Responsabilidade civil do fornecedor pela usurpação do tempo vital ou existencial do consumidor
3 de janeiro de 2025, 19h21
Ao tratar da responsabilidade civil do fornecedor pela perda de tempo vital ou existencial do consumidor, é imprescindível mencionar a teoria do desvio produtivo do consumidor, concebida pelo jurista Marcos Dessaune. Segundo essa teoria, em resumo, o desvio produtivo do consumidor se caracteriza a partir do momento em que o consumidor despende seu tempo vital ou existencial para solucionar problemas de consumo originados por condutas abusivas do fornecedor.
Em suma, a conduta desidiosa do fornecedor, seja omissiva ou comissiva, ao prestar um mau atendimento ou um serviço mal feito, desencadeia o evento danoso, que se consubstancia no “desvio do consumidor” de suas atividades existenciais.
Nesse cenário, o consumidor é compelido a renunciar a atividades existenciais, como trabalho, estudo, lazer, descanso e convívio social, sendo privado de momentos essenciais à sua qualidade de vida (Maia, 2014, p. 169).
Nesse sentido, de acordo com Rene Edney Soares Loureiro e Héctor Valverde Santana (2016):
“Nas relações de consumo, verificam-se constantes abusos dos fornecedores, como a não prestação de serviços ou má prestação de serviços, fatores esses que ocasionam uma perda injusta, desproporcional e desarrazoada de tempo dos consumidores, os quais são forçados a deixar seus compromissos diários, profissionais, de lazer, de descanso, de estar na companhia de familiares ou da pessoa amada para buscar uma solução efetiva e idônea dos problemas afetos às relações de consumo. […].”
Há inúmeros exemplos na sociedade de consumo que ilustram essa teoria. Cita-se o caso em que o consumidor teve seu tempo usurpado em decorrência de um imbróglio relacionado a um pedido de reembolso após a devolução de um produto. [1] Cita-se também o caso em que o consumidor teve seu tempo perdido ao tentar resolver, por diversas vezes, administrativamente, o saneamento de um vício em um carro zero quilômetro que havia comprado. [2]
Acidentes de consumo
Os eventos danosos que ocasionam a usurpação do tempo do consumidor são, indubitavelmente, caracterizados como acidentes de consumo, uma vez que acarretam danos diretos ao consumidor. Esses danos ultrapassam os limites do objeto de consumo, atingindo frontalmente o indivíduo. Trata-se de um dano extrapatrimonial de natureza existencial (Dessaune, 2019, p. 16), pois afeta o tempo vital ou existencial do sujeito, que é um bem jurídico tutelado pela cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Pode-se afirmar que a conduta abusiva do fornecedor, ao usurpar o tempo do consumidor, gera um dano extra rem, ou seja, um prejuízo que transcende o mero vício do produto ou serviço, atingindo diretamente o consumidor.
A propósito, a gênese das expressões circa rem e extra rem está ligada ao direito romano, mais precisamente em relação ao século 12, devido aos escritos atribuídos ao Glosador Martinus Gosia: “interesse quandoque circa rem, quandoque extra rem spectandum est, item quandoque loco rei, quandoque loco pene” (Pichonnaz, 2014, p. 708). [3] De acordo com tais escritos, pode-se constatar que a expressão circa rem está relacionada à própria coisa (intrínseco), enquanto a expressão extra rem refere-se a algo fora da coisa (extrínseco).
Nesse contexto, convém citar trecho de decisão proferida pela 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 1º de julho de 2003, processo nº 5115/2003-7, sob relatoria de Maria do Rosário Morgado, em que ficou consignado o seguinte: “[…] Na verdade, o cumprimento defeituoso pode originar danos «circa rem» ou «extra rem». Ou seja: danos causados no objecto da prestação ou danos pessoais sofridos pelo credor ou provocados no restante património do credor ou de terceiros.”
Acerca do tema, o jurista português Pedro Romano Martinez (1994), ao distinguir dano circa rem de dano extra rem, cita como exemplo a explosão de uma máquina localizada em uma fábrica. Nesse contexto, o dano circa rem refere-se ao prejuízo causado à própria máquina, enquanto o dano extra rem está relacionado aos danos que possam ser causados à fábrica, ao dono da obra e a quaisquer terceiros.
Prejuízo ao consumidor
No âmbito do direito do consumidor, as expressões circa rem e extra rem devem estar relacionadas aos problemas ocorridos na sociedade de consumo. Destaca-se que, no direito do consumidor contemporâneo, a classificação tradicional entre responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual é afastada, cedendo lugar à summa divisio: responsabilidade pelo defeito do produto e do serviço e responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (Miragem, 2024, p. 640).
Nesse sentido, o dano circa rem refere-se ao prejuízo vinculado diretamente ao produto ou ao serviço, estando, portanto, relacionado ao vício do produto ou do serviço. Por sua vez, o dano extra rem refere-se ao prejuízo que ultrapassa a esfera do produto ou do serviço, configurando-se como um dano que atinge a integridade física, psíquica ou patrimonial do consumidor.
Como é sabido, o vício afeta o produto ou o serviço em si, revelando um descompasso entre o que é ofertado e as legítimas expectativas do consumidor (intrínseco). Por outro lado, o defeito afeta diretamente o consumidor (extrínseco), causando-lhe prejuízos de ordem patrimonial ou extrapatrimonial (Braga Netto, 2013, p. 136).
Salienta-se que o Código de Defesa do Consumidor adotou a técnica da cláusula geral para a definição de defeito, podendo abranger quaisquer danos que os serviços ou produtos colocados no mercado de consumo possam causar aos consumidores, como danos materiais, danos estéticos e danos morais (Araujo Junior; Giancoli, 2024, p. 100).
A respeito disso, Flávio Tartuce (2024, p. 150), ao apresentar exemplos de vício e defeito do serviço, esclarece que um serviço capaz de causar dano moral é caracterizado como defeituoso. Ele ilustra: “[…] alguém contrata um jardineiro para cortar a grama de sua casa. Se o serviço não for prestado a contento, é evidente o vício do serviço. Se o jardineiro matar o cão de estimação do consumidor, flagrante o fato do serviço ou defeito.”
Ainda sobre o tema, é pertinente citar o entendimento de Rizzatto Nunes (2024, p. 188), que enfatiza que o defeito pode causar prejuízos ao patrimônio jurídico material, moral, estético ou à imagem do consumidor:
“O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago — já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor.”
Abuso do fornecedor
A conduta abusiva do fornecedor, que ocasiona a perda do tempo existencial do consumidor, como nos casos em que o consumidor precisa retornar diversas vezes ao estabelecimento do fornecedor devido a um conserto mal realizado, constitui, na origem, um vício do serviço. O fornecedor, ao prestar o serviço de maneira inadequada, viola positivamente o contrato de consumo (die positiven vertragsverletzungen), por não observar os deveres anexos à boa-fé objetiva, como o dever de colaboração, ao deixar de possibilitar que o bem de consumo seja utilizado adequadamente pelo consumidor, mediante um serviço de assistência técnica eficiente.
Esse serviço mal prestado caracteriza-se, inicialmente, como vício do serviço, mas pode se transformar em um serviço defeituoso. Caso o consumidor seja obrigado a se desviar de suas atividades existenciais em razão desse serviço mal prestado, como ao precisar retornar reiteradamente ao estabelecimento do fornecedor, ocorrerá, evidentemente, a transformação do vício em defeito. Nesse contexto, o serviço que resulta na usurpação do tempo do consumidor e gera, consequentemente, dano moral, configura-se como defeituoso, pois ultrapassa a mera inadequação do serviço, afetando diretamente o consumidor (Werner, 2006, p. 112-113).
Ocorrendo lesão ao tempo do consumidor, decorrente de um evento danoso causado por um fornecimento defeituoso — isto é, por ato ilícito do fornecedor ao prestar um serviço malfeito ou um mau atendimento —, surge para o titular do direito violado, ou seja, o consumidor, a pretensão indenizatória, enquanto para o causador do dano injusto surge a responsabilidade civil de reparar o prejuízo, nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. Essa responsabilidade fundamenta-se no princípio da reparação integral do dano, previsto no artigo 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor, e traduz a aplicação da máxima neminem laedere (“não lesar a ninguém”).
Ressalta-se que a responsabilidade civil nas relações de consumo é abrangente, estendendo-se a todas as etapas do fornecimento, inclusive ao tratamento dispensado ao consumidor, como salienta José Guilherme Vasi Werner (2018).
Prescrição para reparação de danos
No que se refere ao prazo prescricional para a reparação dos danos decorrentes da usurpação do tempo do consumidor, este é de cinco anos, conforme disposto no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que a conduta do fornecedor caracteriza uma prestação de serviço defeituosa.
Em relação ao nexo de causalidade, elemento essencial para a configuração da responsabilidade civil, é importante destacar que, nas relações regidas pela legislação consumerista, adota-se a teoria da causa adequada (direta, imediata ou necessária), contemplada pelo Código Civil. Dessa forma, torna-se indispensável a relação de causalidade entre o defeito do serviço ou do produto e o dano. Em outras palavras, é necessário que o acidente de consumo tenha como causa direta o defeito do serviço ou do produto (Cavalieri Filho, 2022, p. 357).
Todavia, em razão da responsabilidade civil objetiva do fornecedor, estabelecida pela sistemática do Código de Defesa do Consumidor, com base na teoria do risco do empreendimento, não se exige da vítima uma comprovação exaustiva do defeito do produto ou serviço. Basta a demonstração do acidente de consumo, originado pelo defeito, e do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o referido acidente (prova prima facie, também denominada prova por verossimilhança ou prova de primeira aparência, do alemão Beweis des ersten Auschein).
Essa presunção de defeito, fundamentada no brocardo latino res ipsa loquitur (“a coisa fala por si”), decorre das regras da experiência comum, permitindo um juízo de probabilidade que resulta na inversão do ônus da prova. Nesse contexto, compete ao fornecedor demonstrar a inexistência do defeito ou a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros, em conformidade com o disposto nos artigos 12, § 3º, incisos II e III, e 14, § 3º, incisos I e II, do Código de Defesa do Consumidor (Cavalieri Filho, 2022, p. 144 e 333).
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Referências
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BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 8ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2013.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.
BRASIL. TJ-MG – AC: 10000220358337001 MG, Relator: Lílian Maciel, Data de Julgamento: 01/06/2022, Câmaras Cíveis / 20ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 02/06/2022.
BRASIL. TJ-AM – RI: 06492442320218040001 Manaus, Relator: Moacir Pereira Batista, Data de Julgamento: 29/09/2022, 3ª Turma Recursal, Data de Publicação: 29/09/2022.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 6ª ed. Barueri/SP: Atlas, 2022. E-book. ISBN 9786559772766. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559772766/. Acesso em: 19 dez. 2024.
DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: um panorama. Revista direito em movimento, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 15-31, 2019.
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MAIA, Maurilio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo: quando o tempo é mais que dinheiro – é dignidade e liberdade. Revista de direito do consumidor, São Paulo, v. 23, n. 92, p. 161-176, mar.-abr. 2014.
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WERNER, José Guilherme Vasi. Dos produtos e serviços e da responsabilidade pelo fato e pelo vício do produto e do serviço. In: SOUZA, Sylvio Capanema de; WERNER, José Guilherme Vasi; NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Direito do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
[1] TJ-MG – AC: 10000220358337001 MG, Relator: Lílian Maciel, Data de Julgamento: 01/06/2022, Câmaras Cíveis / 20ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 02/06/2022.
[2] TJ-AM – RI: 06492442320218040001 Manaus, Relator: Moacir Pereira Batista, Data de Julgamento: 29/09/2022, 3ª Turma Recursal, Data de Publicação: 29/09/2022.
[3] “O interesse, às vezes, deve ser considerado em relação à coisa, às vezes além da própria coisa, do mesmo modo, às vezes no lugar da coisa, às vezes em um lugar próximo” (tradução livre).
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