As redes sociais e o condor
6 de janeiro de 2025, 8h00
O uso da internet e a propagação das redes sociais favoreceram a politização dos fatos. A facilidade em apresentar fatos e a sua instantânea divulgação para milhares de pessoas conferiu grande poder de influência aos fatos gerais, transformando-os em inconscientes elementos aglutinadores das pessoas em grupos.
Cada vez mais os usuários têm postado afirmações em que acreditam, mas que, inconscientemente, são determinadas pela sua cultura e valores. Aqueles que se identificam com certos valores e, consequentemente, com grupos, tendem a recepcionar os fatos de modo particular, colorindo a realidade com as suas próprias tintas.
As pessoas se organizam em grupos para, inconscientemente, adquirirem sensação de pertencimento e, desse modo, assumirem visibilidade e dignidade numa sociedade que, cada vez mais, tende a engolir a individualidade. Isso certamente já era assim antes da era digital e sempre se manifestou de modo claro, por exemplo, nas torcidas dos times de futebol.
O mesmo ocorre diante das ideologias, partidos políticos e candidaturas a cargos públicos de maior expressão. Ter um time de futebol, uma ideologia ou um partido é algo que, para muitos, traz um sentimento de enobrecimento e acolhimento, fazendo-os compartilhar não só de rituais comuns, mas também de responsabilidades imaginárias. Na verdade, pertencer e compartilhar são pontos de uma única lógica, pois se sentir responsável por uma mesma causa, ainda que inconscientemente, é “fazer parte”, tornando a pessoa mais suscetível a assumir compromissos (nem sempre racionais) em proveito e para o bem do grupo.
É por meio do desenrolar dessa linha que se torna compreensível o motivo pelo qual as pessoas possuem prazer em compartilhar mensagens que endossam posições que resguardam e fortalecem a sua relação com os membros do seu grupo. As discussões nas redes se fundam nas mesmas fantasias e incompreensões que sempre estiveram à base dos conflitos sociais, desde muito.
Ao se sentirem pertencentes e compromissados, os usuários tendem a compartilhar alegações factuais que reforçam a sua ligação com determinados valores ou ideias, não importando a sua correspondência com a realidade. Do mesmo modo que o torcedor do time de futebol cujo jogador caiu na área do adversário sempre reclama pênalti, os usuários das redes sociais fazem alegações impelidos por uma sensação de pertencimento.
Allison Larsen, no artigo intitulado “Constitutional Law in an Age of Alternative Facts”, fala em “my team-your team facts” para designar os fatos que, diante das distorções geradas pela internet, assumem versões antagônicas sobre temas que envolvem ideologia ou posições partidárias, como, por exemplo, mudança climática e eleições.
Os “my team-your team facts” correspondem a um confronto surgido a partir de sentimentos que não se preocupam com a realidade. As pessoas afirmam os fatos ou aceitam as alegações factuais por conta da inconsciente influência que os seus valores ou cultura exercem sobre elas. Os usuários são levados a alegar ou a respostar mensagens para manterem suas relações com os membros do grupo ou para se sentirem a ele pertencentes.
A verdade
Nas redes sociais a verdade não é negada. Ela apenas possui uma importância secundária. Tome-se como exemplo o caso das leis estadunidenses que, nas últimas décadas, exigiram carteira de identidade de eleitor. As leis se basearam no fato de que a carteira de eleitor evitaria fraudes eleitorais. Muitas dessas leis foram impugnadas sob o fundamento de que violariam o direito fundamental ao voto.
A discussão polarizou-se entre republicanos e democratas. Enquanto os primeiros disseram que a carteira seria importante para evitar fraudes, os democratas afirmaram que a sua exigência suprimiria direitos das minorias, pois essas teriam maior dificuldade em ter carteira com foto. Nos parlamentos, verificou-se que, enquanto 95% dos representantes republicanos votaram a favor da carteira de eleitor, apenas 2% dos democratas restaram convencidos da sua importância. Nas Cortes, os juízes se dividiram quase tão radicalmente.
É possível acreditar que os Juízes se basearam, com sinceridade, em seus entendimentos sobre o direito, mas de uma maneira que refletiu influências subconscientes e extralegais em suas percepções sobre a legalidade. Assim, os juízes republicanos, espectadores da Fox News, “honestamente acreditaram” que a fraude eleitoral é crescente e deve ser tratada mediante legislação corretiva, enquanto os juízes democratas, que assistem à MSNBC, “acreditaram com honestidade” que a fraude eleitoral é um mito criado pelos republicanos para excluir jovens, pobres e grupos minoritários da participação nas eleições [1].
Tem-se aí dois fatos que se tornaram verossímeis pela intensa participação dos simpatizantes aos partidos nas redes sociais. Esses fatos não são falsos. A carteira de eleitor constitui instrumento que pode evitar a fraude eleitoral, assim como a sua exigência também pode, ainda que minimamente, tornar-se responsável pela não participação nas eleições.
Diante disso, como é óbvio, não se pode atribuir qualquer responsabilidade aos usuários da internet. Há de se perceber que a manifestação pública, em qualquer lugar, revela integração e comprometimento, de modo que as verdadeiras razões da participação, na praça e na internet, são secundárias.
Não se quer dizer, com isso, que a proliferação de inverdades não é um problema. O que se está a dizer é que os fatos, diante das discussões sensíveis ao pluralismo democrático e à diversidade dos grupos, não podem ser submetidos às metodologias das ciências que se servem das pesquisas experimentais e, particularmente, que a censura não pode ser vista como uma forma adequada para privilegiar a verdade dos fatos no Estado democrático de Direito.
Proibir as pessoas de falar nas redes sociais, especialmente diante de fatos discutidos a partir do sentimento de pertencimento a partidos, grupos e ideologias, não apenas nada tem a ver com a busca da verdade, mas a espanta, impedindo que se possa chegar a uma solução compatível com a democratização do debate e com os direitos de liberdade de expressão e manifestação. Tiranizar a participação nas redes sociais é tão antidemocrático quanto proibir o exercício do direito de manifestação em praças públicas.
Caso a liberdade para a alegação desses fatos pudesse ser arrancada das pessoas, a autoridade estaria em condições de escolher o fato amoldado às suas preferências pessoais, como aconteceu no caso das carteiras eleitorais — em que os juízes estadunidenses votaram de acordo com os partidos responsáveis pelas suas investiduras.
Admitir a censura diante dos fatos que podem ser legitimamente vistos de forma diferente pelas pessoas é gravíssimo. Censurar aquele que tem uma visão moral acerca de um fato é negar o pluralismo democrático, permitindo-se que as autoridades, segundo as suas convicções pessoais, estabeleçam o valor que deve imperar na sociedade. Além do mais, os fatos discutidos entre os simpatizantes de grupos, partidos ou ideologias não têm qualquer razão para serem escondidos, pois devem contar com o direito de liberdade de expressão para que possam ser esclarecidos.
Os juízes, quando diante dos fatos que importam para a solução de um simples conflito entre João e José, não precisam se preocupar com a verdade dos fatos que dizem respeito ao mundo ou à vida das pessoas. Esses fatos, no entanto, assumem grande importância quando o Judiciário realiza o controle de constitucionalidade das leis, ou seja, o controle que exige uma interpretação que não pode deixar de considerar os mesmos fatos que importam ao Legislador.
A alegação de que as eleições foram fraudadas por falta de carteira de identidade, caso pudesse ser censurada pelos administradores de redes sociais, teria impedido a ampla deliberação popular, legislativa e judicial sobre o tema nos Estados Unidos. Teria obstado a discussão de um tema importante para a democracia, inibido o direito de as pessoas falarem e impedido os bons juízes de demonstrarem que o Judiciário pode legitimamente cumprir o seu papel perante a sociedade.
Embora um Juiz possa ser simpático a um partido ou ideologia, ele obviamente não ocupa o lugar de um dos membros de uma rede social ou de um grupo que empunha bandeiras em praça pública. Ele tem uma especial responsabilidade, que deriva do locus de poder que ocupa e das consequências dos seus pronunciamentos sobre a vida das pessoas e do país.
Deixá-lo decidir como um torcedor de futebol apenas porque não está em condições psicológicas para enxergar a realidade é obviamente isentá-lo da responsabilidade que condiciona a legitimidade do exercício da sua função. Assim, admitir o que se poderia ver como algo meramente curioso na história da jurisprudência dos Estados Unidos constitui uma infantilização dos Juízes e uma imperdoável falta de respeito ao Direito e à população.
Se a carteira de identidade não poderia alterar o resultado das eleições, isso obviamente não quer dizer que o Judiciário poderia declarar a inconstitucionalidade da lei que a exigiu. O fim da lei era claramente adequado e a medida legislativa nada tinha de excessivo e obviamente não era desproporcional diante do direito ao voto. Isso era o que bastava para o Judiciário não interferir sobre a decisão legislativa.
Tudo isso significa que, a despeito de os fatos serem contados a partir das visões pessoais dos usuários das redes sociais, os juízes não apenas sempre têm condições e responsabilidade de bem decidir, como não podem esquecer que a praça pública existe para conter a autoridade e favorecer a democracia. Afinal, as redes sociais são do povo, assim como o céu é do condor!
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
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[1] Allison Orr Larsen, Constitutional Law in an Age of Alternative Facts, New York University Law Review, v. 93, 2018, p. 210-211.
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