O movimento anti-ESG nos EUA: implicações para o direito
5 de janeiro de 2025, 7h06
“(…) a reeleição do ex-presidente Donald Trump e a vitória republicana no Congresso deram às forças desreguladoras o controle sobre as alavancas de poder no legislativo e na administração federal dos EUA. Essa mudança iminente — e a influência de figuras anti-ESG proeminentes na nova administração — levaram a previsões de uma ampla reversão da regulamentação federal relacionada a ESG no próximo ano“. [1] “Uma coisa é clara — o primeiro semestre de 2025 será um período extraordinariamente ativo para medidas relacionadas a ESG nos Estados Unidos [2]“.
Espera-se que tanto o movimento pró-ESG quanto o movimento anti-ESG atuem com força defendendo suas visões, frente ao pano de fundo do segundo governo Trump. A essa apreensão soma-se a existência de uma reação anti-ESG (anti-ESG backlash) no país, já há algum tempo, inclusive seguido pelo setor bancário que tem deixado iniciativas globais vinculadas à defesa de questões climáticas por pressão dos republicanos [3] [4].
É fundamental reconhecer que muitas iniciativas anti-ESG têm relevância significativa para o campo do direito, inicialmente limitadas ao âmbito legislativo, mas com expansão crescente para os tribunais.
O movimento ESG nasceu em 2004, no âmbito do Global Compact, um “arcabouço e mecanismo” das Nações Unidas. Naquele ano, aproximando representantes dos negócios, de agências da ONU e lideranças da sociedade civil global, foi produzido o relatório “Who cares wins” [5], com a participação de várias das mais importantes instituições financeiras do planeta.
O subtítulo do documento resumia sua filosofia de ação: “Conectando mercados financeiros para um mundo em mudança — Recomendações do setor financeiro para melhor integrar questões ambientais, sociais e de governança em análise, gestão de ativos, e corretagem de valores mobiliários”. Em sua origem, portanto, o movimento ESG defendia um modelo de stakeholder capitalism, centrado nas importantes instituições financeiras.
Desde seu início, o movimento enfrentou resistências, mas aquilo que se tornou conhecido como “reação anti-ESG” surgiria mais recentemente. Embora o impacto financeiro dessa reação sobre as gestoras de ativos ainda seja pouco significativo [6], a chegada de Trump ao poder pode significar seu crescimento; além disso, o movimento anti-ESG pode estar por trás de casos de greenhushing, fenômeno da ocultação das ações ESG pelas empresas que as realizam, por temerem provocar a reação dos ativistas anti-ESG [7].
Organização desde 2021
O movimento anti-ESG organizou-se com mais clareza a partir de 2021. Foi nesse ano que o American Legislative Executive Council, uma organização que reúne parlamentares conservadores do país todo, publicou uma model bill (modelo de ato legislativo que pode ser adaptado por parlamentares para as especificidades de seus estados) intitulada Energy Discrimination Elimination Act [8].
Parlamentares de estados produtores de combustíveis fósseis propuseram obrigar governos estaduais a evitar investimentos e desinvestir recursos em gestoras de ativos que reduzissem alocações em empresas da cadeia de combustíveis fósseis devido a princípios ESG.
Em 2023, foram apresentadas 163 propostas de legislação estadual anti-ESG em 23 estados dos EUA, com aprovação em 14 deles. As iniciativas incluíram desinvestimento em gestoras que boicotassem empresas de combustíveis fósseis, retirada de recursos de fundos de pensão estaduais geridos com critérios ESG, responsabilização de empresas e gestores pela não divulgação desses critérios e proibição de contratos estaduais com empresas que adotassem “scores” ESG na gestão. [9].
O ano de 2024 assistiu a mais uma evolução na “batalha” ESG vs. anti-ESG nos Estados Unidos:
“Em comparação com o ano passado, 2024 viu uma queda significativa na legislação ESG estadual, com metade do número de projetos de lei propostos e um quarto do número de projetos de lei promulgados. Embora as iniciativas que motivaram a onda de atividade anti-ESG do ano passado não tenham diminuído, um olhar mais atento revela que o campo de batalha mudou dos parlamentos estaduais para o tribunal, pois mais dessas leis foram desafiadas por sua aplicabilidade [10].”
Atualmente, portanto, há uma batalha em curso nos tribunais americanos entre ativistas pró e anti-ESG. Até recentemente, essa batalha girava principalmente em torno de ativistas pró-ESG lutando contra a legislação anti-ESG, com parcial sucesso. Mais recentemente, ações foram propostas por governos estaduais conservadores contra gestoras de ativos, por conta do uso de critérios ESG em suas decisões de investimento.
No dia 27 de novembro de 2024, 11 attorneys general (cargo equivalente ao do nosso procurador-geral do Estado) de estados com governos conservadores propuseram uma ação civil contra três das maiores gestoras de ativos dos EUA [11]. O complaint (“petição inicial”) começa com uma descrição do problema, como visto pelos autores:
“Nos últimos quatro anos, os produtores de carvão dos Estados Unidos têm respondido não aos sinais de preço do mercado, mas aos comandos de Larry Fink, presidente e CEO da BlackRock, e seus colegas gestores de ativos. À medida que a demanda pela eletricidade que os americanos precisam para aquecer suas casas e abastecer seus negócios aumentou, o fornecimento do carvão usado para gerar essa eletricidade foi artificialmente reduzido — e o preço disparou. Os réus colheram as recompensas de retornos mais altos, taxas mais altas e lucros mais altos, enquanto os consumidores americanos pagaram o preço em contas de serviços públicos mais altas e custos mais altos.”
Os autores mostram como os réus adquiriram, conjuntamente, grande porcentagem das ações de várias das principais empresas de carvão nos EUA, inclusive das duas maiores, Peabody Energy (30,43% das ações) e Arch Resources (34,19% das ações). Essas duas empresas respondem por, respectivamente, 13,2% e 17,2% de toda a produção de carvão do país. Argumentam ainda que as empresas de investimento coordenam suas ações para reduzir a competição entre as produtoras de carvão nas quais adquiririam participação e para reduzir a produção de carvão das empresas, a despeito do aumento nos preços do carvão.
Outra linha de argumentação dos autores é a violação do dever fiduciário das gestoras de ativos, induzindo investidores a erro. No item 224 do complaint, por exemplo, afirmam:
“A ré BlackRock deturpou materialmente as características dos ETFs, fundos mútuos e outros produtos financeiros que comercializou para investidores como não sendo regidos por princípios ESG — enganando os consumidores que investiram suas economias em fundos não-ESG porque não desejam apoiar causas ESG, não acreditam que promover causas climáticas aumente o valor para os acionistas ou que não acreditam que as decisões de investimento devam ser orientadas por política social ou ideologia. As declarações enganosas da Blackrock sobre seus fundos supostamente “não ESG” induziram os investidores a comprar fundos de investimento que de outra forma não teriam comprado.”
Essa ação ilustra duas estratégias utilizadas nas cortes pelo movimento anti-ESG. A primeira é o recurso ao direito antitruste, acusando os réus de atos lesivos à concorrência, buscando a redução da produção de carvão nos EUA. A outra estratégia é a acusação de violação do dever fiduciário dos gestores de investimentos em relação aos donos dos recursos que gerenciam, pois não estariam tomando as decisões de alocação dos recursos de forma transparente, ocultando sua motivação ESG.
Doutrina Chevron
Finalmente, um outro fato jurídico de potencial relevância é a recente superação do precedente conhecido por Chevron Doctrine pela Suprema Corte dos Estados Unidos, atualmente de maioria conservadora. No dia 28 de junho de 2024, em uma decisão de referência proferida nos casos Loper Bright Enterprises v. Raimondo e Relentless Inc. v Department of Commerce, a Suprema Corte considerou superado o precedente estabelecido em 1984 em Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc., que estabelecia a Chevron Doctrine [12].
Esse precedente superado estabelecia que uma corte federal não podia rever decisões de agências federais (algo que podemos comparar a órgãos tanto da administração direta quanto da direta, no Brasil), em relação à interpretação de leis federais ambíguas, quando essas decisões fossem “razoáveis”. O Chief Justice John Roberts afirmou na decisão que o Judiciário “é o único que tem a prerrogativa de dizer o que a lei é”, bastando para isso que a parte interessada demonstre que a interpretação da agência não era a melhor possível [13].
Teme-se que a superação da Chevron Doctrine impacte decisões judiciais vindouras ou mesmo em curso. Um exemplo são duas ações que questionam a norma do Department of Labor conhecida como ESG Rule e que permite aos agentes fiduciários do Erisa [14] — embora não os obrigue a — seguir princípios ESG na alocação de recursos.
Em uma das ações, State of Utah v. Su, a United States District Court for the Northern District of Texas (órgão da primeira instância das Federal Courts dos EUA) decidiu pela manutenção da ESG Rule, baseando-se na Chevron Doctrine. No dia 18 de julho de 2024, apenas vinte dias após a decisão da Suprema Corte superando o precedente, a US Court of Appeals for the Fifth Circuit (segunda instância) analisou o caso e reenviou-o à primeira instância para reconsideração, para que essa aplicasse seu “julgamento independente, citando a nova jurisprudência como fundamento [15]“.
Em síntese, o movimento anti-ESG dos Estados Unidos resistiu à descrença inicial em relação à sua viabilidade. Embora o impacto financeiro sobre as gestoras de ativos ainda seja modesto, o impacto sobre a tomada de decisão empresarial em relação aos princípios ESG e sobre a opinião pública conservadora não é pequeno, havendo indícios de que a ação anti-ESG poderia ser um dos fatores alimentando o fenômeno do greenhushing.
Atualmente, assistimos à migração de suas iniciativas dos legislativos estaduais para os tribunais. A recente decisão da conservadora Suprema Corte atual, considerando superada a Chevron Doctrine, preocupa os ativistas do movimento ESG. Os discursos pré-posse de Trump, bem como a equipe que escolheu, aliados ao fato de que os republicanos controlarão Senado e House of Representatives, criam a expectativa de que executivo e legislativo federais também possam tomar medidas anti-ESG.
Se, como e quando esse movimento se expandirá durante o governo Trump, inclusive para além dos EUA, ainda é uma incógnita. Decisões recentes do presidente da Argentina, Javier Milei [16], sugerem que essa expansão talvez já esteja ocorrendo, embora não esteja claro o quanto sua postura derivou das ações anti-ESG nos Estados Unidos. Tudo isso torna o acompanhamento do embate ESG vs. anti-ESG essencial para o mundo jurídico.
[1] CLIFFORD CHANCE. What the new Trump administration could mean for ESG. 9 dec 2024.
[2] CARTER, Martha et al. Stuck in the Middle with ESG: What Companies Can Expect in 2025 & Beyond. Harvard Law School Forum on Corporate Governance. December 20, 2024.
[3] BLOOMBERG. JPMorgan Asset Management Quits $68 Trillion Climate Group
https://www.bloomberg.com/news/articles/2024-02-15/jpmorgan-asset-management-quits-68-trillion-climate-group?embedded-checkout=true . Fevereiro, 2024.
[4] VALOR ECONÔMICO. Citi e BofA anunciam saída de aliança global climática de bancos. https://valor.globo.com/financas/noticia/2025/01/02/citi-e-bofa-anunciam-saida-de-alianca-global-climatica-de-bancos.ghtml. Janeiro, 2025.
[5] GLOBAL COMPACT. Who cares wins : connecting financial markets to a changing world. 2004.
[6] PRINCIPLES FOR RESPONSIBLE INVESTMENT ASSOCIATION. Policy Briefing: Signatory responses to state anti-esg law. June 2024. https://www.unpri.org/download?ac=21260
[7] BUSINESS WORLD. Anti-ESG backlash in US prompts new trend: ‘greenhushing’. February 29, 2024.
[8] ENERGY DISCRIMINATION ELIMINATION ACT.
https://www.alecexposed.org/wiki/Energy_Discrimination_Elimination_Act
[9] SOARES, Kristen. Webinar Recap: Anti-ESG Legislation — Why it Matters and What States Can Do. ClimateXChange. July 13, 2023. https://climate-xchange.org/2023/07/anti-esg-legislation-why-it-matters-and-what-states-can-d/
[10] ROPES & GRAY. Ropes & Gray Issues State ESG Update and Analysis for Asset Managers and Financial Institutions. November 21, 2024.
[11] UNITED STATES DISTRICT COURT FOR THE EASTERN DISTRICT OF TEXAS TYLER DIVISION. Texas et al. v. BlackRock, Inc. et al. 6:24-cv-00437. Os estados são Texas, Alabama, Arkansas, Indiana, Iowa, Kansas, Missouri, Montana, Nebraska, West Virginia e Wyoming. As empresas são BlackRock, State Street e Vanguard.
https://www.crowell.com/a/web/ncEXk58x4dg7qdpiHoArWV/states-v-blackrock-complaint-20241127.pdf
[12] RODMAN, Rachel and ALBRIGHT, Alec. U.S. Supreme Court Strikes Down Chevron Doctrine—What You Need to Know. White & Case. Alert, 08 July 2024.
[13] DVORETZKY et al. Supreme Court’s Overruling of Chevron Deference to Administrative Agencies’ Interpretations of Statutes Will Invite More Challenges to Agency Decisions. Skadden Publication, July 9, 2024.
[14] Employee Retirement Income Security Act of 1974, que estabelece as normas mínimas dos planos de pensão de trabalhadores.
[15] ML BeneBits. What the End of the Chevron Doctrine May Mean for ERISA’s Fiduciary Provisions. Morgan Lewis. September 03, 2024.
[16] PODER360. Argentina sai das negociações na cúpula do clima em Baku. 13.nov.2024. https://www.poder360.com.br/poder-internacional/argentina-sai-das-negociacoes-na-cupula-do-clima-em-baku/
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