Entre querelas e rescisão: tratamento jurídico da intempestividade
24 de fevereiro de 2025, 16h17
Nos bancos da faculdade de direito se aprende que a sentença transitada em julgado faz do branco preto e do quadrado redondo, somente podendo ser desconstituída através da ação rescisória, dentro das hipóteses legais prevista no Código de Ritos.
Essa expressão é verdadeira, embora a doutrina moderna debata a respeito da relativização da coisa julgada. A coisa julgada é uma das máximas expressões da segurança jurídica no Estado de direito, a qual goza entre nós do status de garantia fundamental.
A questão que se coloca para a reflexão é sobre qual o instrumento adequado para questionar o acórdão do julgamento de um recurso de apelação intempestivo que transitou em julgado com o julgamento de mérito pelo tribunal. Essa pergunta apenas é interessante porque, embora intempestiva, a apelação cível sofreu julgamento de mérito pelo tribunal que avançou sobre tal requisito recursal extrínseco.
Sendo verdade que a apelação era intempestiva, o seu julgamento importaria em violação à coisa julgada. Portanto, a primeira resposta para essa pergunta seria que o instrumento adequado para impugnar tal acórdão seria a ação rescisória, levando em consideração o autorizativo do artigo 966, IV, do Código de Processo Civil.
Alexandre Câmara concorda e, comentando essa hipótese de cabimento da ação rescisória, leciona que “ofende a coisa julgada o julgamento de recurso inadmissível erradamente admitido (como se dá, por exemplo, no caso de o tribunal julgar o mérito de apelação intempestivamente interposta), já que tal julgamento terá ofendido a coisa julgada já formada sobre a decisão contra a qual nenhum recurso admissível foi interposto” [1].
Ocorre que, sendo a apelação cível realmente intempestiva, o trânsito em julgado teria ocorrido e a coisa julgada se formado em momento anterior, quando do decurso do prazo para a interposição do recurso, uma vez que a preclusão independe da declaração judicial, conforme o artigo 223 do Código de Processo Civil.
Quando não há mais recurso
Como ensina Luiz Guilherme Marinoni, “dá-se o trânsito em julgado quando não mais cabe recurso de determinada decisão judicial ou quando se perde o prazo para impugná-la” [2]. O trânsito em julgado é a preclusão máxima que constitui pressuposto para a formação da coisa julgada.
Assim sendo, não parece adequado admitir o uso da ação rescisória, uma vez que ela se prestaria a desconstituir a coisa julgada formada em desacordo com as hipóteses previstas no artigo 966 do Código de Processo Civil. Oras, então por que existe a previsão de rescisória quando a decisão de mérito transitar em julgado ofendendo a coisa julgada?
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Em vista dessa hipótese normativa, parece-nos mais adequado interpretar que a previsão contida no artigo 966, IV, do Código de Processo Civil faz referência às hipóteses de duplicidade de coisa julgada. No caso, quando tramitam dois processos com pressuposto negativo de constituição de desenvolvimento válido e regular do processo (coisa julgada e/ou litispendência) e, em ambos, formam-se coisas julgadas inconciliáveis, cabe a rescisória.
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Contudo, a Corte Superior entende que, diante do conflito de coisas julgadas, após o decurso do prazo da rescisória (dois anos), prevalecerá aquela que se formou em último lugar [3].
Nesta Conjur, fazendo coro à doutrina de Luiz Guilherme Marinoni, o professor José Rogério Cruz Tucci defendeu a possibilidade de arguir a inexibilidade da res iudicata ofensiva ao título anterior em sede de cumprimento de sentença, com a prevalência da primeira coisa julgada em face da segunda, mesmo após o decurso do prazo da rescisória [4]. Em decisões na seara criminal, o Supremo Tribunal Federal [5] também decidiu no sentido de que a primeira prevalece sobre a segunda, mas esse não é o debate aqui.
Coisa julgada dúplice
O fato é que, em nossa perspectiva, o disposto no artigo 966, IV, do Código de Processo Civil se presta à impugnação de acórdão onde se forma uma coisa julgada dúplice, oportunidade em que a parte interessada deve arguir a ofensa através de ação rescisória.
Retomando a reflexão, qual o caminho adequado para impugnar o acórdão do recurso de apelação que, embora intempestivo, tenha sofrido o julgamento de mérito pelo tribunal? Oras, poder-se-ia ainda cogitar a ação rescisória, afinal, formou-se uma coisa julgada com o decurso do prazo para o recurso e, uma segunda coisa julgada, quando do julgamento da apelação cível intempestiva, uma vez que o tribunal julgou o seu mérito.
Essa resposta estaria absolutamente errada.
Aquilo que é intempestivo não existe. Tudo o que ocorre após é aparência, independentemente da substância. Quem melhor responde a essa pergunta, embora indiretamente, é a professora Tereza Arruda Alvim, quando explica sobre o tratamento jurídico da intempestividade no Processo Civil.
A professora explica que existem três espécies de circunstâncias, fundamentalmente, que viciam o ato praticado naquilo que diz respeito à sua dimensão formal relativa ao tempo. No caso, ela enumera: ser praticado fora do prazo, ser praticado nas férias, nos feriados ou fora do horário de expediente, e ser praticado durante a suspensão do processo por qualquer motivo, que não seja o de férias [6].
Seguindo em suas lições, ela argumenta que o regime adequado para se aplicar aos atos praticados com vício formal relativo ao tempo é exatamente o da inexistência jurídica. Em suas palavras, “o ato é praticado em ‘processo’ que, no momento, de certo modo, ‘não existe’, ou seja, não há ‘ambiente’ para que o ato seja praticado: ele é praticado no ar, ao vento, sem apoio, no vácuo. É o regime dos atos praticados ‘no processo’, depois do trânsito em julgado: são juridicamente inexistentes” [7].
Inclusive, nessa mesma ordem de argumentação, a professora Teresa Arruda Alvim conclui que “é o que ocorre, por exemplo, se se julgar o mérito de apelação inadmissível, porque intempestiva, ter-se-á desrespeitado a coisa julgada” [8]. Se não há a formação de duas coisas julgadas no mesmo processo, mas sim a prática de um ato inexistente (apelação intempestiva) não parece adequado admitir a ação rescisória para “desconstituir” um julgamento praticado no processo depois do trânsito em julgado, ainda que aparentemente tenha se formado uma coisa julgada ante o incurso no mérito do recurso.
Substitutivo de acórdão
Importante lembrar que o efeito substitutivo de um acórdão sobre a sentença somente se opera quando a interposição do recurso é regular e o seu conhecimento é devido, o que não ocorre quando se ofende o requisito formal da prática do ato dentro do prazo legal.
A apelação intempestiva, o julgamento e o acórdão decorrente dela, juntos, constituem uma sequência de atos inexistentes afrontando uma coisa julgada formada anteriormente. Não é uma segunda coisa julgada operada mesmo processo, mas uma aparência de coisa jugada. Conforme o magistério de Calmon de Passos:
“Demais disso, o ato inexistente, por mais absurdo que seja, é uma aparência de ato. Essa aparência precisa ser desfeita, o que se há de verificar, necessariamente, mediante pronunciamento judicial […] [9]. Juridicamente inexistente são aqueles atos nos quais falta ou é viciado um de seus elementos constitutivos essenciais (substanciais ou formais) de modo a que o ato venha a faltar a própria fisionomia que o caracterizava como ato de determinado tipo, pelo que dessa determinada espécie de ato não se pode falar, mas apenas de um quid facti ou de um ato jurídico distinto e diverso daquele que se queria formar. […]. A inexistência é, pois, um conceito que, quanto aos efeitos, coincide com o da nulidade absoluta, mas é um conceito que precede ao de nulidade bem como é mais rigoroso e taxativo do que ele. […]. Disso se deduz não precisar serem definidas pelo legislador as causas de inexistência, visto como elas são extraídas ou dos expressos ditames da lei, ou dos princípios gerais do direito, ou de todo o complexo do sistema legislativo, ou de um ramo jurídico particular, representadas pelos elementos que são indispensáveis para a constituição de um ato, de maneira que quando um falta ou é viciado, desnatura-se o ato, sendo supérfluo que a lei o diga inexistente, porque a sua inexistência é evidente. […] [10]. O ato inexistente, por conseguinte, não sofre a cobertura da coisa julgada, nem pode ele mesmo constituir a coisa julgada, ou servir-lhe de suporte ou fundamento. […] [11].”
Por essa razão, ação rescisória não pode ser o meio de impugnação dessa modalidade de acórdão. Aquilo que não é não pode ser desconstituído, porque nunca foi, reclama somente declaração. Nessa ordem de ideias, o instrumento adequado é a Querelas Nullitatis, independentemente do prazo processual previsto para a ação rescisória.
Conforme se pacificou na doutrina e na jurisprudência, na Querelas Nullitatis se pretende declarar a inexistência de uma relação jurídica-processual quando se verifica o trâmite apenas aparente de um processo, levando em conta a ausência ou defeito da citação.
Contudo, ao longo do tempo, a Querelas Nullitatis passou a ser admitida para questionar decisões que se formam com outros vícios [12].
No caso, enquanto a ausência de citação impede a constituição da relação jurídica-processual, a prática dos atos intempestivos, portanto, inexistentes, impede o desenvolvimento válido da relação jurídica-processual e a formação de qualquer decisão que se oponha a coisa julgada já formada na sentença.
Assim, como não se pretende desconstituir a “nova coisa julgada”, basta apenas a propositura da Querelas Nullitatis para declarar a inexistência do acórdão.
Se o resultado do acórdão ensejou cumprimento de sentença, a consequência jurídica imediata é a sua extinção, fazendo prevalecer o resultado e a autoridade da coisa julgada formada na sentença contra a qual não fora interposto nenhum recurso admissível, uma vez que operada a preclusão maior.
[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 775.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 615.
[3] Entendimento firmado no Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial n. 600.811/SP, sob a relatora do Min. Og Fernandes. Cândido Dinamarco argumenta que ““na nova lei há uma nova vontade do legislador, que sobrepuja a vontade dele próprio, contida na lei velha. No novo decreto, nova vontade da Administração. Na nova sentença, nova vontade do Estado-juiz” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.135).
[4] TUCCI. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-10/paradoxo-corte-precedente-stj-conflito-entre-coisas-julgadas/. Acesso em: 18 fev. 2025
[5] Nesse sentido, cito o HC 68.386/DF, Min. Aldir Passarinho, DJe. 01/03/1991; HC 72.364/SP, Min. Sydney Sanches, DJe. 23/02/1996; HC 101.131/DF, Min. Marco Aurélio de Mello, DJe. 25/10/2011.
[6] ALVIM, Teresa Arruda. Nulidades do Processo e da sentença. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
[7] ALVIM, Teresa Arruda. Nulidades do Processo e da sentença. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 191-192.
[8] ALVIM, Teresa Arruda. Nulidades do Processo e da sentença. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 191-192.
[9] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 90.
[10] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. pp. 96-97.
[11] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 100.
[12] (STJ, REsp. 1.252.902/SP, Ministro Raul Araujo, DJe. 24/10/2011).
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