Continuidade normativo-típica e o reenquadramento do artigo 11 da LIA
4 de janeiro de 2025, 15h26
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça consolidara o entendimento de ser possível o reenquadramento de conduta na atual redação do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), de modo que, ao analisar uma condenação por violação aos princípios da administração pública antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/21, estaria a Corte Superior apta e autorizada a reenquadrar a conduta em um dos incisos da atual redação do artigo 11 da LIA.
Neste sentido, conforme noticiado recentemente nesta ConJur [1], tem-se que a 2º Turma do STJ aderiu à jurisprudência da 1ª Turma desta Corte Cidadã, admitindo a aplicação do princípio da continuidade típico-normativa para os processos que tiveram condenação pelo artigo 11 da LIA antes da entrada em vigor da nova LIA (14.230/2021).
Rememorando, antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/21, o artigo 11 da Lei 8.429/1992 aduzia que, notadamente, constituía ato de improbidade administrativa que atentava contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que violasse os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, elencando em seguida um rol exemplificativo de condutas violadoras dos princípios da administração pública.
Ainda que não fosse consenso, antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/21, para a tipificação de uma das condutas previstas no artigo 11, já havia a necessidade dos seguintes requisitos:
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1) conduta dolosa do agente (o dolo aqui, conforme entendia o STJ, era o dolo ‘geral’);
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2) conduta comissiva ou omissiva ilícita que, em regra, não gerasse enriquecimento ilícito ou não causasse lesão ao patrimônio público;
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3) violação dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições;
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4) atentado contra os princípios da administração, que não se referia somente aos princípios constitucionais da administração pública, previstos no ido artigo 37 da Constituição, mas a todos os princípios da administração pública, em especial aos princípios da legalidade; impessoalidade; moralidade; publicidade; eficiência; supremacia do interesse público; razoabilidade e proporcionalidade; presunção de legitimidade e de veracidade; especialidade; controle administrativo ou tutela; autotutela administrativa; hierarquia; motivação; continuidade do serviço público;
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5) existência de nexo causal entre o exercício funcional e o desrespeito aos princípios da administração.
O antigo artigo 11
Conforme denunciamos em artigo pretérito [2], pela sua elasticidade, o antigo artigo 11 era comumente citado nas iniciais das ações de improbidade quer como fundamento único da acusação, quer associado a um dos dois outros dispositivos, aplicado de forma subsidiária, como uma espécie de soldado reserva. Algo do tipo: “Caso Vossa Excelência não entenda pela aplicação dos artigos 9 e/ou 10, aplique o artigo 11”. Afinal, nele, tudo cabia.
Lenio Streck, com a acidez crítica que lhe é peculiar, chama essas situações, em que se alega genericamente “violações a princípios” como forma de resolver o “problema”, de fator Groucho Marx [3]. Dessa forma, assim como ironizava o humorista, são oferecidos ao juiz vários princípios. Mas, caso o magistrado não goste dos apresentados, pode-se buscar outros. O cardápio é generoso.
Para ilustrar na prática o que estar-se-ia argumentando, segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Direito Público (IDP), na qual este articulista fazia parte, à época, essa modalidade concentrava cerca de metade de todos os casos de improbidade administrativa que chegavam ao STJ [4].
De modo a minimizar o chamado fenômeno do “apagão das canetas’, o artigo 22 da Lindb chegou, antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/21, a aduzir expressamente que na interpretação de normas sobre gestão pública, devem ser considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados, em clara tentativa de trazer a discussão para o mundo concreto, afastando-se um pouco do insondável mundo dos princípios da administração pública, tomado pelo panprincipiologismo.
Rol exemplificativo
Feita esta breve digressão e contextualização, voltemos para o caso em questão. Em interessante artigo sobre o tema, a promotora de Justiça Fabiana Lemes Zamalloa do Prado defendera que o “sistema de responsabilização” instituído pela própria Lei nº 8.429/92, com as alterações da Lei nº 14.230/2021, analisado à luz da Constituição, autorizaria a afirmação de que o artigo 11 da LIA, com a nova redação da Lei nº 14.230/2021, permaneceria como rol exemplificativo de condutas violadoras dos princípios da administração pública, caracterizadoras da improbidade administrativa, com a continuidade normativa típica de condutas violadoras dos princípios da administração pública não taxativamente descritas, que constituam relevante violação ao bem jurídico tutelado, qual seja, o direito fundamental à probidade na administração pública [5].
Não obstante, segundo a doutrina [6], a expressão “qualquer” utilizada no caput do artigo 11 demonstrava que o rol dos atos de improbidade administrativa era exemplificativo (numerus apertus), de modo que a Lei nº 14.230/2021, ao modificar a redação do caput do artigo 11 para inserir a expressão “caracterizada por uma das seguintes condutas”, deixa claro que os incisos do artigo 11 encerram agora uma lista exaustiva (numerus clausus).
Acolhendo este último entendimento, o Supremo Tribunal Federal, na Rcl 64.629, aduzira que o artigo 11 agora exige que se aponte qual das condutas listadas nos incisos foi praticada pelo agente ímprobo [7]. Neste sentido, a 1ª Turma do STF entendeu que, uma vez que a conduta praticada não guarde agora correspondência com qualquer das hipóteses previstas na atual redação da lei, a condenação por improbidade administrativa não poderia ser mantida.
Em outras palavras, podemos concluir que, inexistindo continuidade típico-normativa da conduta, não há se falar em possibilidade de condenação.
Entendimento do STJ
Seguindo esta linha de raciocínio e filiando-se a este entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, partindo do pressuposto de que os incisos do artigo 11 encerram agora uma lista exaustiva (numerus clausus), entendera que haveria abolição da figura típica se a conduta — anteriormente enquadrada no inciso revogado — não for mais disciplinada em nenhum outro dispositivo do artigo 11 da Lei nº 8.429/92 que ainda esteja em vigor. Por sua vez, se a conduta continua proibida em outro dispositivo do artigo 11, considera-se que houve continuidade típico-normativa da conduta.
Assim, haverá abolição da figura típica da Lei de Improbidade Administrativa quando a conduta anteriormente tipificada sob a antiga redação do artigo 11 da LIA se tornar irrelevante para os fins da referida lei e não quando tenha sido disciplinada por dispositivo legal diverso, ou seja, os novéis incisos do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992, aplicando-se a este último caso o princípio da continuidade normativo-típica.
O princípio da continuidade normativo-típica ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário. Trata-se de um princípio inerente ao direito penal, mas que pode ser também aplicado no caso do direito administrativo sancionador.
Não obstante, entendemos que esta conclusão deve ser vista com algumas ressalvas, à luz de uma moralidade interna da legislação. Isto porque, salvo melhor juízo, entendemos que o magistrado não pode julgar, automaticamente, o reenquadramento da conduta prevista no artigo 11, da LIA, com a nova redação.
Isto porque, para além da necessidade de avaliar se é o caso de reenquadramento da conduta aos novos incisos do artigo 11 da LIA ou de eventualmente devolver o processo para as instâncias ordinárias, a quem cabe a análise da fatos e provas, deve-se antes haver o necessário apontamento e (re)ajuste a ser realizado pela parte autora.
Obrigações do Ministério Público
Partindo de uma leitura íntegra e coerente do sistema, a nova LIA apresenta uma obrigatoriedade do membro do Ministério Público (ou outro legitimado ativo) demonstrar, a priori, lastro probatório mínimo do dolo específico e dano ao erário (carga formal), sob pena de indeferimento da inicial (§6º-B, artigo 17), devendo este ainda ser devidamente demonstrado no decorrer da instrução processual (carga material).
Neste sentido, conforme leciona James Goldschmidt (2018, p.57), ‘entende-se por carga formal da prova a necessidade da proposição de provas, importas às partes em um procedimento dominado pelo princípio dispositivo, ou seja, de iniciativa das partes. Entende-se por carga material da prova o interesse que tem, uma ou outra parte, em que um fato determinado seja comprovado, porque a não comprovação do fato levaria ao seu prejuízo. Somente este interesse preenche o vazio da carga formal da prova, determinando o conteúdo e os seus sujeitos'” [8].
Em ato contínuo, conforme artigo 17, § 10-C, após a réplica do Ministério Público, o juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor.
Ademais, conforme artigo 17, § 10-D, para cada ato de improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado apenas um tipo dentre aqueles previstos nos artigos 9º, 10 e 11 desta lei, de modo que, nos termos do artigo 17, § 10-F, será nula a decisão de mérito total ou parcial da ação de improbidade administrativa que condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial.
Moralidade interna do direito sancionador
Nota-se, portanto, que antes da decisão, deve haver uma espécie de saneamento, de modo que deve o juiz decidir, após a réplica (manifestação) do Ministério Público (parte autora), para que seja estabilizada a demanda denunciando claramente a tipificação imputada, da qual o magistrado não poderá divergir, vedada, portanto, a aplicação da emendatio/mutatio libeli, quando de sua decisão, sob pena de nulidade.
Neste sentido, acreditamos que, caso o magistrado decida julgar automaticamente o reenquadramento da conduta prevista no artigo 11, da LIA, sem que ocorra a obrigatória manifestação da parte autora, que possui a carga probatória de demonstrar a possibilidade de aplicação do princípio da continuidade normativo-típica no caso concreto, haveria uma contradição no modo de interpretação das leis, nos termos propostos por Fuller (2022, p. 83) [9], operando-se uma indiscutível nulidade.
Nas palavras de Fuller, um sistema jurídico, para ser considerado como tal, deve mostrar congruência entre as regras anunciadas e sua aplicação real, levando-se ainda em conta todo o cenário institucional do problema — legal, moral, político, econômico e sociológico — na determinação de eventuais incompatibilidades sistêmicas. Trata-se de uma compreensão da moralidade interna do direito administrativo sancionador.
Em outras palavras, para finalizar, ainda que seja possível a aplicação da teoria da continuidade normativo-típica, esta não pode acontecer ex officio, de modo que devemos conduzir nosso raciocínio jurídico à luz dos princípios de legalidade que, implícitos na própria prática, constituem a moralidade que torna o direito possível.
[1] https://www.conjur.com.br/2024-dez-28/stj-pode-reenquadrar-conduta-na-atual-redacao-do-artigo-11-da-lia/
[2] https://www.conjur.com.br/2021-ago-03/opiniao-improbidade-descumprimento-principios-la-carte/
[3] https://www.conjur.com.br/2016-abr-21/senso-incomum-simples-ninguem-culpado-destruicao-direito-pindorama/
[4] https://www.conjur.com.br/2019-mai-20/pesquisa-mostra-sancoes-improbidade-sao-amplas/
[5] DO PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa. A continuidade normativa típica do artigo 11 da Lei nº 8.429/92 após as alterações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021. Controle Externo: Revista do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, 2021.
[6] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. Lei de improbidade administrativa comentada: de acordo com a reforma pela Lei 14.230/21. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[7] https://www.conjur.com.br/2024-mai-15/mudanca-no-artigo-11-da-lia-retroage-para-casos-nao-definitivos-diz-stf/
[8] Goldschmidt, James. Problemas jurídicos e políticos do processo penal / James Goldschmidt; tradução Mauro Fonseca Andrade, Mateus Marques. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, págs. 57-58.
[9] FULLER, Lon L. A moralidade do Direito. Editora Contracorrente, 2022.
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