Opinião

Cânhamo farmacêutico, STJ e o direito achado na Anvisa

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2 de janeiro de 2025, 9h22

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e à União a regulamentação de autorização para empresa importar sementes, plantar, cultivar e comercializar cânhamo farmacêutico. Houve interposição de embargos de declaração da União e da Anvisa pedindo extensão de prazo para um ano para cumprimento da decisão em prestígio à segurança jurídica (REsp nº 2.024.250, Rel. Min. Helena Costa). Pois bem.

O que já está regulamentado na Anvisa?

De acordo com o artigo 2º, §2º da Portaria MS 344/98, cabe a autoridade sanitária local proceder com a inspeção de empresa postulante de Autorização Especial. O artigo 3º, d, §2º, §3º, §4º do Anexo, Instrução Normativa da Portaria MS 6/99 determina: empresa que cultiva planta da qual possa ser extraída substância objeto da Portaria MS 344/98 deve protocolar pedido de autorização especial na autoridade sanitária onde estiver sediado.

A partir daí deve ser elaborado um relatório técnico pela autoridade sanitária local fundamentado no que se refere à capacidade técnica, operacional e ao cumprimento de Boas Práticas de Fabricação, Manipulação, Distribuição e Transporte.

Além destes requisitos, pelo artigo 29 da RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) 16/14, as atividades com substâncias ou medicamentos sujeitos a controle especial devem apresentar:

I – contrato social ou ata de constituição registrada na junta comercial e suas alterações, se houver;
II – Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) com o código e a descrição da atividade econômica referente à atividade peticionada; e
III – comprovação da responsabilidade técnica realizada por profissional legalmente habilitado.”

Uma Autorização de Funcionamento é exigida para empresa que realiza as atividades de armazenamento, distribuição, embalagem, expedição, exportação, extração, fabricação, fracionamento, importação, produção, purificação, rembalagem, síntese, transformação e transporte de medicamentos e insumos farmacêuticos destinados a uso humano, cosméticos, produtos de higiene pessoal (artigo 3º, RDC 16/14).

Para qualquer atividade com substância sujeita a controle especial é necessária uma Autorização Especial (artigo 4º, RDC 16/14). O requerimento para ambas autorizações dá-se por meio de peticionamento manual ou eletrônico (artigo 9º, RDC 16/14). Os critérios de peticionamento e de pagamento de taxas estão na RDC 222/06, utilizando-se o CNPJ da empresa que realiza atividades com insumos.

A autorização sai publicada no Diário Oficial da União (artigo 11, RDC 16/14). Importante lembrar que as autorizações de funcionamento e especial para importação foram também reguladas pela RDC 860/24.

De acordo com a RDC 108/16 os inspetores devem verificar as instalações da empresa, por exemplo: áreas de armazenamento, controle de qualidade, amostras de referência, produto não conforme, produção e demais áreas nas quais existam produtos controlados, para avaliar seus procedimentos de manipulação e controle.

Os produtos controlados devem estar em lugares bem definidos e identificados, segregados, trancados com chave, com controles e acesso restrito e possuir qualquer outro dispositivo de segurança.

Deve ser solicitada aos estabelecimentos, quando corresponder, a implementação de níveis de segurança (físicos, mecânicos e/ou eletrônicos) para o armazenamento dos produtos controlados.

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maconha cannabis sativa medicinal

Ademais, pode ser exigida documentação para controle e registro da movimentação de lotes de produtos controlados, armazenamento, disposição final de resíduos de produtos controlados, contratação de pessoal, capacitação, treinamento, competências dos funcionários, descrição de cargos, programa, plano de capacitação de pessoal envolvido com os produtos controlados, bem como identificação de pedidos suspeitos ou excessivos com ações preventivas e corretivas frente a possíveis desvios ou usos ilícitos, tudo conforme a RDC 108/16.

Segundo o artigo 107 da Portaria MS 344/98, cabem ao estado e ao município exercer a fiscalização e o controle dos atos de produção, comercialização e uso de substâncias constantes das listas do regulamento técnico.

O controle e fiscalização pelas autoridades sanitárias também estão previstos nos arts. 87 e 88 da Portaria MS 344/98, podendo ser exercidos conjuntamente com Ministério da Fazenda e Ministério da Justiça, bem como órgãos congêneres nos demais entes federativos

Seguindo o caminho da fiscalização sanitária tem-se a RDC 560/21, que dispõe sobre a organização das ações de vigilância sanitária exercidas pela União, estados, Distrito Federal e municípios relativos à autorização de funcionamento e licenciamento. A norma técnica tem em seu artigo 2º, II por “princípio o grau de risco sanitário intrínseco às atividades e aos produtos sujeitos à vigilância sanitária”.

Importante destacar que a competência para Autorização de Funcionamento é da União, já o licenciamento de atividade sujeita a ações de vigilância sanitária é de competência de estados, Distrito Federal e municípios, sendo prevista pactuação da Comissão Intergestores Bipartite do SUS entre estados e municípios para o licenciamento de atividades de alto risco sanitário.

A emissão de certificação de boas práticas de fabricação, distribuição e armazenamento também é competência da União. A verificação do cumprimento das boas práticas por fabricantes de IFA (insumos farmacêuticos ativos), medicamentos e produtos para a saúde de classe de risco III e IV é também responsabilidade da União (artigo 13, RDC 560/21).

A RDC 654/22 dispõe sobre boas práticas de fabricação de insumos farmacêuticos ativos, que define droga vegetal como “planta medicinal, ou suas partes, que contenham as substâncias, ou classes de substâncias, responsáveis pela ação terapêutica, após processos de coleta, estabilização, quando aplicável, e secagem, podendo estar na forma íntegra, rasurada, triturada ou pulverizada” (artigo 6º, XXIII, RDC 654/22).

Destaque-se que a IN 292/24 estabelece o critério de autoridades estrangeiras equivalentes para certificação de insumos farmacêuticos. Existem monografias estrangeiras para flores/frutos de cannabis, a exemplo da União Europeia, que podem ser referidas se o respectivo código farmacêutico estiver listado na RDC 511/21. Já valem em território nacional os critérios estabelecidos com a inclusão da cannabis na farmacopeia brasileira (RDC 940/24), sendo obrigatória para produtos de cannabis (artigo 29, RDC 327/19).

Atualmente está aberta a consulta pública nº 1.303 de 23 de dezembro de 2024 para envio de comentários e sugestões relativos à proposta de resolução normativa para boas práticas de distribuição e armazenagem para estabelecimentos fabricantes de insumos farmacêuticos ativos, medicamentos, produtos de cannabis para fins medicinais, produtos biológicos e produtos para a saúde.

Importante lembrar que a RDC 359/20 de dossiê de insumo farmacêutico ativo não se aplica a fitoterápicos, porém vale a RDC 637/22, que obriga as empresas a cadastrarem os insumos farmacêuticos ativos, excluídas, nada obstante, as farmácias de manipulação.

Atividade econômica de nível III exige vistoria prévia e licenciamento sanitário antes do início do funcionamento da empresa (artigo 5º, inciso III, RDC 153/17). Existe uma Taxa de Fiscalização Sanitária cobrada pela Anvisa conforme o porte da empresa, se microempresa ou pequeno, médio e grande porte, conforme a atividade a ser exercida (RDC 857/24) para obtenção da Autorização Especial.

Observem que não há cobrança de taxa para a Autorização Sanitária de Produto de Cannabis (RDC 327/19), podendo ser aplicada taxa no futuro em caso de registro de medicamento fitoterápico (RDC 26/14) ou medicamento específico (RDC 24/11).

A questão para o cânhamo farmacêutico é em qual nível de risco sanitário enquadrar. Um cultivo de cânhamo para fins farmacêuticos e medicinais pode ter um enquadramento de risco sanitário a exigir regulação específica como em outros países.

Por outro lado, atividades de cânhamo em geral podem ser enquadradas como atividade de baixo risco (artigo 5º, I, RDC 153/17), sem vistoria prévia, sem licenciamento sanitário, sujeita à fiscalização posterior somente. Em sendo atividade de baixo risco sanitário pode ser desenvolvida por empreendimento familiar rural (artigo 1º, RDC 49/13), valendo o direito da liberdade econômica.

Em caso de produção de sementes e fibra, cabe ao Poder Público evitar o abuso do poder regulatório de maneira a indevidamente “exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado” (artigo 4º, III, Lei 13.874/19).

O caminho administrativo de cultivo de plantas com substâncias controladas está escondido na Anvisa porém é possível encontrá-lo. Alguns obstáculos permanecem, contudo.

O que está proibido?

A Portaria Secretaria de Saúde Pública nº 17 de 18 de agosto de 1971 (publicada no D.O.U, 1 de setembro de 1971, pág. 7088) proibiu a importação de sementes de cânhamo. O art. 18 parágrafo único da RDC 327/19 proibiu a importação da planta ou partes de Cannabis Sativa spp.

O primeiro adendo da Lista E da Portaria SVS/MS 344/98 (atualizada pela RDC 936/24) proibiu a importação da Cannabis Sativa spp. sendo cabível ordem judicial para excetuar do regulamento técnico a importação para cultivo de cannabis com fins industriais.

Existem ademais um grupo de trabalho para classificação de substâncias controladas (Portaria MS/Anvisa 488 de 15 de maio de 2023) e a própria Diretoria Colegiada da Anvisa, que edita resoluções atualizando a indigitada portaria.

Pode uma empresa pesquisar?

A autorização de importação para fins de ensino, pesquisa ou desenvolvimento com produção de lotes-piloto não destinados à comercialização ou produção e distribuição de padrões analíticos está no inciso III do artigo 4º da RDC 659/22, devendo o peticionamento eletrônico ser por meio do sistema NDS.

Até o momento vem sendo concedida a autorização especial simplificada para instituição de ensino e pesquisa no âmbito acadêmico (inciso VI do artigo 4º da RDC 659/22). Deve ser apresentado à Anvisa um relatório de conclusão ao término do projeto de pesquisa, para além de todos os requisitos de cultivo controlado.

Este foi o caso do processo administrativo de autorização para a UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), com vigilância de vídeo, cultivo exclusivo, controle de acesso de entrada e saída, dentre outros requisitos como a presença obrigatória da pessoa responsável pelo cultivo quando da presença de outras pessoas (Processo nº 25351.928878/2022-76).

Existe no ordenamento jurídico a possibilidade de empresa aportar recursos em pesquisa por meio de acordo de parceria com Instituição Científica, Tecnológica e Inovação, custeando bolsas de pesquisa e possibilitando abertura de editais, sendo possível prever em acordo a designação de funcionário da empresa para avaliar os resultados de cada meta do projeto, com criação de ambientes promotores de inovação (Lei 10.973/04).

Além disso, são inúmeros os mecanismos de fomento estatal à inovação: encomenda tecnológica, uso do poder de compra do Estado, fundos de investimento, fundos de participação, subvenção econômica, participação societária, incentivos fiscais, etc.

Solução jurídica pela via das startups

Em termos legais, as autoridades podem suspender a aplicação de prescrições normativas para a criação de um ambiente regulatório experimental, o tal do sandbox regulatório: condições especiais simplificadas para pessoas jurídicas obterem autorização temporária para testar tecnologias experimentais mediante cumprimento de critérios e limites previamente estabelecidos por quem detenha competência de regulamentação setorial (artigo 2º, II c.c. art. 11, Lei Complementar nº 182/21).

E o Ministério da Agricultura nessa história? O Mapa pode ser convidado a colaborar no âmbito de programa de sandbox regulatório. Atualmente sua atuação ocorre depois da autorização sanitária. Caso o sandbox seja restrito à Anvisa, é possível invocar o instituto da decisão coordenada da Lei de Processo Administrativo para que o pedido de autorização de importação no Mapa seja concedido pari pasu ao pedido de autorização de importação da Anvisa.

Trata-se de regime flexível em que “predenomina a singularidade e não a padronização”, nas palavras de Paulo Modesto, sendo o experimento avaliado a cada caso, em termos condicionais e individuais [1].

A AGU (Advocacia Geral da União) publicou guia referencial de sandbox regulatório com recomendação de consulta às entidades reguladoras pertinentes em reverência ao princípio da cooperação da administração pública de modo a haver sincronização entre autoridades reguladoras.

Propõe a AGU: mecanismos formais de diálogo, estabelecimento de cronogramas do sandbox, sempre precedido de consulta pública, dentre outras formas de participação social regulatória como a audiência pública [2]. No que se refere à necessária publicidade do experimento de sandbox de se ponderar com relação a dados confidenciais no desenvolvimento de medicamentos.

A Anvisa promoveu tomada de subsídios após publicação de relatório parcial de análise de impacto regulatório de sandbox. A discussão gira em torno dos diferentes mecanismos de entrada em um programa de sandbox alternativos ao edital com entrada programada. Seria possível, por exemplo, a entrada contínua de projetos para avaliação da Anvisa a qualquer momento a depender do modelo de sandbox a ser implementado, em havendo futura edição de RDC geral de sandbox na Anvisa [3].

No caso do cânhamo, tratar-se-ia de autorização temporária para desenvolvimento de produtos inovadores. A questão para a Administração Pública será avaliar os critérios para a continuidade da atividade econômica ou prorrogação da autorização temporária entre o final do experimento e a revisão normativa.

A experiência da autorização administrativa determinada pelo STJ servirá de base para a realização de consulta pública sobre proposta de RDC de cânhamo farmacêutico. Com relação às finalidades têxtil, alimentícia, veterinária, sementes e biomateriais, há necessidade de adendo a excepcionar tais atividades do regime de controle especial sanitário.

O momento é de preparar terreno para futuro edital de chamamento público ou termo de referência de projetos de sandbox regulatório para desenvolvimento de produtos de cânhamo, com instituição de comitê gestor para acompanhamento dos relatórios de monitoramento, avaliação com base nos resultados de inovação e consultas públicas de propostas de RDCs de cânhamo (semente, fibra e insumo).

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[1] MODESTO, Paulo. Direito Administrativo da Experimentação. São Paulo, Juspodium: 2024, p. 148

[2] AGU. Guia Referencial de Sandbox Regulatório. Laboratório de Inovação da AGU. 2024, pp. 26-31

[3] ANVISA. Relatório parcial de análise de impacto regulatório de sandbox. 2024, p. 91

Autores

  • é advogado, doutor em direito pela PUC-SP. Professor do curso de especialização em direito constitucional (Cogeae, PUC/SP). Membro da Sbec (Associação Brasileira de Estudos da Cannabis).

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