo 142, ambos do CPC, também se prestam a combater a fraude ou a simulação de litígios.

Nos últimos anos, esses institutos têm mostrado claras limitações, tendo em vista a superação do paradigma do processo, isoladamente considerado, como cenário suficiente para a avaliação do padrão ético das partes. Afinal, litigantes (seus prepostos, representantes ou grupos) podem recorrer a processos judiciais aparentemente legítimos — se considerados individualmente — para, de modo coordenado, alcançar objetivos ilícitos [4]. A litigância abusiva envolve, portanto, comportamentos extraprocessuais, em uma atuação orquestrada, às vezes mediante o ajuizamento de diversas demandas que tenham o objetivo comum de atingir fins ilegítimos.

Na recente Recomendação nº 159/2024, o CNJ trata dessa atuação predatória das partes, além da caracterização da litigância abusiva como um todo, apontando exemplos, medidas repressivas e protocolos a serem adotados por juízes e tribunais.

Spacca

Talvez pela natureza multifacetada do fenômeno, a recomendação termina por assemelhar coisas muito distintas. Assim, alguns dos exemplos tratados parecem tutelar mais interesses arrecadatórios dos tribunais do que a repressão a condutas desleais das partes (Anexo A-1). Outros, podem ser recebidos como alguma desconfiança da atuação de advogados em defesa de seus clientes – o que levanta outras preocupações, inclusive quanto a prerrogativas funcionais (A-5 e A-7).

De outro lado, alguns dos exemplos são telegráficos, sem dar concretude ao que o conselho efetivamente busca caracterizar como abuso. Por exemplo, a instauração de processos múltiplos, destinada a “impedir o exercício de direitos fundamentais”, pode significar qualquer coisa (Anexo A-14), sem podermos perder de vista que o acesso à justiça é também uma garantia fundamental. E a multiplicidade de processos sobre um mesmo tema não é, necessariamente, indicativo de desvio ou má-fé. Não raro, comportamentos ilícitos de grandes agentes econômicos alcançam múltiplas pessoas ou comunidades, tal como se observa em casos que envolvam danos ambientais, violações a direitos de consumidores ou usuários de serviços públicos. Nesses casos, a multiplicação de processos não é abuso de seus autores, mas resultado de insuficiências regulatórias do Estado sobre os réus.

Calibragem seletiva do ônus da prova

Se o comportamento abusivo das partes pode se manifestar de múltiplas maneiras, é natural que as medidas para a sua repressão sejam também múltiplas (Recomendação, Anexo B). Isso não significa aceitar qualquer resposta do Judiciário frente à suspeita — ou mesmo comprovação — de desvios das partes ou de seus representantes. Preocupa, por exemplo, a sugestão de uma “calibragem seletiva” do ônus da prova, mesmo em matéria de consumo (Anexo B-5). Supostos abusos no direito de demandar não devem servir de fundamento para arbitrariedades: o combate à litigância abusiva não pode se dar em prejuízo de garantias fundamentais, tais como contraditório, direito à prova e sua contestação, segurança jurídica e previsibilidade do processo e de suas decisões. Ao suspeito de abuso processual também se aplica a Constituição.

O grande ausente na recomendação é, ainda, o Estado brasileiro que, em suas múltiplas esferas de atuação, constitui o maior cliente do Judiciário nacional. Não são tratados abusos diariamente cometidos em nome do erário — que já conta com inúmeras prerrogativas legais —, seja como réu, seja como autor. Não raro, testemunha-se a instauração de processos administrativos e judiciais sucessivos sobre o mesmo tema (tomada de contas, inquéritos, processos de responsabilização, ações de improbidade ou fundadas na Lei Anticorrupção), em uma injustificável multiplicação de procedimentos que sequer enfrentam desincentivos básicos como a condenação em ônus sucumbenciais.

Em outros casos que atingem inúmeras pessoas ou empresas, a administração abusa de presunções e ficções para se recusar a reconhecer direitos legítimos, ou impor cobranças sabidamente indevidas, impondo aos particulares o custoso recurso ao Judiciário. Nada disso é mencionado na normatização do CNJ, mas talvez sejam estes temas para outro estudo ou, quem sabe, outra recomendação do conselho.

Por fim, para além dos méritos e insuficiências da recomendação, é fundamental que o Judiciário se ocupe da litigância predatória mediante sua atividade típica: a jurisprudência. Assim, forma-se uma massa crítica mais clara quanto ao alcance do conceito e suas consequências. O debate ainda está em desenvolvimento e o julgamento próximo do Tema Repetitivo 1.198 no âmbito do STJ poderá permitir um maior amadurecimento da matéria [5].

 


[1] Voltada especificamente para demandas que pudessem comprometer os projetos de infraestrutura qualificados pelos Programas de Parcerias de Investimentos (PPI), previsto na Lei nº 13.334/2016.

[2] A solução encontrada pelo STF foi determinar a reunião das diversas demandas ajuizadas para julgamento conjunto no foro de domicílio do réu, em interpretação conforme ao artigo 53 do CPC (STF, Tribunal Pleno, Min. Luís Roberto Barroso, ADI nº. 6792/DF, julgado em 22.05.2024).

[3] APARECIDO DE ANDRADE, Valentino. Litigância de Má-Fé. São Paulo: Dialética, 2004.

[4] TEMER, Sofia. Ações coordenadas, demandas opressivas e litigância predatória. https://www.jota.info/artigos/acoes-coordenadas-demandas-opressivas-e-litigancia-predatoria

[5] Leading case no STJ REsp nº. 2.021.665/MS, incluindo na pauta da Corte Especial para o dia 19.02.2025 até a conclusão deste artigo.

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