O Arlequim chora no saguão das aduanas brasileiras, paradas há 91 dias
25 de fevereiro de 2025, 11h24
“Quanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão”

Em épocas de Carnaval, sempre bem vinda a lembrança das marchinhas que superam as décadas, ainda repercutem nos dias de hoje e vão embalar muitos bailes, por todo Brasil, na próxima semana. Quem não se recorda de “Allah-la- Ô…” ou de “Me dá um dinheiro ai…”? O sucesso das marchinhas “foi resultado de melodias simples e de forte apelo popular com letras irônicas, engraçadas e de caráter ambíguo”, conforme observam estudiosos do tema e autores de um artigo sobre as marchinhas na era Vargas, publicado na Revista da USP. [1]
Se na atualidade o samba-enredo, a música baiana e o axé music são presença certa no Carnaval, naqueles tempos, as marchinhas dotadas de letras simples, bem-humoradas e com duplo sentido, contando a história dos fatos do dia a dia, dos costumes, da cultura e, também, dos acontecimentos políticos da época, é que embalavam os foliões.
Poderíamos tomar de empréstimo a criatividade daqueles autores para escrever muitas delas com fatos da atualidade. Ou talvez replicar a melodia da “Mascára Negra” [2], com seus mil palhaços no salão e a tristeza de Arlequim para lembrar que o comércio exterior do Brasil está chorando no saguão do aeroporto, nos portos, bem assim nas zonas de fronteira, no meio da multidão…
De concreto, sem adereços, nem mestres-salas, nem porta-bandeiras, seria muito bem-vindo um “abre-alas que eu quero passar” que pudesse provocar o diálogo e negociações entre o Governo Federal e o Sindifisco Nacional. O fato é que desde 26 de novembro de 2024, portanto há 91 dias; os intervenientes sofrem os efeitos da greve dos auditores fiscais da Receita Federal do Brasil, sem que os órgãos competentes da Administração Pública federal tenham promovido um único movimento efetivo que conduzisse à sua suspensão, ou interrupção.
Ao contrário, de lá para cá, as notas e notícias veiculadas nos meios de comunicação só registram o recrudescimento do movimento, chegando ao inimaginável “desembaraço zero”. [3] Em um país em que foram registradas, no ano de 2023, 4,6 milhões de declarações (de importação e exportação) [4], o que são, aproximadamente, 384 mil declarações por mês, portanto, cerca de 1,1 milhão declarações de importação e exportação em 90 dias, paralisar os despachos aduaneiros é algo muito alarmante, comprovando o extremo a que a situação está chegando, urgindo sua solução.
Agilidade nas fronteiras
As atividades econômicas abrangidas pelo comércio exterior imprescindem de agilidade e previsibilidade. Não por outra razão, a OMA tem metodologia para avaliar os tempos médios de liberação das mercadorias na importação e na exportação. [5] Assim, pela mesma razão, nas análises apresentadas pela Aduana brasileira, anualmente, um dos critérios para avaliar a sua eficiência, é o tempo médio de despacho e desembaraço aduaneiro.
Poderíamos citar n outros argumentos para destacar a relevância da agilidade no fluxo do comércio internacional, mas podemos sintetizar no objetivo primordial do Acordo sobre a Facilitação Comercial, tratado assinado por todos os países membros da OMC e que visa, exatamente, tornar as Aduanas mais ágeis, previsíveis e com menor custo possível. [6]
De que adianta a construção de todo esse arcabouço normativo, esforço para discuti-lo e implementá-lo, desenvolver e implementar sistemas, como o Portal Único de Comércio Exterior, para simplificar e agilizar os processos, se, entre nós, um quarto do ano é impactado por um impasse que, infelizmente, segue em sentido produzindo efeitos em sentido oposto?
Com o devido respeito, mas quem mais sofre as consequências é a sociedade brasileira, em última instância, passando antes pelo aumento dos custos das empresas com a exacerbação de despesas com armazenagem de mercadorias, atrasos em entregas já contratadas, falta de insumos em linhas de produção, cobranças de demurrage e de detention.
Também sofrem prejuízos os despachantes aduaneiros, os agentes de carga e os transportadores, entre outros, que deixam de receber suas remunerações contratuais porque as cargas não são desembaraçadas no tempo previsto e as operações para as quais foram contratados não se concluem, o que, em regra, afeta o fluxo de caixa desses profissionais e de suas empresas.
Segundo notícias veiculadas pela imprensa, em razão da greve dos auditores fiscais da Receita, “empresas de comércio internacional estimam que mais de 75.000 remessas estejam paradas nos portos e aeroportos brasileiros, de acordo com o jornal Folha de S.Paulo. Não se sabe ao certo o tamanho do prejuízo financeiro, mas uma operação-padrão da Receita Federal em junho de 2024 fornece uma pista. Segundo a Frente Parlamentar pelo Livre Mercado (FPLM), aquele movimento causou perdas de 3,3 bilhões de reais.” [7]
Com interrupção dos julgamentos no Carf, segundo estimativas do Sindifisco Nacional, em reportagem publicada pelo Valor Econômico[8], deixaram de ser pautados processos que, juntos, somaram R$ 51 bilhões. E em fevereiro, há uma expectativa de que os conselheiros representantes da Fazenda Nacional deixem de julgar quase R$ 94 bilhões. Segundo registro divulgado pelo Sindasp, a cada dia que a carga permanece parada o seu custo aumenta em 2,1%. [9]
Direito à continuidade dos serviços públicos essenciais
O direito de greve está previsto na Constituição de 1988 e é reconhecido pelo Poder Judiciário, assim como se deve resguardar o direito à continuidade do serviço público essencial. Ilustrativamente, segue trecho de recente Acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, relatora desembargadora Consuelo Yoshida [10] sobre o tema: ‘O movimento de greve ou o que se denomina de “Operação Padrão”, embora legítimos do ponto-de-vista reivindicatório, não podem prejudicar aqueles que necessitam do serviço público.’ [11]
O despacho aduaneiro não deve ser interrompido por mais de oito dias sem que haja uma manifestação da autoridade aduaneira. Havendo a interrupção por prazo superior, há ofensa a direito líquido e certo do interveniente, sendo tal ofensa passível de proteção judicial via ação de mandado de segurança, com pedido de liminar, a fim de que se possa determinar à autoridade aduaneira competente que dê continuidade ao despacho aduaneiro.
Do mesmo julgado, podemos colher no voto da desembargadora: “Por sua vez, o art. 4º do Decreto nº 70.235/1972, o qual dispõe sobre o processo administrativo fiscal, estabelece que “salvo disposição em contrário, o servidor executará os atos processuais no prazo de oito dias. Verifica-se que o legislador estabeleceu o prazo máximo de 8 (oito) dias para conclusão do desembaraço aduaneiro, devendo esse prazo ser cumprido, ainda que durante o período de paralisação das atividades dos profissionais encarregados da análise e do desembaraço das mercadorias. (…). Por conta disso, à impetrante deve lhe ser assegurado o direito à razoável duração do procedimento de controle aduaneiro, com a imediata execução dos procedimentos de fiscalização em relação às mercadorias importadas.”
Diante dos efeitos prejudiciais da greve, antes de ajuizar a ação buscando a proteção do seu direito, por vezes, o importador questiona se ao ajuizá-la não poderá sofrer alguma retaliação. A dúvida decorre de um desconhecimento dos papéis institucionais de cada Poder, de cada órgão, e não se justifica.
O direito de ação é assegurado como garantia individual, inafastável, pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Lei Maior, onde se lê: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ademais, a atuação de todo servidor público é vinculada à lei, não lhe cabendo nenhuma reação de natureza subjetiva, nem a favor, nem contra, em face do exercício de um direito legítimo por parte do particular.
Nesse contexto, se for deferida a liminar e à autoridade aduaneira for dirigida uma ordem judicial, caber-lhe-á cumpri-la, facultada sua manifestação nos autos, inclusive para recorrer da decisão judicial. No Estado democrático de Direito, assim como é considerado legítimo o direito de greve, igualmente, o é recorrer ao Poder Judiciário, buscando o amparo para os efeitos ilegais decorrentes do movimento paredista.
O ajuizamento da ação, nesses casos, produz resultados concretos, com a obtenção da medida liminar e determinação judicial de prosseguimento imediato do despacho aduaneiro. Não havendo outros óbices, o cumprimento da decisão conduz à liberação e entrega das cargas. Em alguns casos, entretanto, há decisões de magistrados que, antes de apreciarem o pedido de liminar, intimam a autoridade coatora, concedendo-lhes o prazo legal de dez dias (Lei no 12.016/09, artigo 7º, inciso I) para que prestem suas informações.
Se o pedido e caso narrados se referirem, exclusivamente, à greve e à interrupção do despacho aduaneiro causada por ela, o prazo de oito dias de paralisação, que motivou o ajuizamento da ação, estará sendo alongado por, no mínimo, mais dez dias, o que só aumenta os prejuízos da parte impetrante. Nessa vertente, considerando a notoriedade da greve, não havendo outros óbices, ou detalhes do caso judicializado, resta configurada hipótese para concessão da medida liminar sem oitiva da autoridade coatora visando proteger o direito do administrado.
Uma outra situação recorrente nesses períodos de greve é a interrupção do despacho após a verificação física das mercadorias e o lançamento da exigência de reclassificação tarifária, no Siscomex. Diante da exigência, a empresa manifesta sua inconformidade. Após apresentar sua defesa, o despacho é interrompido assim permanecendo sem novas movimentações por mais de oito dias.
Em um fluxo normal, a hipótese poderia se desdobrar (a) na concordância do auditor fiscal com a manifestação do importador e a liberação das mercadorias; ou (b) manutenção da exigência e, consequente necessidade de constituição do crédito tributário em face das diferenças tributárias decorrentes da nova classificação tarifária.
Se a interrupção do despacho aduaneiro se dá após a exigência de reclassificação tarifária, a ação mandamental e a liminar podem, igualmente, surtir efeitos na medida em que determine à autoridade aduaneira que dê sequência no despacho aduaneiro, seja para liberar as mercadorias, seja para constituir o correspondente crédito. Se houver constituição de crédito, o importador poderá oferecer garantia (depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro aduaneiro) para retirar os bens e impugnar o auto de infração.
Outros graves prejuízos
Além dos prejuízos decorrentes da interrupção do fluxo das cargas importadas e exportadas, a greve afeta os importantes projetos em andamento envolvendo o setor público e o setor privado. Suspende a realização de Colfacs, as validações dos pedidos de certificação OEA, deixando as empresas que se esforçaram para reunir os elementos necessários para protocolar seus pedidos, aguardando por prazo incerto sua avaliação. Prejudica ainda a continuidade de grupos de trabalho, projetos de revisão de legislação e o avanço de programas essenciais, como o Portal Único de Comércio Exterior e o Novo Processo de Importação.
Na área aduaneira, os tempos são sempre muito exíguos, toda interrupção no fluxo da cadeia logística, desde a origem ao destino, é imprevisto, indesejado, gerando custo adicional à operação. É importante ter essa realidade em mente. Ao Judiciário, todos os aplausos quando revela sua sensibilidade a tal aspecto das atividades de importação e exportação, não ampliando os prazos insustentáveis de cargas paradas em áreas alfandegadas em razão da greve.
Sobre os prejuízos decorrentes da greve, recorremos e nos alinhamos com os pontos destacados no artigo publicado pelo colega de coluna Leonardo Branco. O prejuízo decorrente da greve, causado aos importadores e exportadores, a partir da comprovação da demora excessiva é ilegal, é indenizável e poderá ser objeto de ação judicial específica a ser ajuizada em face da União. [12]
O curioso, se não fosse preocupante, é a frase inaugural do artigo citado, cuja publicação se deu há um ano: “No início de fevereiro, o Sindifisco comunicou ao governo federal ter aprovado, em assembleia nacional, a proposta relativa à implementação do bônus de eficiência, tantas vezes prometida desde 2016, tendo decidido o órgão ‘(…) suspender todas as ações de mobilização’, encerrando, assim a greve iniciada em 20/11/2023”….
Estamos na expectativa de que o Carnaval de 2025, traga-nos, além da folia e das marchinhas, a divulgação de um comunicado com esse mesmo conteúdo, que possa selar o término dessa anomalia no fluxo do comércio internacional e que afeta o comércio exterior brasileiro, prejudica toda a sociedade e que parece ainda não estar incomodando suficientemente os órgãos de Administração Federal, especialmente, o Ministério da Inovação e Gestão, com competência para dialogar e negociar, visando conseguir suspender e encerrar o movimento paredista. Enquanto isso… Arlequim chora pela Colombina e por seus contêineres.
_____________________________________________
[1] As músicas da Era Vargas e o registro da Memória Social sobre as eleições presidenciais. Disponível em: link Acesso em 22/02/2025.
[2] Disponível em: link Acesso em 22/02/2025
[3] Boletim do Comando Nacional de Mobilização no 5, do SINDIFISCO. Disponível em: link Acesso em 22/02/2025.
[4] Os dados foram publicados pela RFB no Balanço Aduaneiro de 2023. Disponível em: link. Acesso em 22/02/2025
[5] Disponível em link , Acesso em 22/02/2025.
[6] “Ello supone generar procedimentos eficientes, eficazes y ágiles, de modo que las cargas demoren lo mínimo necessário para la realización de um control adecuado, según las circunstancias de la operación, de manera de reducir costos directos e indir.ectos, associados al comercio internacional. Este es el objetivo de la facilitación, reducir plazos y costos.” COTTER, Juan Patrício. Derecho Aduanero y Comercio Internacional. Buenos Aires, 2018, p. 86-92.
[7] Disponível: link. Acesso em 22/02/2025.
[8] Disponível em: link. Acesso em 22/02/2025.
[9] Os prejuízos e efeitos nefastos para a sociedade estão bem registrados na reportagem da Gazeta do Povo, publicada em 07/02/2025. Disponível em: link. Acesso em 22/02/2025.
[10] REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL (199) Nº 5000126-21.2024.4.03.6105 RELATOR: Gab. 10 – DES. FED. CONSUELO YOSHIDA. Acórdão publicado em 12/02/2025. Disponível em: link. Acesso em 22/02/2025.
[11] A jurisprudência é pacifica no sentido de reconhecer a constitucionalidade e a legalidade do direito de greve dos servidores, assim como na necessidade de manter a continuidade de serviços públicos essenciais, incluindo-se como tais o despacho e desembaraço aduaneiros. É pacífica e remansosa, quanto ao prazo do art. 4º do Decreto no 70.235/72, de 8 dias para que seja dada a continuidade no despacho, sob pena de ofensa ao direito líquido e certo do importador, ou do exportador.
[12] Título do artigo é Responsabilidade da União de indenizar por danos aduaneiros. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-13/responsabilidade-da-uniao-de-indenizar-por-danos-aduaneiros/#_ftnref5 Acesso em 22/02/2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!