A inconstitucionalidade do artigo 56 da Lei nº 15.042/2024 (parte 1)
26 de fevereiro de 2025, 8h00
A Lei nº 15.042 foi publicada em 11/12/2024 e instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, doravante “SBCE”. Trata-se de legislação importante na agenda ambiental, destinada a reduzir e/ou limitar a emissão desses gases nocivos ao meio-ambiente do país.
Em seu artigo 3º verifica-se o compromisso no sentido de diminuir as emissões dos referidos gases, em harmonia com o disposto na Convenção-Quadro das Nações Unidas [1] sobre a mudança do clima:
“Art. 3º Fica instituído o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), ambiente regulado submetido ao regime de limitação das emissões de GEE e de comercialização de ativos representativos de emissão, redução de emissão ou remoção de GEE no País.”
Parágrafo único. O SBCE terá por finalidade dar cumprimento à Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) – e aos compromissos assumidos sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, mediante definição de compromissos ambientais e disciplina financeira de negociação de ativos.”
Logo a seguir, o artigo 4º. estabelece os princípios do SBCE, todos atentos à importância da agenda ambiental tanto no país quanto em nível global:
“Art. 4º O SBCE observará os seguintes princípios:
I – harmonização e coordenação entre os instrumentos disponíveis para alcançar os objetivos e as metas da PNMC, inclusive mecanismos de precificação setoriais de carbono;
II – compatibilidade e articulação entre o SBCE e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e seus instrumentos, com particular atenção aos compromissos assumidos pelo Brasil nos regimes multilaterais sobre mudança do clima;
III – participação e cooperação entre a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, os setores regulados, outros setores da iniciativa privada e a sociedade civil;
IV – transparência, previsibilidade e segurança jurídica;
V – promoção da competitividade da economia brasileira;
VI – redução de emissões e remoção de GEE nacionais de forma justa e custo-efetiva, com vistas a promover o desenvolvimento sustentável e a equidade climática;
VII – promoção da conservação e da restauração da vegetação nativa e dos ecossistemas aquáticos como meio de fortalecimento dos sumidouros naturais de carbono;
VIII – respeito e garantia dos direitos e da autonomia dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais;
IX – respeito ao direito de propriedade privada e de usufruto dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais.”
Nota-se, claramente, que se trata de uma lei inspirada nos artigos 23, inciso IV, 170, inciso VI e 225, todos da Constituição da República, ciosos pela proteção do meio-ambiente e pelo desenvolvimento econômico sustentável.
Numa análise estrutural, praticamente toda a Lei nº 15.042/2024 foi construída em torno do referido SBCE, cuidando, e.g., da governança e da competência (seção II), de seus ativos integrantes (Seção III), da negociação de ativos do SBCE e de créditos de carbono no mercado financeiro e de capitais (Subseção II), da tributação dos ativos integrantes do SBCE e dos créditos de carbono (seção IV), do plano nacional de alocação (seção V) etc.
Um pouco mais adiante, a Lei trata dos agentes regulados nesse mercado específico (Capítulo III, Seção I), do plano de monitoramento e da mensuração, relato e verificação de emissões (Seção II). A Seção III trata da Conciliação Periódica de Obrigações; a Seção IV das infrações e das penalidades e o Capítulo IV cuida da oferta voluntária de créditos de carbono.
O fio condutor utilizado pela lei é, consoante observado, integralmente relacionado ao Sistema Brasileiro de Comércio de Emissão de Gases do Efeito Estufa que, por sua vez, encontra-se causalmente vinculado à aquisição/alienação dos créditos de carbono, ou seja, o eixo temático é uniforme.
Alei caminha por essa mesma trilha em todos os seus dispositivos até que, no apagar de suas luzes, traz o artigo 56 que, por sua relevância, transcreve-se a seguir:
“Art. 56. Em atendimento ao disposto no art. 84 do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, as sociedades seguradoras, as entidades abertas de previdência complementar, as sociedades de capitalização e os resseguradores locais deverão, para cumprimento das diretrizes previstas no inciso V do caput do art. 2º do regulamento anexo à Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.993, de 24 de março de 2022, e na modalidade referida no inciso V do caput do art. 7º do mesmo regulamento, adquirir, até o limite previsto na mencionada Resolução ou em norma que vier a substituí-la, mas observado o mínimo de 0,5% (meio por cento) ao ano dos recursos de suas reservas técnicas e das provisões, os ativos ambientais previstos no inciso VII do caput do art. 2º desta Lei ou cotas de fundos de investimentos dos referidos ativos ambientais.
Parágrafo único. As sociedades seguradoras e demais entidades a que se refere o caput deste artigo deverão cumprir todas as obrigações previstas em lei e nas demais normas aplicáveis.” (Grifou-se).
Toda a lei, à exceção do disposto no artigo ora referido, cuida do SBCE e temas correlatos. Ao ler essa norma pela primeira vez fica-se com uma impressão de que teria havido um erro por parte do legislador, na exata medida em que, nos estertores do texto legal, introduz-se um tema que não tem relação alguma com tudo que fora anteriormente disciplinado.
Também causa espécie o emprego truncado do vernáculo. A título de ilustração, as três passagens a seguir revelam a elaboração de sentenças de maneira invertida, a causar dificuldade desnecessária ao intérprete:
“[…] para cumprimento das diretrizes previstas no inciso V do caput do art. 2º do regulamento anexo à Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.993, de 24 de março de 2022”
“[…], e na modalidade referida no inciso V do caput do art. 7º do mesmo regulamento […]”
“[…] os ativos ambientais previstos no inciso VII do caput do art. 2º desta Lei.”
Observando a primeira oração, teria sido mais fácil se o legislador tivesse redigido “para cumprimento das diretrizes previstas no art. 2º, caput, inc. V, do regulamento anexo da Resolução do Conselho Monetário Nacional nº. 4.993, de 24 de março de 2022.” Na segunda oração, uma redação no sentido correto (e não inverso) também teria simplificado a sua compreensão: “e na modalidade referido no art. 7º, caput, inc. V, do mesmo regulamento.” E finalizando, a terceira oração poderia trazer este conteúdo: “os ativos ambientais previstos no art. 2º., caput, inc. VII […]”.
Além de cuidar de um tema absolutamente distinto de todo o mais que a lei toca, a sua redação é truncada e ruim. Superado esse aspecto formal, passa-se a examinar a obrigação criada por este dispositivo.
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Numa tacada só, o artigo 56 cria uma obrigação para quatro personagens relevantíssimos que integram (1) o sistema financeiro nacional e (2) o sistema da seguridade social. As sociedades seguradoras, as sociedades de capitalização e os resseguradores locais integram o sistema financeiro nacional, disciplinado pelo artigo 192 da Constituição da República, ao passo que as entidades abertas de previdência complementar compõem o sistema da seguridade social, previsto no artigo 202 da Carta Magna.
Analisando detidamente o seu enunciado normativo, a fonte à criação da obrigação tem como referência o artigo 84 do Decreto-Lei nº 73, de 21/11/1966, que se trata da norma estruturante do Sistema Nacional de Seguros Privados (SNSP). Não é preciso relembrar que este Decreto-Lei foi recepcionado com status de Lei Complementar pela Constituição da República de 1988, o que já sinaliza, logo de início, um problema decorrente da criação de obrigação vultosa por intermédio de Lei Ordinária, como sói ser a Lei nº 15.042/2024.
A referência ao artigo 84 do Decreto-lei nº 73/1966 não poderia ter sido mais genérica. Noutras palavras, a leitura de seu conteúdo não permite inferir em hipótese alguma fundamento à criação da obrigação introduzida pelo artigo 56 da Lei nº 15.042. Veja-se o disposto no artigo 84 do Decreto Lei 73:
Decreto-Lei nº 73/1966
“Art. 84. Para garantia de todas as suas obrigações, as Sociedades Seguradoras constituirão reservas técnicas, fundos especiais e provisões, de conformidade com os critérios fixados pelo CNSP, além das reservas e fundos determinados em leis especiais.”
Na mesma medida em que cabe ao segurado efetuar o pagamento de prêmio com vistas à obrigação de garantia por parte da seguradora, o cumprimento dessa obrigação de garantir requer a constituição de reservas técnicas para, justamente, honrar, financeiramente, com a indenização ou pagamento de capital segurado eventualmente devidos ao segurado.
Trata-se do sinalagma que qualifica o contrato de seguro e que tem assento tanto no artigo 757 do Código Civil [2], quanto no novel artigo 1º da Lei nº 15.040/2024 [3] (a nova lei do contrato de seguro, doravante ‘LCS’).
Ora, a considerar a obrigação de constituição de reservas técnicas para fins de fazer o pagamento do que eventualmente for devido ao segurado, o que deriva do referido artigo 84 do Decreto-lei nº 73/1966, a aquisição de ativos ambientais em montante não inferior à alíquota de 0,5% de todas as reservas de seguradoras, sociedades de capitalização, resseguradoras locais e entidades de previdência complementar aberta soa mesmo ilógica e contrária à finalidade estabelecida pelo decreto-lei.
Em matéria de seguros, é comezinho que as reservas técnicas são geridas pelas seguradoras justamente para que elas possam arcar com as verbas acaso devidas aos segurados. Não se trata de ativo livre, a ser utilizado por esses personagens como lhes aprouver. Há regras rígidas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional para fins, inclusive, de fazer aplicações financeiras desses montantes, o que se observa no artigo 7º do regulamento anexo à Resolução CMN nº 4.933/2022, coincidentemente mencionado pelo artigo 56 da Lei em epígrafe. Vale observar que as espécies de investimentos autorizadas pelo CMN são aquelas consideradas de baixo risco, mais conservadoras, tudo com o propósito de viabilizar os pagamentos aos segurados:
“Art. 7º. Observadas as limitações e as demais condições estabelecidas neste Regulamento, os recursos somente poderão ser alocados nas seguintes modalidades:
I – renda fixa;
II – renda variável;
III – imóveis;
IV – investimentos sujeitos à variação cambial; e
V – outros.” (Grifou-se).
Nessa direção, além do artigo 84, vale observar o artigo 85 do Decreto-Lei nº 73/1966, rigoroso no sentido de deixar livres de quaisquer gravames os bens destinados à constituição das reservas técnicas:
“Art. 85. Os bens garantidores das reservas técnicas, fundos e previsões serão registrados na SUSEP e não poderão ser alienados, prometidos alienar ou de qualquer forma gravados sem sua prévia e expressa autorização, sendo nulas de pleno direito, as alienações realizadas ou os gravames constituídos com violação deste artigo.
Parágrafo único. Quando a garantia recair em bem imóvel, será obrigatoriamente inscrita no competente Cartório do Registro Geral de Imóveis, mediante simples requerimento firmado pela Sociedade Seguradora e pela SUSEP.” (Grifou-se).
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Considerando a rigidez a propósito dos investimentos autorizados pelo CMN, aliada à impossibilidade de realizar alienações ou gravames, como explicar a obrigação criada pelo artigo 56 da Lei nº 15.042? É óbvio que toda a preocupação com a agenda ambiental é legítima e importante, mas não há que misturar temas que não dialogam entre si e, assim, criar óbices ao cumprimento das obrigações genuinamente devidas por seguradoras, resseguradoras, sociedades de capitalização e entidades de previdência complementar aberta.
A perplexidade com o conteúdo do artigo 56 da Lei nº 15.042 aumenta à medida que a Lei nº 15.040/2024, publicada na mesma semana, não traz uma linha sequer relacionada a essa obrigação que modifica o arranjo até então existente para fins de constituição das reservas técnicas, valendo frisar que para a operação de seguros a lei específica é a nº 15.040, não a nº 15.042. Parece ter faltado diálogo entre esses legisladores…
Aprofundando ainda mais a análise, o artigo 56 se refere também à Resolução nº 4.933 de 2022, do Conselho Monetário Nacional. Esta norma disciplina a aplicação dos recursos constituidores das reservas técnicas por seguradoras, resseguradoras locais, sociedades de capitalização e entidades de previdência complementar aberta. A referência feita pelo artigo 56 da Lei nº 15.024 é ao seu regulamento anexo, designadamente ao artigo 2º, caput, inciso V, além do artigo 7º, caput, inciso V, a seguir transcritos:
Reg. Anexo da Resolução CMN nº 4.933/2022:
“Art. 2º. Na aplicação dos recursos de que trata este Regulamento, as sociedades seguradoras, as sociedades de capitalização, as entidades abertas de previdência complementar e os resseguradores devem: […]
V – observar, sempre que possível, os aspectos relacionados à sustentabilidade econômica, ambiental, social e de governança dos investimentos.
Art. 7º. Observadas as limitações e as demais condições estabelecidas neste Regulamento, os recursos somente poderão ser alocados nas seguintes modalidades:
I – renda fixa;
II – renda variável;
III – imóveis;
IV – investimentos sujeitos à variação cambial; e
V – outros.” (Grifou-se).
Tomando uma seguradora como exemplo, se ela deve constituir reservas técnicas equivalentes a 100 moedas, para fazer frente ao pagamento de uma indenização equivalente às mesmas 100 moedas, seria possível — empregando aqui a locução trazida na norma do CMN — “sempre que possível” — destinar uma parte disto para algo diferente da obrigação de fazer frente ao pagamento de indenização?
Segundo a definição colhida na Lei nº 15.042/2024, o investimento por ela determinado no artigo 2º, inciso VII, é o seguinte:
“Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
[…]
VII – crédito de carbono: ativo transacionável, autônomo, com natureza jurídica de fruto civil no caso de créditos de carbono florestais de preservação ou de reflorestamento – exceto os oriundos de programas jurisdicionais, desde que respeitadas todas as limitações impostas a tais programas por esta Lei -, representativo de efetiva retenção, redução de emissões ou remoção, nos termos dos incisos XXX e XXXI deste caput, de 1 tCO 2 e (uma tonelada de dióxido de carbono equivalente), obtido a partir de projetos ou programas de retenção, redução ou remoção de GEE, realizados por entidade pública ou privada, submetidos a metodologias nacionais ou internacionais que adotem critérios e regras para mensuração, relato e verificação de emissões, externos ao SBCE;”
[1] “Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC) tem o objetivo de estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que impeça uma interferência humana perigosa no sistema climático. Esse nível deverá ser alcançado em um prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, assegurando que a produção de alimentos não seja ameaçada e permitindo ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável.” (Disponível em https://antigo.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas.html, visitado em 19/2/2025)
[2] Código Civil, “Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.”
[3] Lei 15.040/2024, “Art. 1º Pelo contrato de seguro, a seguradora obriga-se, mediante o pagamento do prêmio equivalente, a garantir interesse legítimo do segurado ou do beneficiário contra riscos predeterminados.”
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