A academia e o Tribunal do Júri entre os jurados nº 2 e nº 8
4 de janeiro de 2025, 7h04
Está disponível nos streamings, como se diz atualmente, o novo filme de Clint Eastwood, “Jurado n° 2”, filme com um roteiro tão simples quanto previsível, atraindo alguns benefícios e um problema real. Os benefícios se resumem em nos fornecer uma escolha leve e direta para alguma distração e entretenimento a partir de narrativa “sem furos” e bastante direta, que expõe a história de um jurado que terá de jugar o crime que ele mesmo cometeu, mas está sendo imputado a uma outra pessoa, julgada por ele, como fica claro desde os primeiros minutos do filme.
É impossível não recordarmos um clássico dos cinemas como o filme “12 Homens e uma Sentença”, película multipremiada de 1957, dirigida por Sidney Lumet, em que um drama jurídico também se desenvolve perante as barras de um júri popular, embora naquela oportunidade o protagonista não tenha sido o jurado nº 2, e sim o jurado nº 8, interpretado por Henry Fonda, que deu vida a um personagem humanista que acreditava ser necessário haver alguma discussão antes do veredicto, assim como no filme mais recente do jurado nº 2.
Quem sabe o jovem Clint Eastwood, que tinha 27 em 1957, não tenha assistido ao primeiro filme com algum incômodo sobre a dúvida do jurado nº 8, e, inclusive tenha imaginado, dentre as diversas possibilidades do caso, que ele mesmo poderia ter sido o culpado pelo crime da época, devido a veemência com que discutia a presunção de inocência do então acusado, e aqui estamos caminhando no pantanoso terreno da especulação, mas é inegável que o imaginário capturou aquele jovem que, anos mais tarde, se tornaria diretor.
Igualmente, de alguma maneira, é possível que Clint Eastwood tenha esboçado alguma ambição de replicar o imaginário de “12 Homens e uma Sentença”, especialmente quando surge, em seu filme, a necessidade de não se realizar a justiça mais fácil e rápida, traduzida pela possível condenação do acusado sem maiores discussões entre os jurados que, cada um a sua maneira, sugerem urgências do quotidiano, como buscar o filho na escola, voltar para casa para ajudar o pai adoecido ou apoiar a esposa grávida, dentre outras circunstâncias do dia a dia.
Questões legais x dilema moral
Não exploraremos aqui os detalhes da trama, mas não em razão de uma artificial preservação do leitor sobre “spoilers”, expressão que se origina do verbo “to spoil” (inglês), que no presente contexto significa fornecer uma “informação” que revela antecipadamente trechos importantes de um filme, por exemplo, em especial para quem não o assistiu. A não incursão sobre os detalhes ocorre por outro motivo, menos nobre: a limitação do artigo e as escolhas aqui realizadas. De todo modo, presume-se que o leitor já tenha passado os olhos no filme, ou que o assistirá posteriormente, independentemente deste artigo.
Dito isto, o problema, que enxergamos como um “problema real”, é que o filme não se aprofunda em detalhes e/ou em questões legais (leia-se: jurídicas) que seriam bastante relevantes, limitando-se a explorar o dilema moral, mas ainda assim de forma bastante lateral, da mesma forma como deixa de tirar proveito — mesmo que “apenas” jurídico — sobre o drama pessoal do alcoolismo vivenciado pelo protagonista e sobre as questões raciais entre os diversos jurados, num dos vários momentos de deliberação sobre o crime.
Um exemplo disso se traduz no modo simplório como a questão jurídica é subexplorada, quando o jurado procura um advogado por duas vezes, a primeira para obter a resposta de que o jurado nº 2 não deveria se entregar sob pena de responder por um crime muito grave, mesmo que não tenha tido a intenção de praticá-lo, e, ainda assim, de acordo com seus antecedentes, pois a pena seria bastante alta. Da segunda vez em que o 2º jurado procura um advogado, a cena também é retratada de maneira protocolar, quando o causídico informa, não obstante o impasse entre os jurados, que o julgamento deveria ocorrer, pois se fosse suspenso ou dissolvido o júri, o jurado poderia vir a ser gravemente acusado.
Muitos dirão aqui que seria até mais interessante se dois advogados pudessem conversar sobre o caso, discutindo seus detalhes, mesmo que fossem advogados do imaginário televisivo, como o lendário Perry Mason ou o conhecido — e não menos caricato — Saul Goodman, como no recente texto de Frank Scalambrino [1], mesmo que isso envolvesse discutir possibilidades de “truques legais obscuros”, manipulação de provas e testemunhas, além de permitir um eclipse sobre noções tradicionais e romantizaras de justiça, sob o pano de fundo da nem sempre charmosa filosofia do direito, cujo papel deve ser colocar o dedo na ferida aberta enquanto olha nos olhos do interlocutor e pergunta se algo o incomoda!
Direito natural
Frank Scalambrino, é bom que se diga, enxerga Perry Mason um tanto mais virtuoso que Saul Goodman, o que não é muito difícil, bem como percebe no primeiro alguém que serve e acredita mais fielmente nos fins da justiça. Forçando bem a barra, chega a traçar um paralelo entre Perry Mason e Saul Goodman, bem como entre o direito positivo e o direito natural, afirmando: “aqueles que acreditam haver uma conexão necessária entre a moralidade e o direito tendem a apoiar o direito natural, enquanto aqueles que acreditam que o direito independe da moralidade, como algo meramente ‘posto’, como matéria de fato, tendem a se aproximar do positivismo jurídico” [2].
O mesmo autor afirma, ainda, que: “o direito natural geralmente é associado a Tomás de Aquino e Immanuel Kant, enquanto o positivismo jurídico geralmente seguiria associado a Thomas Hobbes e a Friedrich Nietzsche”, travando alguns pontos que exigiriam maior aprofundamento, tanto quanto as lacônicas impressões jurídicas do “Jurado n° 2”.
Contudo, para além da mera curiosidade jurídica de sabermos como Saul e Parry aconselhariam o jurado nº 2, alguns pontos atuais nos chamariam a refletir um pouco mais, especialmente sobre as afirmações pretéritas acerca do direito natural e do direito positivo. Dentre as várias possibilidades, limitadas pelas dimensões deste texto, citemos a recente reflexão feita perante a Faculdade de Direito na Universidade Cambridge, em seu grupo de pesquisa CLTDG (Cambridge Legal Theory Discussion Group), no paper do professor Robert Craig “Nietzsche, Finnis and Exclusive Legal Positivism”, com destaque para algumas de suas conclusões, adiante traduzidas livremente.
Primeira: “O positivismo jurídico sempre teve uma relação compreensivelmente desconfortável com a moralidade e esse desconforto é explorado por John Finnis com considerável habilidade em muitos artigos, livros e análises. A citação no início deste texto [3] aponta a fenda na qual Finnis parece ter fixado o positivismo jurídico exclusivo. Este artigo começou da perspectiva de que Finnis identificou corretamente quem é, na verdade, seu principal antagonista e esse é Nietzsche. O objetivo deste artigo foi desenvolver porque os argumentos de Nietzsche realmente representam uma ameaça significativa à concepção de Finnis de direito natural como cooptação ou silenciamento do positivismo jurídico exclusivo” [4].
Segunda: “Foi sugerido que Nietzsche fornece uma rota de fuga para o positivismo jurídico exclusivo, se ele abandonar o compromisso quase universal com a teoria da correspondência da verdade e a reivindicação maligna, rastreável até Platão, de que há um reino metafísico onde residem formas perfeitas de conceitos, ideias e ideais. Nossas tentativas desajeitadas de entender o direito, a moralidade e as ideias conceituais são, portanto, válidas apenas e na medida em que podemos tentar racionalmente avaliar qual é a versão perfeita de nossos conceitos no mundo das formas. Qualquer desvio entre culturas e épocas pode ser explicado pela pura dificuldade de entender o que o ideal perfeito pode ser, em vez de constituir um desafio a essa metodologia em primeiro lugar” [5].
Terceira: “Se deixarmos de lado o mundo das formas e pararmos de nos apegar aos destroços da estranha ideia de que a perfeição moral existe em algum lugar no éter, há implicações radicais para o positivismo jurídico exclusivo. O fim da teoria da correspondência da verdade significa o fim das reivindicações autoritativas de obrigação moral. Isso libera o positivismo jurídico exclusivo da necessidade de explicar por que as normas morais não devem ser obrigatórias quando o direito foge. Pelo contrário, o fardo passa para aqueles que reivindicam a natureza obrigatória de supostas normas morais para identificar uma fonte válida para suas normas reivindicadas e, ainda mais importante, como uma obrigação normativa supostamente derivada da norma reivindicada pode ser derivada de sua mera existência como um fato descritivo” [6].
Positivismo jurídico
Como é possível observar, o primeiro problema sobre traçar qualquer paralelo entre direito natural e positivismo jurídico é distinguir sobre que naturalismo ou sobre qual positivismo jurídico estamos falando, como observam, por exemplo, Lenio Streck, Daniel Ortiz Matos [7], Joé Reinaldo Lima Lopes [8] e Pierluigi Chiassoni [9], dentre outros [10].
Em termos gerais, e para além de uma mera romantização, ambos os filmes (“Jurado nº 2” e “12 homens e uma sentença”) servem para fomentar alguma discussão sobre temas relevantes, desde que seja realizado um debate que busque aprofundar reflexões teóricas, não apenas dos pontos de vista de alguma possível vigarice jurídica que poderia ser proposta por advogados iconográficos como Perry Mason ou Saul Goodman, mas especialmente se os panos de fundo vierem a ser tratados de maneira adequada ao contexto brasileiro, em especial neste momento quando é bastante visível que o Tribunal do Júri no Brasil está seriamente ameaçado, assim como a própria academia.
[1] Scalambrino, Frank. Perry Mason v. Saul Goodman Em: Rivera, Heather L.; Arp, Robert (Org). Perry Mason and Philosophy: The Case of the Awesome Attorney (Popular Culture and Philosophy, 133). Open Court, 2020.
[2] Scalambrino, Frank. Perry Mason v. Saul Goodman Em: Rivera, Heather L.; Arp, Robert (Org). Perry Mason and Philosophy: The Case of the Awesome Attorney (Popular Culture and Philosophy, 133). Open Court, 2020.
[3] Eis a referida citação, igualmente traduzida livremente: “Hoje, os promotores desse tipo radical de “positivismo exclusivo” são os seguidores, conscientes ou inconscientes, de Nietzsche ou de outros que, como ele, reduzem a ética e a teoria normativa política ou jurídica a uma busca pela “genealogia”, as fontes históricas (talvez parcial ou totalmente fisiológicas) de padrões éticos, políticos ou jurídicos”. Apud: Finnis, John, ‘On the incoherence of legal positivism’, 75 (5) Notre Dame Law Review 1597, 2000.
[4] Craig, Robert, Nietzsche, Finnis and Exclusive Legal Positivism, Cambridge Legal Theory Discussion Group (CLTDG), 2024.
[5] Craig, Robert, Nietzsche, Finnis and Exclusive Legal Positivism, Cambridge Legal Theory Discussion Group (CLTDG), 2024.
[6] Craig, Robert, Nietzsche, Finnis and Exclusive Legal Positivism, Cambridge Legal Theory Discussion Group (CLTDG), 2024.
[7] Cfr. Streck, Lenio Luiz. O que é positivismo, afinal? e qual positivismo? Novos Estudos Jurídicos, v. 23, n. 3, p. 890–902, 2018; Streck, Lenio Luiz; Ortiz Matos, Daniel. Mitos sobre o positivismo jurídico: uma leitura para além do senso comum teórico. Revista UNIFESO – Humanas e Sociais, v. 1, n. 1, 2014.
[8] Cfr. Lima Lopes, José Reinaldo. Naturalismo jurídico no pensamento brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014.
[9] Cfr. Chiassoni, Pierluigi. Kelsen on Natural Law Theory An Enduring Critical Affair. Law, Logic and Morality, 2014.
[10] Cfr. Krieger, Leonard. Kant and the Crisis of Natural Law. Journal of the History of Ideas Vol. 26, No. 2, Apr. – Jun., 1965.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!