Opinião

Resolução CNMP 306/2025: limites do controle da decisão do promotor natural de não celebrar o ANPC

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  • é mestre em Interesses Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Especialista em Direito Privado pela Escola Paulista da Magistratura. Professor de Interesses Difusos e Coletivos na Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo e na Escola de Direito Coletivo. Promotor de Justiça em São Paulo (também foi promotor de justiça em Minas Gerais).

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25 de fevereiro de 2025, 9h21

O Conselho Nacional do Ministério Público disciplinou o acordo de não persecução civil (ANPC) no âmbito do Ministério Público. A medida consta da Resolução nº 306/2025, publicada no dia 17 de fevereiro, no Diário Eletrônico do CNMP.

Divulgação
CNMP prédio sede fachada

De acordo com a norma, o acordo de não persecução civil é negócio jurídico celebrado entre o Ministério Público e os responsáveis pela prática de ato de improbidade administrativa, devidamente assistidos por advogado ou defensor público.

Justamente em razão da sua natureza consensual bilateral, não estão os legitimados obrigados a propor o acordo, assim como não se pode obrigar o agente ímprobo a firmá-lo.

Poderá o legitimado, a partir de um juízo de conveniência e oportunidade, ajuizar a ação de improbidade administrativa ou formalizar o acordo de não persecução cível. Deve-se verificar qual a situação mais adequada, de acordo com a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso (artigo 17-B, § 2º, da LIA).

É claro que se as condições se mostrarem favoráveis à celebração do acordo, deve-se privilegiar essa forma de solução do conflito, sendo dever do Ministério Público buscar a solução negociada de forma exaustiva [1]. Todavia, não existe para o agente ímprobo um direito subjetivo à celebração do acordo [2].

Controle da negativa de celebração de ANPC

Fixadas tais premissas, questão interessante consiste em saber se da decisão do promotor natural de não celebrar o ANPC cabe algum tipo de recurso ou pedido de revisão. Noutras palavras, a decisão do membro do Ministério Público de não celebrar o ANPC se sujeita a algum tipo de controle?

Note-se que a LIA instituiu um controle pelo órgão de revisão ministerial apenas nas hipóteses em que o promotor natural decidir celebrar o ANPC. Da análise do artigo 17-B da LIA, vê-se que a negativa de celebração de ANPC não se sujeita ao crivo do órgão de revisão ministerial.

Assim, se o promotor natural decidir não celebrar o ANPC, não se pode querer aplicar, por analogia, a regra prevista no §14 do aritgo 28-A do CPP, segundo a qual, “no caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código”.

Na hipótese, não há lacuna legal, mas sim uma legítima opção do legislador de não instituir revisão das decisões do Ministério Público de não celebrar o ANPC, o que é corroborado pelo fato de que ambos os acordos, o penal e o civil, foram introduzidos concomitantemente em nosso ordenamento jurídico pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que somente previu a revisão em relação ao primeiro. Em reforço a esse entendimento, obtempera-se que tal opção do legislador foi ratificada pela Lei 14.230/2021, que inseriu na LIA o artigo 17-B, oferecendo parâmetros materiais e procedimentais para a celebração do ANPC, sem prever o cabimento da revisão da decisão do Ministério Público de não celebrar o acordo.

Tratar essa clara opção legislativa como uma hipótese de lacuna patente significa modificar, por meio de interpretação divorciada do sistema vigente, o quadro de competências legalmente definido.

Frise-se, demais disso, que a negativa de celebração de acordos no microssistema de tutela coletiva, historicamente, não conta com uma instância de revisão [3].

Spacca

Nessa matéria, não se pode querer traçar um paralelo com o controle que é feito pelos órgãos de revisão da decisão do promotor natural de arquivar o inquérito civil ou o procedimento preparatório. Afinal, nessas hipóteses o promotor natural decide não agir por entender que não há lesão ou ameaça de lesão a interesse de matriz coletiva, coisa bem distinta de decidir não celebrar o ANPC por entender que a tutela por adjudicação judicial é mais vantajosa ao interesse público.

Possibilidade de revisão

A despeito disso, e de forma até surpreendente, a Resolução CNMP nº 306/2025, em seu artigo 4º, § 1º prevê expressamente a possibilidade de o interessado pedir ao órgão competente do Ministério Público a revisão da decisão do promotor natural de não celebrar o acordo. Confira-se:

“Art. 4º (…) § 1º Nas hipóteses de recusa de oferecimento de proposta de acordo de não persecução civil ou de discordância com as condições exigidas pelo Ministério Público é cabível pedido de revisão ao órgão competente do Ministério Público, no prazo de 10 (dez) dias contados da ciência pelo interessado.”

Em complemento, a normativa do CNMP estabelece que se o promotor natural não reconsiderar sua decisão, o pedido de revisão, que não terá efeito suspensivo, deverá ser submetido à instância superior no prazo de três dias (artigo 4º, §§ 2º e 3º).

Se, por um lado, a Resolução CNMP nº 306/2025 previu a possibilidade de controle desse tipo de decisão, por outro, não esclareceu qual é a autoridade competente para fazê-lo, tampouco definiu quais são os limites desse controle.

Embora tais lacunas devam ser preenchidas por cada ramo do Ministério Público, por meio de suas normativas internas, pensamos que algumas diretrizes devem ser observadas.

No que toca à primeira omissão, a solução mais adequada será reservar tal competência ao órgão do Ministério Público que também possui competência para aprovar os acordos de não persecução civil, nos termos do artigo 17-B, § 1º, II, da LIA. Isso proporcionará maior racionalidade ao sistema, pois o mesmo órgão que aprova os acordos terá competência para controlar eventuais recusas dos promotores naturais em celebrá-los.

Já em relação à segunda omissão – ausência de definição dos limites desse controle que poderá ser feito pelo órgão competente no exercício dessa competência revisional –, a solução deve ser construída sob o influxo da Constituição e da Lei 8.429/1992.

As regras da Resolução CNMP nº 306/2025 que autorizam o controle em exame precisam ser bem interpretadas, sob pena de serem consideradas inválidas, quer seja por afronta direta à Lei 8.429/1992, que optou por não sujeitar a negativa de celebração do ANPC a nenhum tipo de controle, quer seja por afronta aos princípios constitucionais do promotor natural [4] e da independência funcional (artigo 127, § 1º, da CF), que só admitem mitigação por força de lei.

Dito isso, entendo que a competência do órgão de revisão ministerial, quando provocado a controlar a decisão do promotor natural de não celebrar o ANPC, na forma do artigo 4º, §1º, da Resolução CNMP 306/2025, limita-se à analise da legalidade da recusa, não podendo adentrar no mérito da decisão.

Isso não significa que a escolha do promotor natural por não celebrar o ANPC seja inteiramente livre. Ela está limitada pelo princípio da legalidade (considerado em seus sentidos amplo e restrito) e pela exigência de razoabilidade e motivação.

Por maior que seja a margem de discricionariedade, existe a exigência de motivação da decisão. Prova disso é que a própria cabeça do artigo 4º da Resolução CNMP nº 306/2025 exige motivação idônea da decisão de não celebrar o ANPC [5].

É pela motivação que se verifica se o ato está ou não em consonância com a lei e com os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. Verificada essa conformidade, a escolha feita pelo promotor natural insere-se no campo do mérito, que não pode ser alcançado pelo órgão de revisão ministerial.

Assim, as decisões do promotor natural de não celebrar o ANPC somente poderão ser revistas pelo órgão competente em caso de desvio de poder, arbitrariedade, ilegalidade, inexistência de motivos ou de motivação, irrazoabilidade da decisão ou ofensa aos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Exemplificativamente, se o promotor natural deixar de celebrar o ANPC porque o infrator se recusou a cumprir uma pena de prestação e serviços à comunidade pelo prazo de dois anos – sanção não prevista na LIA –, tal decisão poderá ser revista pelo órgão de revisão, a pedido do interessado, porquanto ofensiva ao princípio constitucional da legalidade (CF, artigo 5º, XXXIX [6]), aplicável no domínio da LIA por força do disposto no artigo 1º, §4º [7].

Da mesma forma, se o promotor natural deixar de oferecer proposta de ANPC sem apresentar nenhuma motivação para sua recusa, sua decisão também poderá ser revista pelo órgão de revisão, a pedido do interessado.

Por outro lado, se o membro do Ministério Público, de forma motivada, deixar de celebrar o ANPC porque o infrator recusou proposta de aplicação de penas previstas na LIA, fixadas dentro dos parâmetros legais, sua escolha será válida. Daí porque não pode o órgão de revisão competente invadir esse espaço reservado, por lei, ao promotor natural, pois, caso contrário, estaria substituindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pelo promotor com atribuição par atuar no caso com base em razões de oportunidade e conveniência que ele, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto.

Vê-se, portanto, que a Resolução CNMP nº 306/2025 não autoriza o controle do mérito da decisão do promotor natural, mas sim o controle dos limites legais da discricionariedade da sua decisão.

Nessa ordem de ideias, quando o órgão de revisão ministerial reformar a decisão do promotor natural de não celebrar o ANPC por desvio de poder, por irrazoabilidade ou desproporcionalidade da decisão, por inexistência de motivos ou de motivação, ou por infringência aos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, não estará controlando o mérito da decisão, mas sim a legalidade do ato.

Isso posto, no exercício da sua competência revisional, se o órgão de controle entender que a decisão do membro do Ministério Público de não celebrar o ANPC apresenta alguma ilegalidade, poderá:

(1) determinar ao promotor natural que proponha o acordo, quando entender que a medida protege de maneira suficiente o patrimônio público e a moralidade administrativa;

(2) indicar as condições que devem ser ajustadas pelo promotor natural, para que seja reformulada a proposta de acordo.

De outro lado, acaso a decisão do promotor natural de não celebrar o ANPC tenha sido tomada dentro dos limites legais da discricionariedade, deverá ser mantida pelo órgão de controle.

A previsão desse controle interno, nos limites acima propostos, tem o benefício de evitar eventuais condutas arbitrárias ou solipsistas por parte de membros do Ministério Público, proporcionando, assim, uma atuação institucional mais coerente e racional no combate à corrupção, sob o influxo dos princípios constitucionais da independência funcional (artigo 127, § 1º, da CF) e do promotor natural, ao mesmo tempo em que se prestigia a vontade da LIA de não possibilitar o controle do mérito desse tipo de decisão.

 


[1] No mesmo sentido, confira-se: Nesse sentido: ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos. Vol. 1. 12 ed. Método: São Paulo, 2024.

[2] Nesse sentido, inclusive, já decidiu o STJ: AgInt no RtPaut no AgInt no RE nos EDcl no AgInt no Agravo em Recurso Especial 1.341.323/RS, j. 05.05.2020.

[3] No mesmo sentido: GARCIA, Emerson. Acordo de Não Persecução Cível: a Negativa de Celebração é Suscetível de Revisão? In: CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; GARCIA, Emerson; ZANETI JR., Hermes (org.). Improbidade Administrativa: Principais Alterações Promovidas pela Lei 14.230/2021. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022. p. 609.

[4] Nesse sentido: RE 638.757, AgR/RS, 1ª T., rel. Luiz Fux, j. 25.04.2013.

[5] Art. 4º. Poderá o membro do Ministério Público, mediante motivação idônea, recusar-se a oferecer proposta de acordo de não persecução civil, ou ainda, rejeitar proposta de acordo apresentada pelo investigado ou demandado, quando constatar, no caso concreto, que o ajuizamento da ação de improbidade administrativa ou o seu prosseguimento é mais conveniente ao interesse público.

[6] Art. 5º (…) XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

[7] Art. 1º (…) § 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, membro colaborador da Comissão de Defesa da Probidade Administrativa do CNMP, mestre em Interesses Difusos e Coletivos pela PUC-SP, especialista em Direito Privado pela Escola Paulista da Magistratura e professor de Interesses Difusos e Coletivos na Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo e na Escola de Direito Coletivo.

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