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O que está em jogo na nova regulação da CMED? Diálogo, transparência e desafios

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  • é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

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5 de janeiro de 2025, 8h00

O diálogo entre regulador e setor regulado é amplamente reconhecido como uma das abordagens mais modernas e eficientes para a regulação [1]. Essa interação, fundamentada em princípios de transparência, participação e cooperação, fortalece a legitimidade das decisões administrativas e promove a adequação das normas às realidades do mercado. No Brasil, a importância desse diálogo se reflete em diversas iniciativas regulatórias, que têm buscado inspiração em experiências internacionais bem-sucedidas. Estudos indicam que os países que adotam processos regulatórios inclusivos, como Estados Unidos e União Europeia, alcançam maior previsibilidade e aceitação de suas normas [2].

No âmbito do pragmatismo jurídico aplicado ao Direito Administrativo e Regulatório, o diálogo se torna um pilar central. Essa abordagem privilegia soluções práticas e adaptáveis, focadas nos resultados efetivos das normas em vez de teorias abstratas [3]. No contexto regulatório, isso significa criar regras que equilibrem eficiência e inclusão, garantindo que as vozes dos regulados sejam ouvidas e consideradas. A criação de espaços institucionais para o diálogo, como audiências públicas e consultas participativas, reflete essa filosofia e é essencial para fortalecer a confiança entre as partes envolvidas.

A busca por uma regulação mais eficiente e participativa no Brasil também encontra respaldo em princípios de boas práticas regulatórias [4]. Por exemplo, a análise de impacto regulatório (AIR), introduzida cm status de norma legal no país pela Lei da Liberdade Econômica, trouxe novos instrumentos para avaliar, ex ante, as consequências de medidas regulatórias [5]. Essas ferramentas reforçam a necessidade de um ambiente regulatório que privilegie a transparência e o engajamento dos atores sociais, elementos que são essenciais para promover o desenvolvimento econômico e a confiança no sistema regulatório. O conceito de soft regulation, por exemplo, enfatiza a importância de intervenções menos coercitivas e mais focadas na indução de comportamentos desejáveis, o que pode ser um caminho complementar ao modelo tradicional de comando e controle [6].

Na indústria da saúde, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) é o órgão interministerial responsável por regular o mercado de medicamentos no Brasil, com competências que incluem a fixação de preços teto e a fiscalização de infrações econômicas nesse setor. Criada para assegurar o equilíbrio entre o acesso da população a medicamentos e a sustentabilidade da indústria farmacêutica, a CMED desempenha um papel central na política de saúde pública. Além disso, a CMED deve equilibrar os interesses econômicos das empresas do setor com as necessidades de saúde pública, o que exige um diálogo constante e uma regulação flexível e ajustada às demandas sociais.

O Regimento Interno da CMED, aprovado pela Resolução CMED nº 3, de 2003 (e já com algumas atualizações posteriores), organiza as competências, estrutura e funcionamento deste órgão. Ele define os objetivos da CMED, que incluem a regulação econômica do mercado de medicamentos com vistas a promover a assistência farmacêutica à população. O regimento também estabelece os critérios para fixação e ajuste de preços de medicamentos, regula as margens de comercialização e prevê medidas para assegurar o efetivo repasse das alterações de carga tributária aos preços dos medicamentos.

A estrutura da CMED é composta pelo Conselho de Ministros, pelo Comitê Técnico Executivo (CTE) e pela Secretaria-Executiva. O Conselho de Ministros é a instância máxima de deliberação, enquanto o CTE atua como núcleo executivo responsável por propor critérios regulatórios e deliberar sobre ajustes de preços e outras questões técnicas. A Secretaria-Executiva, por sua vez, desempenha papel administrativo, sendo vinculada à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A atuação integrada dessas instâncias busca proporcionar um equilíbrio entre agilidade e controle nos processos decisórios, algo que as propostas de modernização do Regimento Interno pretendem aprimorar.

Participação e transparência

A recente proposta de modernização do Regimento Interno busca promover maior eficiência e previsibilidade nos processos administrativos, além de reforçar a segurança jurídica nas deliberações da CMED [7]. Entre os objetivos apresentados na audiência pública de 3 de dezembro de 2024, destacam-se a atualização das competências dos órgãos que compõem a CMED, a otimização da governança administrativa e a implementação de medidas de transparência ativa, como a publicização de documentos e relatórios anuais de atividades e a introdução de novas dinâmicas decisórias.

Entretanto, algumas mudanças propostas levantam questionamentos significativos. Por exemplo, a redução da participação do Conselho de Ministros pode enfraquecer o controle de qualidade das decisões, especialmente em temas que demandam uma análise mais ampla e interdisciplinar. A exclusão do Conselho de Ministros como instância julgadora em casos omissos, por exemplo, visa conferir maior celeridade ao processo decisório. Contudo, tal alteração pode comprometer a legitimidade das decisões, uma vez que retira do órgão colegiado sua função de revisar questões que envolvem interpretações mais amplas. Essa mudança, embora racionalizada como uma busca por agilidade, pode gerar insegurança jurídica para os atores regulados, especialmente em situações que envolvam disputas complexas.

Outras medidas, como a previsão de julgamentos em bloco e deliberações virtuais, refletem a intenção de imprimir agilidade aos procedimentos administrativos. No entanto, tais inovações precisam ser acompanhadas por garantias robustas de transparência e fundamentação das decisões, para evitar a percepção de arbitrariedade. A introdução de regramentos para edição de enunciados pelo CTE também demanda atenção. Sem uma consulta pública efetiva, essas normativas podem refletir apenas a visão do regulador, ignorando as nuances e as dificuldades práticas enfrentadas pelo setor regulado. O risco de criar “jurisprudência regulatória” sem diálogo efetivo pode comprometer a previsibilidade e a equidade nas relações regulatórias.

Embora a modernização prometa avanços, é fundamental reconhecer as limitações do processo participativo até o momento. O prazo para o envio de contribuições escritas se encerrou no último dia 12 de dezembro, mas a ausência de divulgação integral da minuta do novo Regimento Interno comprometeu a capacidade dos interessados de oferecer contribuições substanciais.

Esse déficit de transparência não apenas enfraquece a consulta pública como mecanismo democrático, mas também reforça a crítica de que audiências e consultas são, muitas vezes, utilizadas como formalidades para legitimar decisões já tomadas. A experiência internacional aponta que processos regulatórios mais eficazes são aqueles que incorporam feedback substantivo e permitem ajustes significativos com base nas contribuições recebidas. Nesse sentido, tem sido destacada a importância de análises de impacto regulatório aprofundadas e da inclusão de todos os atores interessados durante as fases iniciais de formulação de normas [8]. Essa abordagem aumenta a legitimidade e reduz a resistência dos setores impactados.

Para que a modernização do Regimento Interno da CMED alcance seus objetivos de maneira legítima e eficaz, é imprescindível que o processo regulatório seja amplamente participativo e transparente. Medidas como a realização de consultas públicas verdadeiramente inclusivas, a criação de fóruns permanentes de diálogo com o setor regulado e a divulgação de análises de impacto regulatório podem fortalecer a legitimidade das decisões. Isso inclui a revisão de propostas que enfraquecem garantias processuais e a implementação de mecanismos mais inclusivos para a elaboração de enunciados e normativas. Além disso, é essencial assegurar que a celeridade não seja alcançada às custas da qualidade das decisões e da confiança dos atores regulados no sistema. Propostas como a criação de plataformas digitais para facilitar o acompanhamento de processos e a ampliação da acessibilidade às reuniões decisórias podem ser um caminho promissor.

A modernização do Regimento Interno da CMED representa uma oportunidade única para aprimorar a regulação do setor farmacêutico no Brasil. Contudo, isso só será alcançado com um processo transparente, participativo e alinhado aos princípios constitucionais. Ao abordar as fragilidades e propor caminhos concretos, espera-se contribuir para uma regulação mais justa, eficiente e segura para todos os envolvidos. É crucial que essa modernização não apenas atualize as normas, mas também fortaleça a confiança mútua entre regulador e regulados, garantindo uma governança regulatória que sirva como modelo para outros setores.

 


[1] MAHON, Ana Luiza Lima. Boas práticas regulatórias como fonte de confiança institucional no contexto das agências reguladoras independentes no Brasil. 2023. 179 f., il. Dissertação (Mestrado Profissional em Administração) — Universidade de Brasília, Brasília, 2023.

[2] CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Boas Práticas Regulatórias: Coletânea de experiências e pesquisas aplicadas em regulação sobre construção de capacidade institucional das entidades reguladoras no Brasil. Brasília: Controladoria-Geral da União, 2024.

[3] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Uma nova coluna para um novo Direito Administrativo. Consultor Jurídico, São Paulo, 16 maio 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-16/publico-pragmatico-coluna-direito-administrativo/. Acesso em: 13 dez. 2024.

[4] AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS; UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Manual de Boas Práticas Regulatórias. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/arq/manual-boas-praticas-regulatorias.pdf. Acesso em: 13 dez. 2024.

[5] MENEGUIN, Fernando B.; SAAB, Flavio. Análise de Impacto Regulatório: perspectivas a partir da Lei da Liberdade Econômica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Mar. 2020 (Texto para Discussão nº 271). Disponível em: https://www.senado.leg.br/estudos. Acesso em: 13 dez. 2024.

[6] MENEGUIN, F. B.; MELO, A. P. A. de. Soft Regulation: Formas de Intervenção Estatal para Além da Regulação Tradicional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Fevereiro 2022 (Texto para Discussão nº 307). Disponível em: https://www.senado.leg.br/estudos. Acesso em: 13 dez. 2024.

[7] Informações sobre a audiência e consulta públicas estão disponíveis em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/medicamentos/cmed/reunioes-CMED/cte/planejamento-estrategico

[8] CASA CIVIL. SUBCHEFIA DE ANÁLISE E ACOMPANHAMENTO DE POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS. Diretrizes gerais e guia orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório – AIR. Brasília: Presidência da República, 2018. Disponível em: < https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/downloads/diretrizes-gerais-e-guia-orientativo_final_27-09-2018.pdf/view>. Acesso em: 13 dez. 2024.

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