Retrospectiva do Direito Ambiental em 2024: o clima em transe
6 de janeiro de 2025, 19h16
Como não poderia deixar de ser, o ano de 2024 foi extremamente movimentado em matéria de Direito Ambiental, seja no plano nacional ou no internacional. Entretanto, não existe um ou dois fatos que se sobreponham de forma absoluta aos demais, de forma que, ambientalmente falando, o ano é marcado pela pulverização de acontecimentos. A despeito disso, é possível apontar uma dimensão cada vez maior do problema do clima, tendo em vista a instabilidade climática e a inegável intensificação dos desastres naturais.
Seca na Amazônia
A Amazônia chamou a atenção do mundo ao passar por uma das piores secas, senão a pior, de sua história. As cidades e comunidades ficaram isoladas haja vista a perda da navegabilidade de muitos igarapés e rios, comprometendo a cultura e a sobrevivência local. Os graves impactos causados à agricultura, à biodiversidade, à pesca e ao estilo de vida das populações tradicionais, dentre outros, deixam claro a necessidade de a região promover políticas públicas efetivas de adaptação e mitigação às mudanças climáticas, com os adequados financiamentos e controles pertinentes.
Queimadas na Amazônia e no Pantanal
O crescimento das queimadas na Amazônia e no Pantanal no ano de 2024, que ganhou dimensão planetária, contribui para o aumento das emissões dos gases de efeito estufa, além de prejudicar a biodiversidade. Esse fenômeno está relacionado diretamente à seca, embora não se deva descartar os incêndios criminosos. A forte repercussão resultou na edição da Lei 14.944/2024, que instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, e na alteração do Decreto 6.514/2008 pelo Governo Federal, que criou tipos administrativos próprios para o assunto. Entretanto, a mudança legislativa precisa ser acompanhada de verbas e estruturas administrativas capazes de garantir o cumprimento das normas.
Enchentes no Rio Grande do Sul
Entre abril e maio de 2024, o Rio Grande do Sul registrou chuvas intensas em cerca de 450 municípios, com cerca de 200 mortos e 30 desaparecidos, com impacto direto sobre quase um milhão de pessoas. Boa parte da infraestrutura do Estado ficou seriamente comprometida, sem falar no rastro deixado na saúde com a proliferação de síndromes respiratórias e doenças como diarreia, dengue e leptospirose. A lição deixada é que de agora em diante o planejamento urbano deve sempre se preparar para os fenômenos climáticos extremos.
Nova meta climática do Brasil
Na COP-29, ocorrida em Baku/Azerbaijão, o governo brasileiro apresentou a sua nova meta climática: a Contribuição Nacionalmente Determinada (conhecida por NDC, da sigla em inglês Nationally Determined Contributions) assumiu o compromisso de diminuir as emissões liquidas de GEE de 59% a 67% até 2035 quando comparado aos níveis de 2005, o que equivaleria a algo em torno de 850 milhões a 1,05 bilhão de toneladas de CO₂ equivalentes.
Por outro lado, parece que o país ainda não definiu claramente a sua política para a questão, tendo em vista os notórios desentendimentos entre o Ministério do Meio Ambiente e o das Minas e Energia.
Eleição de Trump nos EUA e sua repercussão sobre a Política Climática Internacional
A nova eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, em novembro de 2024, tem despertado preocupação quanto ao futuro da política climática internacional. Conhecido por seu envolvimento com a indústria dos combustíveis fósseis e pelo seu negacionismo climático, Trump já preparara a saída do Acordo de Paris e a flexibilização de restrições ambientais e do clima, como já aconteceu no seu primeiro governo. Por se tratar da maior economia do planeta e do segundo maior gerador de gases de efeito estufa, é óbvio que isso terá grande repercussão sobre o futuro do clima. Há que se destacar que, desde então, diversas empresas e instituições financeiras têm se retirado de alianças empresariais voltadas à proteção climática.
A preparação do Brasil para a COP-30
Embora já tenha sido palco de grandes eventos ambientais internacionais, como a ECO-92 e a Rio+20, pela primeira vez o Brasil sediará uma conferência das Partes da Convenção Quadro sobre mudanças do clima. A COP-30 será realizada em Belém, no Estado do Pará, em plena Amazônia Legal. O município está um verdadeiro canteiro de obras, a despeito das críticas à falta de infraestrutura e das frustradas tentativas de transferir a conferência para as cidades do Rio de Janeiro ou de São Paulo, de forma que nessa quadra histórica Belém se consolida como capital ambiental do país. Se as expectativas são enormes em razão do fracasso da COP-29 e do aumento da instabilidade climática e intensificação dos desastres naturais, há que se reconhecer que a eleição de Trump jogou uma certa sombra sobre o evento.
A Nova Lei do Mercado Regulado de Carbono no Brasil
A Lei 15.042/2024, que foi sancionada e entrou em vigor em dezembro de 2024, instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) e estabeleceu o mercado regulado de carbono no Brasil, atendendo a uma demanda nacional e internacional a respeito do assunto. O objetivo é fomentar uma econômica de baixo carbono, em obediência à Lei 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC) e aos compromissos internacionais climáticos assumidos pelo país, dos quais se destaca o Acordo de Paris. Os setores industriais, de transporte e de energia deverão compensar as suas emissões com a aquisição de créditos de carbono, inobstante falte ainda a regulamentação da norma e a definição de metodologias. Apesar de ser um indiscutível avanço, lamenta-se que o agronegócio tenha ficado de fora, uma vez que as emissões brasileiras em sua maior parte têm origem na alteração do uso da terra, com especial destaque para a pecuária primária. De toda forma, isso se deu em função da força política da bancada do agronegócio, de maneira que dificilmente a lei teria sido aprovada de outra forma, cabendo reconhecer o bom trabalho da senadora Leila Barros (PDT-DF) a frente da relatoria do projeto de lei.
A COP-16 da biodiversidade
A COP-16 da Biodiversidade ocorreu em Cali, na Colômbia, entre os dias 16/10 1º/11 de 2024. Ratificando o Marco Global de Biodiversidade firmado em 2022, na conferência do ano passado os países envolvidos assumiram o compromisso de proteger ao menos 30% das áreas terrestres e 30% das áreas marinhas (conhecido como 30×30), bem como de reverter o panorama atual de degradação até o ano de 2030. Entretanto, o compromisso de criar e de manter áreas ambientalmente protegidas esbarra na falta de recursos financeiros e de mecanismos claros, tendo sido essa a grande lacuna do evento. Nem é preciso destacar a relevância do tema para o Brasil, que é o detentor da maior biodiversidade do planeta, e que deverá ser o maior beneficiado com a implementação dessas políticas.
Diminuição da desmatamento da Amazônia
Houve uma redução de 45,7% na desmatamento do bioma amazônico, o que se deu em razão da retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e da intensificação da fiscalização. O Pará apresentou maior redução entre agosto de 2023 e julho de 2024, e a área sob alerta é a menor da série histórica começada em 2016. Obviamente, o desafio é monumental e exige ações constantes haja vista a complexidade socioambiental e a vasta extensão geográfica da Amazônia Legal, a qual corresponde a quase 60% do território nacional.
Lei do Fogo
A Lei 14.944/2024 institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo e estabeleceu diretrizes para o uso controlado do fogo em áreas rurais no Brasil. Além de instituir os requisitos formais e técnicos para a autorização para a queima controlada, essa norma trouxe penalidades mais adequadas e duras para os infratores, tanto na esfera cível quanto criminal. Cuida-se de lei geral, que estabeleceu pela primeira vez uma verdadeira política pública sobre o assunto, disciplinando assim os princípios, objetivos, órgãos e responsabilidades. Isso foi a resposta do legislador às queimadas ocorridas no país, especialmente na Amazônia e no Pantanal.
Alteração no Decreto 6.514/2008
Em setembro o Decreto 12.189/2024 modificou o Decreto 6.514/2008 (processo, infrações e sanções administrativas em matéria ambiental) O decreto é usado diretamente por muitos estados e municípios, sem falar nos que simplesmente a transcreveram ou adaptaram para a sua legislação própria, sendo possível afirmar que essa norma rege o processo administrativo ambiental da maioria dos entes federativos brasileiros. As alterações endureceram o valor das multas e criaram tipos administrativos específicos para as queimadas e o uso indevido do fogo, sendo também uma resposta às queimadas na Amazônia e no Pantanal.
Avanço da agenda ESG
O ano de 2024 foi um marco no avanço da agenda ESG (Environmental, Social and Governance) no Brasil e no mundo, sendo indiscutível a consolidação do ambiente regulatório no que diz respeito às questões ambientais, climáticas, sociais e de governança corporativa nos mais variados segmentos econômicos. A União Europeia editou a Diretiva 1.760/2024, da Corporate Sustainability Due Diligence Directive (CS3D), que dispõe sobre regras e diretivas de sustentabilidade e padrões ESG. O próprio Acordo União Europeia-Mercosul possui cláusulas de sustentabilidade corporativa.
No plano nacional, cumpre ressaltar as Resoluções 5.193/2024 e 5.185/2024 do Conselho Monetário Nacional que versam sobre o dever das instituições financeiras em matéria de prevenção a danos e riscos ecológicos, e as Resoluções CVM 217/2024 e 218/2024, que tratam dos Requisitos Gerais para Divulgação de Informações Financeiras relacionadas à Sustentabilidade emitido pelo Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS), e de Divulgações Relacionadas ao Clima. Também merecem destaque as Norma Brasileira de Contabilidade NBC TDS 1, que estabelece os requisitos gerais para divulgação de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade, e NBC TDS 2, que aprovou a NBC TDS 02 – divulgações relacionadas ao clima, ambas editadas em 17 de outubro.
Pouca discussão sobre meio ambiente e clima nas eleições municipais
O ano de 2024 foi marcado pelas eleições municipais no Brasil, oportunidade em que o país escolhe 5.569 prefeitos e 54.462 vereadores. Apesar de ser a eleição mais capilarizada de todas, o assunto meio ambiente esteve muito longe do destaque necessário, mesmo sendo um tema bastante voltado ao interesse local. A questão do clima em si, por sua vez, mereceu ainda menos atenção, sendo evidente a falta de ligação entre a atuação municipal e a urgência das demandas ambientais e climáticas. A prova disso é que mesmo nas cidades gaúchas castigadas pelas fortes chuvas as evidentes falhas da gestão municipal não pareceram ter tido influência alguma no pleito haja vista o grande número de reeleições.
Permanência e agravamento dos conflitos bélicos pelo mundo
O ano passado também foi marcado pela permanência e agravamento dos conflitos bélicos em vários lugares do planeta, gerando um quadro internacional de instabilidade sem precedentes nas últimas décadas. O destaque maior foi a Guerra da Ucrânia, cuja invasão russa está para completar três anos, e o conflito Israel x Hamas, que resultou na destruição da infraestrutura de Gaza e vitimou muitos civis, inclusive crianças. A gravíssima guerra no Sudão prossegue com cerca de 20 milhões de pessoas necessitando de auxílio humanitário e com aproximadamente 10,2 milhões de pessoas submetidas a deslocamento forçado. Afora o consequente aumento do número de vítimas, é preciso considerar também o dano ambiental e climática que toda guerra produz.
O ano mais quente no Brasil e no mundo
2024 foi considerado o mais quente já registrado na história do país e do planeta, sendo esse o acontecimento ambiental mais relevante de 2024. De acordo com o Serviço de Mudança Climática do Copernicus, da União Europeia, a temperatura média planetária ultrapassou pela primeira vez 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Inclusive, os dados da Nasa apontaram que o dia 22 de julho foi o de maior calor da história do planeta. O Brasil sofreu o ano mais quente desde que começaram as medições, há mais de 6 décadas, tendo atingido uma temperatura média anual de 25,02°C. Infelizmente, para quem acompanha o fenômeno das mudanças climáticas isso não é uma surpresa, uma vez que esse crescimento já vem sendo observado nos últimos anos, apenas confirmando os prognósticos científicos.
O meio ambiente segue em alta no STF
Na ADPF 760 e na ADO 54 o STF determinou que a União implementasse medidas efetivas para reduzir o desmatamento na Amazônia Legal para 3.925 km² anuais até 2027 e alcançar desmatamento ilegal zero até 2030. Apesar de não reconhecer o estado de coisas inconstitucional, nas duas ações citadas o STF impôs ao governo federal o “compromisso significativo” de redução do desmatamento da Floresta Amazônica de acordo com um plano de execução a ser apresentado e executado pelos órgãos envolvidos. O Congresso Nacional foi obrigado a abrir crédito extraordinário no exercício financeiro de 2024 para assegurar as ações necessárias, de forma que a lógica dos processos estruturais em questões ambientais e climáticas passa a ser cada vez mais a regra no STF.
No julgamento dos embargos de declaração da ADC 42 e das ADIs 4901, 4902, 4903 e 4937, que têm por objeto a análise da constitucionalidade do Código Florestal (Lei 12.651/2012), o STF decidiu por unanimidade que é possível fazer a compensação de reserva legal no mesmo bioma. Com isso, foi deixado de lado o conceito de “identidade ecológica” previsto no acórdão anterior, o qual não tinha base na lei, eliminando assim uma imprecisão conceitual geradora de insegurança jurídica que estava travando essa modalidade de compensação.
No julgamento do ARE 1.514.669 o STF decidiu que estados e municípios podem deliberar sobre a sujeição de atividades ao licenciamento ambiental, complementando a legislação federal. Além de apontar o caráter exemplificativo das listas de empreendimentos efetiva ou potencialmente poluidores, essa decisão consolida a autonomia dos entes estaduais e municipais em matéria ambiental, o primeiro na esfera regional e o segundo na esfera local.
Crescimento do uso de energias renováveis
O ano de 2024 marcou um crescimento significativo das energias renováveis no Brasil e no mundo, com especial destaque para as matrizes eólica e solar, não obstante o avanço das biomassas e da energia geotérmica. É uma tendência que vem se acentuando nos últimos anos, e que tem sido liderada pela China, ainda que muitos países estejam, em um grau maior ou menor, correndo atrás da diversificação e da limpeza energética. Na mesma proporção, tem surgido estudos sobre os impactos negativos decorrentes da expansão das energias renováveis, embora sem a intenção de invalidá-las.
Lei do Hidrogênio Sustentável
A Lei 14.948/2024 instituiu o marco legal do hidrogênio de baixa emissão de carbono, dispôs sobre a Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, criou incentivos para essa indústria, estabeleceu o Regime Especial de Incentivos (Rehidro) e o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC). Essa norma visa estimular a indústria do hidrogênio sustentável no Brasil, buscando atrair investimentos e promover o desenvolvimento tecnológico, por meio do estabelecimento de uma política pública específica sobre o assunto.
Considerações finais
Realmente, por ter sido o ano mais quente da história, 2024 talvez tenha sido o ano em que se atingiu o ponto sem retorno, uma vez que a temperatura média planetária ultrapassou pela primeira vez 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Entretanto, é necessário ser cauteloso, pois a “crise climática” pode ser uma bela desculpa para incompetência e descaso. Ela, embora seja real, não explica a falta de verbas, a falta de equipes e a falta de preparação para enfrentá-la. É preciso reconhecer que tais problemas são transversais às mais diferentes administrações e ideologias.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!